A obesidade é uma doença? Nesta terça-feira, 14, cientistas reunidos pela The Lancet Diabetes & Endocrinology, revista de um dos mais respeitados grupos de periódicos científicos do mundo, dão o pontapé inicial para responder essa questão com a publicação de uma nova abordagem para entender e diagnosticar a obesidade.
Antes de tudo, eles destacam como essa pergunta não poderia estar mais equivocada. Não é uma questão de “tudo ou nada”, escrevem. “Alguns indivíduos com obesidade podem manter a função normal dos órgãos e uma saúde geral, mesmo a longo prazo, enquanto outros apresentam sinais e sintomas de doença grave aqui e agora”, declarou o presidente da comissão de pesquisadores, Francesco Rubino, do King’s College London, em comunicado à imprensa.
O que o novo documento faz é definir quando a obesidade, isto é, o excesso de gordura corporal (adiposidade), é uma doença. Para isso, eles introduzem dois conceitos: a obesidade clínica e a obesidade pré-clínica.
O primeiro refere-se a pacientes nos quais a adiposidade representa uma doença crônica e sistêmica. Já no segundo, há a preservação da função de órgãos e tecidos e da saúde de maneira geral, porém o quadro configura um fator de risco para o desenvolvimento da obesidade clínica e outras doenças não transmissíveis, como diabetes tipo 2.
Mas o que vai permitir dividir os pacientes entre os dois grupos? Um conjunto de 18 sinais e sintomas (critérios diagnósticos) definidos pelo trabalho da comissão — para crianças e adolescentes são 13 (leia mais abaixo). Eles representam indicativos graves ou limitações das atividades diárias devido a efeitos da adiposidade sobre os sistemas pulmonar, cardiovascular e/ou musculoesquelético, por exemplo.
“(O problema) Não é o excesso de adiposidade, mas as consequências dela”, resume Ricardo Cohen, líder do Centro Especializado em Obesidade e Diabetes do Hospital Alemão Oswaldo Cruz e atual presidente mundial da Federação Internacional de Cirurgia da Obesidade e Distúrbios Metabólicos (IFSO).
A comissão também propõe uma nova maneira de diagnosticar o excesso de gordura corporal que configura a obesidade, reduzindo a importância do índice de massa corporal (IMC). Ele passa a ser apenas um sinal de que algo pode estar errado. Ou seja, obesidade não se trata apenas da corpulência ou do “tamanho” de uma pessoa, que é o que o IMC (razão entre o peso, em kg, e o quadrado da altura, em metros) é capaz de medir.
“Pessoas com excesso de gordura corporal nem sempre têm um IMC que indique que estão vivendo com obesidade”, afirmou o comissário Robert Eckel, da Universidade do Colorado, nos EUA, em comunicado à imprensa. Ele lembrou que o índice também não discrimina onde essa gordura está concentrada — o acúmulo na cintura ou em torno de órgãos como o fígado e o coração está associado a um risco maior à saúde, em comparação com quando está apenas sob a pele nos braços e pernas, destacou.
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Por isso, para diagnosticar a obesidade conforme a nova proposta, além do IMC, os profissionais de saúde precisam de ao menos mais uma medida antropométrica, como circunferência da cintura, relação cintura-quadril ou relação cintura-altura, e/ou uma medição direta da massa de gordura (por meio de um exame chamado DEXA ou de bioimpedância).
As discussões para avaliar as melhores evidências científicas ocorreram mensalmente entre 2022 e 2024, e envolveram 58 especialistas de diversos países, além de representantes da Organização Mundial da Saúde (OMS). As recomendações foram endossadas por 76 organizações em todo o mundo, incluindo sociedades científicas e grupos de defesa de pacientes.
Para gravar
- Obesidade: condição marcada pelo excesso de gordura corporal, com ou sem distúrbios anormais ou disfunção do tecido adiposo.
- Obesidade pré-clínica: estado de excesso de adiposidade com função preservada de outros tecidos e órgãos e com risco variável, mas geralmente aumentado, de desenvolver obesidade clínica e várias outras doenças não transmissíveis (como diabetes tipo 2, doenças cardiovasculares, certos tipos de câncer e transtornos mentais). É um estado de obesidade com saúde preservada no momento, mas não existe “obesidade saudável”, aponta Cohen.
- Obesidade clínica: é uma doença crônica, sistêmica (afeta vários órgãos e tecidos), contínua e recidivante, marcada pelo excesso de adiposidade com sinais e/ou sintomas objetivos de redução na função dos órgãos, ou uma capacidade significativamente diminuída de realizar atividades diárias padrão, como tomar banho, vestir-se e comer.
Uma controvérsia aparentemente irreconciliável
A OMS reconheceu a obesidade como doença em 1948. Mais recentemente, especialmente a partir da década de 2010, várias sociedades médicas e países fizeram o mesmo.
O problema é que a atual definição para essa doença é muito vaga: um acúmulo anormal ou excessivo de gordura que apresenta risco à saúde. Além disso, o diagnóstico adota pontos de corte do IMC, uma ferramenta que não foi criada para ser diagnóstica.
O discurso médico predominante também é problemático. Apesar das evidências de que algumas pessoas com excesso de gordura corporal apresentam problemas de saúde objetivamente atribuíveis apenas à obesidade, o que mais se enfatiza é como ela pode ser precursora de outras doenças, como diabetes tipo 2 e hipertensão.
Isso sustenta uma discussão polêmica e polarizada, com argumentos contrários aparentemente irreconciliáveis.
Conforme os cientistas resumem no novo documento, os defensores da obesidade como doença apontam que esses pacientes, embora haja evidências objetivas de problemas de saúde, enfrentam barreiras para receber tratamento adequado e sofrem com um forte estigma social relacionado ao peso.
Ao reconhecer a condição como doença, seria possível conferir legitimidade ao sofrimento deles e angariar recursos para pesquisa, tratamento e prevenção. Em países onde os cidadãos dependem predominantemente da saúde privada, como nos EUA, isso seria primordial para a garantia dos cuidados — esse argumento ficou conhecido como pragmático ou utilitarista.
Outros se preocupam com possíveis prejuízos de definir a obesidade para esses pacientes. Um grupo aponta que isso desviaria a atenção do papel da responsabilidade individual, “incentivando comportamentos não saudáveis e enfraquecendo os esforços para lidar com o problema”. A própria ciência vem desbancando esse argumento, ao passo que evidências têm mostrado que, sem intervenção medicamentosa e/ou cirúrgica, mudanças de estilo de vida não são suficientes para a perda de peso necessária para alguns pacientes.
Há ainda um grupo que aponta questões objetivas do problema de assumir a obesidade, na definição atual, como doença. Primeiramente, eles afirmam que a condição, como posta, engloba um grupo muito heterogêneo de pacientes e que um fator de risco não é necessariamente uma doença. Além disso, destacam que o IMC não fornece informações sobre a saúde de um indivíduo e pode fomentar um estigma contra corpos gordos.
Em meio à polêmica, alguns lugares, como Reino Unido e Dinamarca, convencionaram considerar a obesidade apenas como fator de risco.
Para mais ou menos 70% dos comissários da Lancet, a definição atual, de fato, não permite classificar a obesidade como doença. “Essa controvérsia revela um ponto crucial que falta na forma como a obesidade é conceituada: a doença diretamente causada pela obesidade ainda não foi claramente definida, deixando a obesidade sem uma identidade clínica precisa”, escreveram.
Obesidade clínica: uma doença crônica
Para superar essa lacuna conceitual, os cientistas da comissão da Lancet escolheram um caminho do meio, dividindo a obesidade em duas situações distintas: a obesidade clínica, uma doença, e a obesidade pré-clínica, fator de risco.
Eles chegaram a um consenso de que “diversos mecanismos fisiopatológicos decorrentes da adiposidade excessiva podem também causar diretamente alterações estruturais e funcionais em outros tecidos e órgãos”. “Essas alterações não necessitam de mecanismos patogênicos adicionais além daqueles característicos da própria obesidade e, portanto, podem se desenvolver independentemente da presença de outras doenças relacionadas à obesidade.”
Esses mecanismos próprios superam a ideia de problemas exclusivamente metabólicos, como resistência à insulina. Segundo os especialistas, os efeitos podem se impor, por exemplo, no sistema respiratório (a massa excessiva de gordura sobre os pulmões pode prejudicar a capacidade de se expandirem e encherem de ar durante a respiração) e musculoesquelético (com prejuízos às grandes articulações de suporte de peso, como os quadris e joelhos), além de restrições para executar atividades diárias.
Eles chegaram a 18 sinais e sintomas objetivos do excesso de adiposidade que permitem distinguir a obesidade clínica e pré-clínica em adultos. Para crianças e adolescentes, são 13. A presença de apenas um permite o diagnóstico.
O problema do IMC
Se antes o IMC era o grande aliado na classificação da obesidade, agora ele se torna apenas um indicador de alerta. “Ele é muito menos um amigo hoje. É um colega distante. É aquele tio que mora em outro país e vai falar: ‘O tio sabe das coisas, tem que dar uma olhada nisso’”, simplifica Cohen.
A verdade é que o índice já estava perdendo protagonismo. No ano passado, a Associação Europeia para o Estudo da Obesidade (Easo, em inglês) publicou uma nova proposta de classificação, com foco em medidas da circunferência abdominal e avaliação do impacto funcional e psicológico do excesso de gordura.
Os cientistas da comissão seguem um caminho parecido. Para dizer que alguém vive com obesidade, além do IMC, é preciso de outra medida antropométrica e/ou um exame que avalie exatamente o percentual de gordura do paciente, como o DEXA (usado comumente para densitometria óssea) — e para classificar essa obesidade como clínica é preciso avaliar os sinais e sintomas.
Com o IMC, os profissionais de saúde também classificavam os pacientes em diferentes graus de obesidade: 1 (IMC entre 30 e 34,9), 2 (entre 35 e 39,9) e 3 (igual ou maior que 40). “(Com o novo consenso) Isso cai parcialmente por terra. IMCs mais altos são um sinal de alerta de que esse indivíduo, quase com toda certeza, vai ter algum sinal ou sintoma. Nas faixas de 40, 50, são indivíduos que ainda vamos classificar como uma obesidade extrema. Agora, grau 1, grau 2, grau 3 não tem mais nexo”, fala Cohen.
Mas o IMC não será completamente abandonado. Ficou acordado que em pessoas com IMC acima de 40, o excesso de adiposidade pode ser assumido pragmaticamente, sem necessidade de confirmação adicional de outras medidas antropométricas — aí o profissional de saúde já pode pular para a avaliação dos sinais e sintomas.
Na prática
Perguntamos a Cohen como isso vai funcionar no consultório. Em suma, depois que for confirmada a obesidade, seja porque o IMC supera 40 ou pelo uso de outras medidas antropométricas e/ou exame específico, começa a investigação para classificá-la em clínica ou pré-clínica:
- O médico vai questionar o histórico familiar;
- Fazer o exame físico;
- Pedir e avaliar testes laboratoriais (como exames de sangue, que ajudam a identificar manifestações metabólicas);
- E solicitar exames mais específicos se achar necessário.
Isso não só permite classificar entre obesidade clínica e pré-clínica, mas também entender a gravidade do problema e o risco do paciente. “Você tem excesso de adiposidade, e vai falar para mim: ‘Olha, meu pai também tinha e teve uma complicação: infartou’. Isso vai acender um alerta: ‘Esse cara tem risco um pouco maior’”, exemplifica Cohen.
Tratamento
O objetivo da comissão não foi discutir indicações específicas para o tratamentos da obesidade clínica. No entanto, eles frisam que a definição do quadro tem implicações práticas e foi concebida para facilitar a tomada de decisões clínicas e políticas.
Os especialistas propõem que pessoas com obesidade clínica são fortes candidatas para tratamento, enquanto aquelas com obesidade pré-clínica, para ações de prevenção — mas cada caso é único, advertem.
Eles também avançam em relação à avaliação do tratamento. “Assim como em qualquer tratamento para doenças, o sucesso no tratamento da obesidade clínica deve ser definido com base na melhoria real das manifestações clínicas, e não em medidas substitutivas de risco ou redução de peso propriamente dita”, escrevem. Esse avanço foi possível graças a estudos com as últimas drogas antiobesidade, que indicaram benefícios para complicações variadas com diferentes percentuais de perda de peso corporal.
É um passo em direção à medicina de precisão. “Outra vantagem de se definir sinais e sintomas é ter grupos diferentes de pacientes com objetivos diferentes nos seus tratamentos”, diz Cohen. “O (novo) diagnóstico, apesar de ser cheio de etapas clinicamente, é o mais simples que a gente conseguiu, para não deixar passar pacientes que precisam ser tratados e também não tratar excessivamente pacientes que não precisariam ser tratados tão agressivamente.”
Em relação à obesidade pré-clínica, os cientistas escrevem que ela “geralmente não requer tratamento com medicamentos ou cirurgia, e pode necessitar apenas de monitoramento da saúde ao longo do tempo e aconselhamento de saúde, se o risco de progressão para obesidade clínica ou outras doenças for considerado suficientemente baixo”. Se o risco for alto, intervenções no estilo de vida e medicamentos, por exemplo, podem ser necessários.
De acordo com os cientistas, conseguir diferenciar pacientes que precisam de tratamento e aqueles que vão se beneficiar de ações de prevenção pode ser um avanço importante para as autoridades públicas de saúde. Afinal, como estava posto e considerando as cifras das novas drogas antiobesidade, seria economicamente insustentável para os sistemas de saúde arcar com os custos do tratamento para todos — para se ter uma ideia, no ano passado, um estudo mostrou que mais de 1 bilhão de pessoas conviviam com obesidade ao redor do planeta, considerando o IMC.
Próximos passos
É ingênuo acreditar que a polêmica esteja resolvida — e os cientistas da comissão sabem disso. O próximo passo, conta Cohen, é entender como essas novas classificações vão funcionar na prática. Segundo ele, estudos já estão em andamento para entender exatamente quantas pessoas no mundo vivem com obesidade clínica e quantas vivem com a pré-clínica, por exemplo.
“É o kick off [pontapé inicial] para refinarmos esses critérios e educarmos o prestador de serviço de saúde a não sub ou super diagnosticar o excesso de adiposidade”, finaliza.