O isolamento social, uma exigência para enfrentar a pandemia de covid-19, não foi fácil para ninguém. Mas, para alguns, ficou marcado como um período de mergulho profundo em si mesmo e de descobertas. Foi o caso do filósofo, musicista, ator, roteirista, dramaturgo e escritor paulista Henrique Vitorino, de 33 anos.
“Me senti livre da obrigação social. Conforme fomos voltando à vida presencial, comecei a sentir uma dificuldade no transporte público, tinha muito barulho, e passei a ter crise de ansiedade. Já tinha isso antes, mas, com a pandemia, percebi que as pessoas conseguiam lidar melhor do que eu”, conta ao Estadão. Em junho de 2021, após um empurrãozinho da mãe e meses de consultas neurológicas e testes, ele recebeu, aos 29 anos, o diagnóstico de transtorno do espectro autista (TEA).
Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), o TEA é um grupo diverso de condições neurológicas, caracterizadas por algum grau de dificuldade com interação social e comunicação. Outras particularidades são padrões atípicos de atividades e comportamentos, como dificuldade com transição de uma atividade para outra, foco em detalhes e reações incomuns a sensações.
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Estima-se que cerca de uma em cada 100 crianças tenha autismo, de acordo com a OMS. Embora as características do quadro possam ser detectadas na primeira infância, ele geralmente é diagnosticado muito mais tarde. Em outubro, um robusto estudo norte-americano publicado na renomada revista científica JAMA Psychiatry apontou um aumento substancial nas taxas de diagnóstico de TEA entre 2011 e 2022, nos EUA, particularmente entre adultos jovens. “Nossas descobertas indicam que a população de adultos autistas nos EUA continuará a crescer, ressaltando a necessidade de serviços de saúde expandidos”, alertaram os cientistas.
De maneira geral, o TEA pode ser classificado conforme a gravidade, como definido na 5ª edição do Manual Diagnóstico e Estatístico de Distúrbios Mentais da Associação Americana de Psiquiatria (DSM-5). A classificação é feita de acordo com o nível de suporte que a pessoa autista precisa no cotidiano, considerando características como comunicação e interação social. São eles: nível 1 (suporte pontual), nível 2 (com mais frequência) e nível 3 (mais intenso e extensivo). Vitorino está no nível 1.
Mas, de “geral” o TEA não tem nada, destaca Vitorino. Algo que fica claro no livro que ele publicou no ano passado, “Manual do Infinito: Relatos de um Autista Adulto” (Nova Alexandria). A obra é uma bússola preciosa para um mergulho necessário a todos no TEA. “Sou autista nos meus mínimos detalhes, e até depois da minha morte viverei na mente das pessoas numa saudade autista”, escreve ele, logo nas primeiras páginas.
Em entrevista ao Estadão, Vitorino discute a importância do diagnóstico e também dos próprios autistas poderem falar sobre o autismo, além da necessidade de termos uma sociedade disposta a oferecer suporte para que pessoas no espectro vivam dignamente.
“Eu queria viver num mundo em que eu não precisasse me superar todos os dias. Viver numa cidade em que eu não precisasse ter medo de ir para a delegacia, para o hospital, caminhar no parque. Isso esgota a gente. Quero viver em uma sociedade que entende a minha condição e que cria caminhos para que eu viva dignamente”, afirmou.
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No livro, você fala sobre a importância da sua mãe na busca pelo diagnóstico. Pode contar um pouco sobre esse processo?
Minha mãe foi fundamental, porque não nos lembramos de tudo. Desde muito pequeno, ela já percebia que eu tinha algumas dificuldades de comunicação e que a minha forma de interação social era diferente em relação à da minha irmã, mas não existia na época o diagnóstico como hoje. Considerava-se que o autismo era (só) o autismo de nível 3 de suporte [com necessidade de suporte mais intenso e extensivo], então era uma criança que não falava, que não tinha uma interação social. Eu fui crescendo e me desenvolvendo do meu jeito, com as dificuldades aparentes que as pessoas não entendiam — nem eu mesmo entendia.
A pandemia foi uma época difícil para todos. Mas me senti livre da obrigação social, de ter que estar presencialmente, de ter que me deslocar. Então, quando fomos voltando à vida presencial, comecei a sentir uma dificuldade no transporte público, tinha muito barulho, e passei a ter crise de ansiedade. Eu já tinha isso antes, mas, com a pandemia, com esse mergulho que eu fiz em mim, percebi que as pessoas conseguiam lidar melhor do que eu. A pandemia me fez perceber que tinha diferenças.
De certa forma, a pandemia te trouxe um alívio?
Minha performance social diminuiu consideravelmente. O autista do nível 1 de suporte consegue esconder a dificuldade para que a interação social seja melhor, o que chamamos de mascaramento — o termo em inglês é masking. Por exemplo, (durante esta chamada de vídeo) posso estar embaixo da mesa fazendo o meu movimento repetitivo, a minha estereotipia — um autista de nível 2 ou 3 pode não conseguir fazer isso.
Mas, com o mascaramento, a gente se sobrecarrega. Nos três primeiros meses (da pandemia), eu fazia aula online e pensava: ‘Nossa, que bom, não vou ter que sair de casa’. Depois, comecei a pensar: ‘Por que senti tanto alívio?’ Eu tinha saudade dos amigos, das pessoas, mas eu não tinha saudade de estar fisicamente com eles. Foi o primeiro sinal de que tinha alguma coisa diferente.
Quando você recebeu o diagnóstico, sentiu alívio ou foi um choque?
Foram as duas coisas. Foi horrível, difícil e, ao mesmo tempo, libertador. Porque quando a gente recebe um diagnóstico desses, ainda mais depois de adulto, (quando) você tem toda uma vida construída… Eu sou músico, trabalho com artes, fiz apresentações musicais em restaurantes, em teatros. Eu tinha uma vida toda, e receber o diagnóstico foi um choque.
Henrique Vitorino, filósofo e escritor
Ao mesmo tempo, isso te dá um certo alívio, não de ser autista, mas um alívio de saber que você pode viver uma vida normal dentro da sua condição. Eu acho que esse foi o grande ponto de virada para mim. As dificuldades são enormes, todo dia é uma luta, e não deixa de ser assim depois do diagnóstico. Mas o fato de você saber que a ciência reconhece isso não como uma doença, mas como uma condição, e que existem outras pessoas falando disso, é um grande alívio, porque a gente não se sente mais sozinho no mundo. Não acha que é aquele ‘cara maluco’, aquela pessoa estranha que fica jogado de canto.
E como foi para a sua família? Houve, de alguma maneira, um sentimento de culpa por não ter buscado o diagnóstico mais cedo?
A minha família não se sentiu culpada. Eles fizeram aquilo que estava dentro da possibilidade deles. Agora, quando a gente fala de culpa, temos que falar de quem cria a culpa, que é a sociedade. As mães atípicas — como a gente chama as mães de autistas — são extremamente cobradas. Muitas das mães que têm filhos com alguma deficiência são abandonadas pelos maridos. A minha família, felizmente, não participou dessa estatística. Mas quase sempre quem carrega esse peso sozinha é a mãe, e essas mães entram numa estafa. Pouco tempo atrás, passamos por uma onda de suicídio de mães de autistas gravíssima. Elas estão exaustas, não aguentam mais.
A minha mãe conta que, quando eu recebi o diagnóstico de autismo, as amigas dela pararam de visitá-la. E é verdade. Com aquela desculpa: ‘Eu não quero incomodar vocês, porque o Henrique tem a questão do barulho’. Pararam de ir e não perguntavam como minha mãe estava, se estava cansada, se estava precisando de algum apoio, de alguém para desabafar.
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Vitorino faz interpretação da música My Way, de Frank Sinatra, em português
Acha que, caso tivesse sido diagnosticado antes, teria sofrido menos? Teria sido mais fácil?
Se eu fosse diagnosticado antes, seria bom, mas seria ruim também em alguns aspectos. Talvez eu não viveria tanto quanto vivi. Mas, com certeza, eu sofreria muito menos.
Se eu tivesse recebido uma proteção muito maior, talvez não teria me exposto a muitas coisas que foram positivas. Por exemplo: eu trabalho expondo meu rosto, meu corpo, minha voz. Não sei se seria um artista se fosse diagnosticado criança.
Mas vejo que crianças autistas são mais protegidas no sentido dos desafios cotidianos, e isso é muito importante. Por exemplo, se o menino gosta de brincar com o ventilador, a mãe sabe, dá a ele um ventiladorzinho de mão para ele levar aos lugares, e isso acalma. A própria questão do protetor auricular, porque o desconforto sensorial dói em nós, não é só um desconforto, ele machuca.
Por outro lado, a gente não pode se esquecer de que elas são crianças. Então, tem que ir no parque, tem que conviver com a família, tem que passear. Claro, respeitando as devidas condições de cada nível de suporte.
Como tem sido o acompanhamento profissional após o diagnóstico? No livro, você cita suas preocupações com o ‘mercado do autismo’. Pode falar mais sobre elas?
Eu faço acompanhamento com o neurologista — minha condição financeira impede que eu tenha um acompanhamento como seria necessário —, faço terapia e tenho os meus diários. Escrevo muito. Colocar os sentimentos para fora através da escrita me ajuda.
O que me preocupa no mercado do autismo é a forte visão do autismo como doença. ‘Se é doença, existe tratamento, e eu tenho esse tratamento (para vender)’. Não deixa de ser uma forma de se aproveitar de famílias que estão sofrendo.
Existem avanços, claro. Precisa ter um mercado do autismo? É necessário. Eu preciso de um cobertor que seja adequado, de um protetor auricular. Agora, existe uma exploração também.
A terapia é importantíssima. Mas tem que ser feita corretamente. A pessoa autista não pode sofrer violência de forma nenhuma, nem física nem psicológica. Agora, por exemplo, será que 40 horas por semana de terapia vão ajudar uma criança a interagir socialmente, ou ela ter um ambiente familiar equilibrado também ajuda? Se a família vive num ambiente disfuncional, a terapia não vai funcionar. Se a pessoa autista não tiver o mínimo de liberdade para sentir o mundo, a terapia não vai funcionar. Precisa ser um atendimento integral.
No livro, você fala como, depois do diagnóstico, foi muito importante ouvir outras pessoas autistas falando sobre o autismo nas redes sociais.
Com as pessoas autistas, eu aprendi a não considerar que a minha rotina era loucura, porque a gente cresce uma vida inteira ouvindo ‘ele é assim mesmo’, ‘é bitolado’, ‘é retardado’. Conversar com as pessoas autistas e conhecer as rotinas delas, o que elas pensam, foi extremamente importante para eu me validar enquanto pessoa autista e me conhecer. Quando você conhece uma pessoa parecida com você, se sente encorajado, é o que chamamos de representatividade.
Henrique Vitorino, filósofo e escritor
Nesse sentido, você escreve sobre o incômodo de que, muitas vezes, para se falar sobre autismo, são chamados os pais atípicos e não os autistas, e escreve que ‘o autismo sob o ponto de vista neurotípico tem o perigo de tornar-se apenas um estereótipo’. Pode falar um pouco mais sobre isso?
Quando a gente entra nas redes sociais dos autistas, vemos uma urgência extrema. Nós, autistas, estamos ansiosos, contando os minutos, para ter a possibilidade de falar. Por quê? É muito recente a mudança de não considerar, não só o autista, mas as pessoas com deficiência como um todo, como incapazes.
Muitas vezes, em um restaurante, quando eu estou gaguejando, as pessoas perguntam para a minha mãe o que eu vou querer. Se acontece uma vez, a gente releva. Se acontece duas vezes, a gente respira fundo. Na terceira vez, cansa. Nós estamos exaustos de enfrentar o estigma do coitadinho, do anjinho, do ‘puro’, que não vejam a complexidade do nosso pensamento, que é a complexidade de todo ser humano. É uma ansiedade nesse sentido.
Falando nisso, você cita no livro que ‘o suporte necessário para uma pessoa autista é bem diferente de ajuda’. Qual a diferença?
Quando falamos de ajuda, nos colocamos numa posição superior. O suporte fica numa posição de igualdade.
Por exemplo, o Airton (assessor de imprensa de Henrique), muitas vezes me presta suporte. Não é que ele me ajuda, fala por mim. Se eu ficar agitado, ele fala ‘respira, está tudo bem, vamos lá’. Ele faz o suporte, me trata com dignidade, não preciso que falem ‘ai, tadinho, levanta, força’.
A ajuda tem esse viés capacitista. Não precisamos de ajuda, precisamos de suporte, ou seja, atendimento às nossas necessidades com dignidade.
Henrique Vitorino, filósofo e escritor
Você também não gosta do termo ‘superação’. Por quê?
A superação entra também nesse ponto de vista do capacitismo. O cérebro de ninguém consegue lidar com estímulo excessivo. No meu caso, o limiar é muito menor. Em vez de eu ter que viver num mundo em que eu tenha que me superar todos os dias para trabalhar, para falar, para conviver, eu queria viver num mundo em que eu não precisasse me superar todo dia. Eu queria viver numa cidade em que eu não precisasse ter medo de ir para a delegacia, ir para o hospital, caminhar no parque. Quero viver em uma sociedade que entende a minha condição e que cria caminhos para que eu viva dignamente.
Henrique Vitorino, filósofo e escritor
Acha que a sociedade brasileira está pronta para prestar esse suporte?
Nós estamos longe (disso). Fazendo um retrato brasileiro, existem locais que têm já o suporte, outros não. Existem vários ‘Brasis’ dentro do Brasil.
Em São Paulo, existem lugares que são adaptados. Por exemplo, na minha cidade, Mauá, tem um shopping com sala sensorial. Fui lá, fiz o meu cadastro, quis conhecer, a atendente não me olhou nos olhos — então ela já era treinada para me atender —, mostrou a sala, tinha cozinha, era climatizada, o interruptor era aquele que gira, então você podia colocar a luz em 30%. Maravilhoso. Agora uma pessoa da comunidade (autista), da região Norte, talvez não tenha acesso a isso.
Nós ainda estamos longe, mas existem passos. A CipTEA (Carteira de Identificação da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista) foi um grande avanço, mas a gente precisa de mais. A questão do trabalho adaptado para autistas é uma necessidade absoluta. A falta de independência financeira dos autistas e das famílias dificulta mais ainda. Muitas vezes, é preciso escolher entre o diagnóstico e o prato de comida.
Você tem uma preocupação grande com o mercado de trabalho para pessoas com deficiência. Pode falar um pouco mais sobre?
A PNAD (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) de 2022 mostrou que só 29% dos cidadãos com deficiência participam da força de trabalho, e 55% deles estão no mercado informal, sem direitos como seguro-saúde, aposentadoria ou décimo terceiro salário. (É o caso de Henrique, que embora trabalhe como professor de canto, o faz como prestador de serviços, sem carteira assinada.)
Henrique Vitorino, filósofo e escritor
O perigo é o futuro. Como vai ser quando os meus pais não estiverem mais aqui? Como vai ser se eu não me casar com alguém e ficar sozinho? Como vai ser se o meu nível de suporte aumentar? Será que a minha sobrinha vai conseguir trabalhar para sustentar o pai, a mãe e o tio autista? Nossa maior ansiedade e o que não nos deixa, nem aos nossos pais, dormir, é o futuro. Se a gente tivesse uma renda mínima, a possibilidade de ter um futuro segurado dignamente, a vida seria muito mais leve. O futuro, às vezes, soa mais como uma ameaça do que uma esperança.
Você já sentiu essa resistência do mercado de trabalho com os autistas?
Eu sinto medo de fazer uma entrevista de emprego. Vamos supor que a nossa entrevista não fosse uma entrevista jornalística, fosse de emprego. Eu ia ficar olhando para a câmera como se eu estivesse olhando nos seus olhos e fazendo um movimento gesticular, ia estudar alguma figura de linguagem, alguma ironia para utilizar, mas seria uma performance. A entrevista de trabalho é moldada para neurotípicos, não para a pessoa autista.
Além da independência financeira, no livro você aborda outro tema bastante polêmico, que é sexo e sexualidade. Por quê? Sentiu medo da exposição?
Eu senti, e ainda sinto medo. É um tabu para todos. Eu resolvi colocar esse assunto no livro, porque temos um tabu enorme em relação à educação sexual. Alguns amigos meus, autistas também, preferem o termo ciência para a sexualidade, e eu adotei essa nomenclatura. Porque é isso, uma ciência.
Henrique Vitorino, filósofo e escritor
Uma vez, em um grupo de rede social, uma mãe perguntou qual remédio ela poderia dar para o filho dela não sentir libido. Porque o filho tinha 11 anos e ia começar a senti-lo, e ela não queria que ele sofresse. Isso eu considero castração química. Eu fui conversar com ela, e ela comentou: ‘Sinto vergonha de falar isso com o meu filho’. Em um momento de ‘sinceridade autista’, falei: ‘O problema não está no seu filho, o problema está em você’. Eu pedi desculpas, porque fui meio rude. Aí, eu percebi a necessidade dos pais saberem falar sobre esse assunto com os filhos.
Autistas também amam, autistas também desejam. Não é errado. Além disso, uma criança não consciente da sexualidade está muito descapacitada a entender uma situação de abuso sexual. Isso é gravíssimo.
Você falou que, após esse momento de ‘sinceridade autista’, se desculpou. Sente que a nossa sociedade neurotípica exige o tempo todo que autistas fiquem se desculpando?
Exige. Infelizmente, exige. Ou a gente é visto com pena, ou a gente é visto como a personagem lá do gênio indomável, que é antissociável — tomo cuidado porque antissocial é um transtorno mental diferente, então chamo de antissociável. Os filmes e séries têm culpa nisso, porque pintam o autista como um personagem chapado, e isso é cobrado da gente. Nós somos tão complexos como qualquer personagem.
Henrique Vitorino, filósofo e escritor
Alguns amigos meus falam que o neurotípico tem uma rigidez muito grande. Por exemplo, se eu não falo olhando nos olhos e gaguejando, dizem ‘o Henrique está mentindo’. Porque dentro do código que aprendeu, se não olhar nos olhos e falar fluentemente, está mentindo. Eu não posso falar a verdade de outras maneiras. O neurotípico também tem a rigidez mental. Só que isso não é visto. Isso é cobrado de quem? Do autista.