“Estou usando bermuda jeans, uma coisa que não acontecia há muito tempo”, conta Marcelo Marques Gomes, de 43 anos, ao Estadão. O relato emocionado – que talvez para muitos pareça frugal – ocorre depois da participação na série Quilos Mortais, que ganhou uma versão brasileira na última quinta-feira, 9, no Max (antiga HBO). No início do terceiro episódio, com 202 quilos, não se via no próprio guarda-roupa. “A roupa te escolhe. Parece que você é um desenho em preto e branco, não tem nada colorido para usar.”
O episódio mostra o périplo de Gomes até a cirurgia bariátrica, procedimento indicado para casos graves de obesidade que consiste em uma “redução do estômago”, e como o preconceito molda a vida desse paciente. “O que mais me dói é sair para rua. As pessoas julgando. Parece que você é um monstro”, relata.
Preconceito esse que, inclusive, pode desestimular o paciente a buscar e seguir o tratamento adequado. “As pessoas demoram muito para procurar o tratamento, e a doença só vai piorando”, diz Marcelo Carneiro, cirurgião bariátrico que acompanhou Gomes, ao Estadão. Foram ao menos três anos de tentativas para que o xará começasse e seguisse com um tratamento.
“As pessoas sempre falaram: ‘você é sem vergonha’, ‘come demais’, ‘é relaxado’. Eu mesmo coloquei na cabeça que realmente era isso”, conta Gomes. “Achava que, por eu ser relaxado, não conseguiria perder peso para a cirurgia, e acabava desanimando.”
O contraste fica claro após o procedimento. Aos 107 quilos, hoje, Gomes retomou o controle do próprio guarda-roupa. “Eu escolho a camiseta que acho mais legal (não as únicas que me serviam).”
A série também traz uma reflexão importante sobre o acesso ao procedimento cirúrgico no Brasil, quando, já no primeiro episódio, conta a história de Carlos Willian, de 29 anos. Após quatro anos em busca da cirurgia pelo Sistema Único de Saúde (SUS), já aos 300 quilos e com muita dor, fez um apelo através da mídia e chegou a iniciar uma vaquinha em busca de ajuda.
Médicos voluntários se ofereceram para tratar o caso de forma gratuita. Primeiro, recebeu um balão intragástrico – insere-se um balão revestido de silicone ou poliuretano, que preenche parcialmente a cavidade do estômago e dá uma sensação de saciedade –, procedimento temporário para ajudar na perda de peso antes da cirurgia.
A perda de 5% a 10% do peso antes do procedimento é recomendada – embora não obrigatória – para reduzir os riscos, embora a taxa de mortalidade seja baixa. Segundo Marcello Giovani, cirurgião responsável pelo caso de Willian, há algumas razões para isso. Primeiro, muitos pacientes têm acúmulo de gordura no fígado (a chamada esteatose hepática), e como o “grampeamento” da bariátrica ocorre em uma região abaixo dele, pode ocorrer uma “rachadura” ao afastá-lo. “Não é uma coisa grave, mas atrapalha (a cirurgia) e aumenta a agressão cirúrgica ao paciente”, explica, ao Estadão.
Leia Também:
A gordura no entorno das alças intestinais e do estômago dificulta identificar onde ficam os vasos, as artérias e as veias. É preciso que sejam coagulados para evitar sangramentos. “O terceiro ponto, que é muito importante, grande parte desses pacientes, por conta da gordura no entorno do tronco e abdômen, pode ter uma dificuldade de movimentação durante a respiração. É uma restrição respiratória gerada pelo excesso de gordura. Quando reduz, melhora a expansão pulmonar e há menos risco de uma complicação respiratória.”
A estrutura dos episódios, inclusive, segue a dinâmica do peso, quase como num antes e depois. O que é um ponto de preocupação para médicos e nutricionistas não envolvidos na produção. Eles questionam reflexos de apresentar conceitos de dietas restritivas — de 800 a 1000 calorias, por exemplo — a um telespectador que não se beneficia disso, sem deixar esse ponto claro. Eles também apontam que o foco no peso empobrece a concepção da obesidade como uma doença multifatorial (isto é, com mais de uma causa).
Eles também sentem a falta de um foco maior nos demais profissionais de um batalhão multidisciplinar necessário para tratar essa doença. Além disso, destacam que a cirurgia não é a única possibilidade terapêutica para tratar todos os casos, e, naqueles em que é adequada, não pode ser entendida como uma bala de prata.
Obesidade
De acordo com a Pesquisa de Vigilância de Fatores de Risco e Proteção para Doenças Crônicas por Inquérito Telefônico (Vigitel), de 2021, a prevalência de excesso de peso (sobrepeso) na população brasileira é de 57,2% e a de obesidade, 22,4%. Especialistas apontam que, não só o Brasil, mas o mundo, vive uma verdadeira epidemia de obesidade, ao passo que a prevalência avança ano a ano.
Atualmente, o Brasil segue os “pontos de corte” da Organização Mundial da Saúde (OMS) para definir os quadros. O indicador usado é o índice de massa corporal (IMC), que é obtido ao dividir o peso pelo quadrado da altura (kg/m²).
Para adultos, a relação é:
- IMC inferior a 18,5: baixo peso
- IMC maior do que 18,5 e menor do que: peso saudável
- IMC maior do que 25 e menor do que 30: sobrepeso
- IMC de 30 ou mais: obesidade
A obesidade é frequentemente subdividida em:
- Grau 1: IMC de 30 e menor do que 35
- Grau 2: IMC de 35 e menor do que 40
- Grau 3 (alguns chamam de obesidade mórbida): IMC igual ou superior a 40
Alguns especialistas contestam o uso de IMC. Uma revisão publicada na Endocrine Reviews aponta que até um terço das pessoas com obesidade não apresentam anormalidades metabólicas evidentes – como colesterol ou glicemia elevados. É o que os médicos chamam de obesidade metabolicamente saudável. No entanto, essas pessoas têm maior chance de apresentar essas alterações do que aquelas com peso saudável, por isso, devem receber tratamento para obesidade também.
De maneira geral, o entendimento é de que o IMC é uma ferramenta de triagem mais barata e que ajuda a acender um alerta e identificar pacientes que se beneficiaram de um tratamento. Tudo começa na mudança de estilo de vida, com foco principal na alimentação e atividade física, mas, em alguns casos, a equipe de saúde pode prescrever medicamentos ou indicar a necessidade de uma cirurgia bariátrica.
Nos últimos anos, a comunicação em saúde tem se esforçado em fazer as pessoas entenderem a obesidade enquanto uma doença crônica, progressiva e multifatorial. Em palavras mais simples, é uma condição de saúde de longa duração — neste caso, não tem cura —, que progride ao longo do tempo, o que significa que o tratamento precisa começar cedo para evitar o avanço de sintomas e complicações, e pode ter múltiplas causas que interagem entre si.
Essas causas podem ser genéticas, fisiológicas, sociais, econômicas, ambientais e psicológicas. No caso de Gomes, por exemplo, uma disfunção na tireoide, uma glândula em forma de borboleta que fica localizada na parte anterior do pescoço e abraça a traqueia, era uma delas, segundo o cirurgião Carneiro.
“Quando o paciente tem hipotireoidismo (como Gomes), o metabolismo funciona de uma forma inadequada, mais lenta. Isso faz com que a pessoa tenha ganho de peso, de massa de gordura, e começa a ter alguns sintomas como fadiga. Ou seja, fica mais cansado, sonolento, e isso também desestimula a pessoa a fazer atividade física”, explica.
Antes de fazer a cirurgia, como aparece no episódio, foi preciso regular a disfunção. Mesmo após o procedimento, ele segue medicado para que ela não prejudique a continuidade do tratamento de mudança de estilo de vida.
“Eu usava comida como um escape da depressão”, conta Willian no primeiro episódio, após relatos sobre bullying e preconceito. “A obesidade é um desbalanço entre a sensação de saciedade e o gasto de energia”, fala Giovani. “Falando especificamente em saciedade, ela tem a ver com, fundamentalmente, dois neurotransmissores: a dopamina, que é a recompensa, e o outro chamado de serotonina, que é a sensação de satisfação”.
“Você pode não ter uma fome orgânica por falta de alimento, mas a fome da necessidade da recompensa, da dopamina, da serotonina”, diz. Segundo ele, isso pode ocorrer em momentos conturbados em que a pessoa se encontra fragilizada.
Leia Também:
Doenças associadas
A Associação Brasileira para o Estudo da Obesidade e da Síndrome Metabólica (Abeso) alerta para o risco elevado de doenças associadas a um quadro de obesidade, como diabetes, doenças cardiovasculares e alguns cânceres.
Antes da cirurgia, Gomes convivia, por exemplo, com um quadro grave de apneia, que consiste em uma suspensão da respiração por alguns segundos durante o sono. Essa condição, por sua vez, está associada a um aumento do risco de diversos outros quadros, como hipertensão, diabetes e insuficiência cardíaca
Cirurgia
No Brasil, as diretrizes do tratamento do sobrepeso e da obesidade são reguladas pelas portarias n° 424 e 425 do Ministério da Saúde. Segundo elas, a cirurgia bariátrica pode ser oferecida a pessoas com 16 anos ou mais com grau 3 ou com grau 2 desde que apresentem alguma comorbidade, como diabetes tipo 2.
Outros critérios precisam ser observados. O paciente precisa não ter respondido a tratamento de “mudança de hábitos, realização de dieta, atenção psicológica, prescrição de atividade física e, se necessário, farmacoterapia, realizado na Atenção Básica e/ ou Atenção Ambulatorial Especializada por no mínimo dois anos”.
Segundo médicos, no entanto, há uma grande disparidade entre pacientes atendidos na rede privada e aqueles do SUS. “É muito lento [no SUS] e são poucos os serviços que realizam”, destaca Giovani.
Periodicamente, a Sociedade Brasileira de Cirurgia Bariátrica e Metabólica (SBCBM) atualiza dados sobre o acesso ao procedimento no Brasil. Em março deste ano, eles publicaram que apenas 0,2% dos brasileiros com obesidade grave conseguiram realizar a cirurgia bariátrica pelo SUS.
Para isso, recorreram a bases de dados públicos. O Datasus contabilizava 7.511 cirurgias, enquanto o Sistema de Vigilância Alimentar e Nutricional (Sisvan) apontava que 1,99 milhão de pessoas diagnosticadas com obesidade grau 2, e outras 1,05 milhão com obesidade grau 3 — um total de 3,05 milhões.
Boletins anteriores já alertavam para uma queda nos procedimentos desde a pandemia da covid-19, quando, ao menos nas principais ondas, houve adiamento de vários tipos de cirurgias não consideradas emergenciais. O total de 2023 é 40,2% menor do que em 2019 (pré-pandemia), quando 12.568 cirurgias foram feitas pelo SUS.
Ao Estadão, o Ministério da Saúde disse que, de acordo com dados extraídos do Sistema de Informações Hospitalares (SIH/SUS), foram registradas 8.951 cirurgias bariátricas no ano de 2023. O total seria 15,43% maior do que o número de procedimentos de 2022, e 33,83% superior ao de 2021.
A pasta informou que “a regulação do acesso à saúde é de responsabilidade dos Estados e municípios”. “Os gestores locais devem garantir o acesso aos tratamentos necessários e, se preciso, encaminhar pacientes para outros locais.”
O ministério lembrou que, em 2023, lançou o Programa Nacional de Redução de Filas (PNRF) para ampliar cirurgias, reduzir filas de exames e consultas especializadas. Naquele ano, afirma, foram repassados R$ 600 milhões aos Estados, e em 2024, o investimento aumentou para R$ 1,2 bilhão.
Atualmente, o programa soma 2.478 solicitações de cirurgia bariátrica por videolaparoscopia, além de outros procedimentos pós-bariátricos. Desde o início do programa, foram realizadas 645 cirurgias, informa. A pasta ainda reforçou que a gestão dessas filas é realizada pelos Estados e municípios.
Há quem questione se, de fato, seria necessário aumentar o número de procedimentos, e pensam que seria mais produtivo analisar e elencar os pacientes prioritários. “A cirurgia foi normatizada no final dos anos 90 para pacientes com IMC maior do que 40. Mas a conduta foi ampliada para IMCs cada vez mais baixos sob o argumento de que teríamos muitos pacientes mais leves, menos pesados, com as mesmas condições mórbidas daqueles com IMC maior do que 40″, explica o endocrinologista Bruno Geloneze, professor da Faculdade de Ciências Médicas (FCM) da Unicamp, que não está envolvido na produção do Quilos Mortais Brasil.
“A comunidade cirúrgica argumenta que são feitas poucas cirurgias em relação ao total de indicações. Agora, considerando a preferência em operar pessoas com doenças associadas, podemos incluir pessoas mais doentes e mais leves, mas devemos reciprocamente excluir pessoas pesadas e razoavelmente saudáveis. Isso nunca é cogitado pelos cirurgiões”, completa.
“A regra parece ser: o IMC não serve quando quero operar alguém mais leve e passa a valer quando quero operar alguém mais pesado mesmo que não prioritário para a cirurgia. A pessoa parece ser um consumidor ou uma mercadoria”, diz. Enquanto isso, “o paciente prioritário, sem opção atual de tratamento cirúrgico, está pouquíssimo assistido e, na maioria das vezes, nas filas dos escassos serviços públicos focados nos casos mais difíceis”.
Antônio Carlos Valezi, presidente da SBCBM - também sem envolvimento com a produção -, concorda “parcialmente” com a crítica. “Nós temos esse universo gigantesco para operar, que não é o ideal. O ideal era ter uma série de pacientes que fossem tratados, tivesse o acesso ao endocrinologista e às medicações, que hoje são muito poderosas, de maneira que não precisássemos operar tantos.”
Na avaliação dele, no entanto, quando o paciente extrapola o IMC de 40 ou 35 com comorbidades associadas, a cirurgia é a melhor conduta. “(Só) O tratamento clínico não vai conseguir tirá-los dessa área de risco.”
Bala de prata
É preciso salientar que a cirurgia bariátrica não é uma “bala de prata”, mas parte de um complexo tratamento da obesidade, que exige uma mudança de comportamento do paciente, inclusive, para que não haja reganho de peso após o procedimento.
Nem todo ganho de peso após cirurgia é considerado um reganho de peso ou recidiva da obesidade. De acordo com a SBCBM, espera-se que, após 18 meses da cirurgia, haja um ganho de cerca de 10% do peso perdido, que seria uma “adaptação fisiológica de estabilização do peso perdido”.
Estudos, como este, apontam que 15% dos pacientes que se submetem a bariátrica – mais especificamente do tipo bypass gástrico em Y de Roux - apresentam reganho de peso, voltando à faixa de obesidade ou até mesmo obesidade grave entre cinco e dez anos depois do procedimento.
Em outras pesquisas, a taxa pode variar conforme a técnica utilizada na cirurgia. Além disso, é preciso destacar que a definição de reganho de peso não é exatamente consensual dentro da academia.
“85% das pessoas controlam (o peso), e grande parte dos que reganham, não reganham as comorbidades. É uma coisa muito curiosa. É o efeito metabólico da cirurgia”, diz Giovani.
Nesse contexto, inclusive, é importante reforçar que, seja antes ou depois de uma cirurgia com essa, é necessária uma equipe multidisciplinar para tratar desse paciente. Além de um cirurgião, no caso da iminência de uma cirurgia, Giovani aponta que são necessários, principalmente, um endocrinologista, um nutricionista, um psicólogo e um educador físico. Profissionais adicionais podem ser necessários, como dentista e fonoaudiólogo, a depender do caso.
‘Quilos Mortais’ aborda a obesidade com responsabilidade?
Quem assistiu percebe que a versão brasileira lembra muito pouco a americana, marcada por polêmicas sobre a abordagem agressiva e, por vezes, discriminatória dos médicos. A equipe de saúde brasileira, pelo menos nos episódios aos quais a reportagem teve acesso, são acolhedores e menos autoritários.
Os médicos envolvidos na produção destacam que a versão americana não foi inspiração para a conduta deles durante o programa, e que toparam participar da série para ajudar a informar que a obesidade é uma doença complexa e que a cirurgia bariátrica não é um monstro de sete cabeças ou uma decisão extrema, como por vezes pode parecer.
“Não pensei nem por um momento em comparar a versão brasileira com a americana. Só quis mostrar o nosso atendimento, como é feito aqui no Brasil”, diz Carneiro. “A obesidade e o sobrepeso afetam mais da metade da população brasileira. Isso também incentiva a gente a passar essa informação (correta e sensível).”
“O índice de mortalidade dos cirurgiões brasileiros [ao realizar o procedimento] é de 0,12%”, fala Giovani. “Radical é a obesidade, não a cirurgia. Entre as cinco principais causas de morte no Brasil, quatro delas têm relação direta com a obesidade.”
O que não pode deixar de ser dito é que Quilos Mortais Brasil já nasce um sucesso, figurando entre os seriados mais assistidos no Brasil da Max. Mesmo a versão americana, quando entrou no catálogo da plataforma de streaming, ocupou posição de destaque por aqui.
Por isso, o Estadão questionou outros especialistas não envolvidos na produção se programas como esse conseguem estimular um debate social e de saúde pública sobre obesidade. A reportagem enviou o trailer da série e uma breve descrição dos episódios que nos foram apresentados.
Para a colunista do Estadão Desire Coelho, nutricionista e bacharel em esporte, programas nesse formato têm uma “grande oportunidade” de demonstrar as diferentes causas da obesidade, mas eles “podem facilmente cair em uma narrativa apelativa pela audiência”.
“Existem alterações genéticas importantes que determinam a obesidade desde a primeira infância, e, por vezes, esses programas não abordam esses fatores tão importantes que têm a ver com o quão autocontrolada é a pessoa, quanta força de vontade tem”, diz.
Ela se preocupa também com a dinâmica dos episódios, pautados em um antes e depois envolvendo o quanto o paciente pesa a cada consulta. “Remete muito à dinâmica quase religiosa do penitente e do salvador, a jornada do herói. Existe uma pessoa que está arrependida, que quer mudar, e um especialista que promete salvá-la, promete a redenção.”
“Esse tipo de dinâmica é muito sedutora para a população, e está um pouco relacionada com a expectativa das pessoas de passar por um período de transformação, depois de anos de sofrimento, e terem a redenção. Mas a vida real não é assim”, avalia.
“O foco apenas no peso, os quilos mortais, empobrece a percepção da doença e fomenta uma abordagem centrada nos quilos, e não na pessoa”, concorda Geloneze.
Desire também se mostrou apreensiva com a apresentação de dietas de poucas calorias, sem um devido alerta.
“Acha complicado no programa colocarem os objetivos de perda de peso para entrar na cirurgia e contextualizarem de modo superficial a situação. Falam de dietas de 1.000 ou 800 calorias como se fossem coisas simples de serem conseguidas. Falta uma observação de que para população em geral esse tipo de conduta não é indicado”, fala Desire.
As estrelas do programa são o paciente e o cirurgião. Outros profissionais da equipe multidisciplinar também aparecem, mas com menos tempo de tela. Os especialistas ouvidos pelo Estadão destacam que seria preciso que essas aparições fossem melhor balanceadas.
“O cirurgião é importante, mas é apenas uma das peças do tratamento. Na minha opinião, deveria ser dado um maior enfoque para o psiquiatra, o psicólogo e o nutricionista, pois é o acompanhamento desses profissionais depois da cirurgia que garante a manutenção do resultado”, diz Desire.
“O profissional mais preparado em sua formação para dar o diagnóstico de uma doença genética específica não é o cirurgião. Da mesma forma, conduzir o manejo perioperatório [que vai do pré ao pós-operatório] das comorbidades metabólicas, mecânicas e psiquiátricas não pode ser atribuído ao cirurgião. Precisamos entender que alguns pacientes poderão desistir de serem operados e estariam sem destino se a abordagem fosse predominante ou exclusivamente focada no cirurgião e na cirurgia”, complementa Geloneze.
Sensacionalismo?
Raphael Liberatore, professor da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da USP e membro do Departamento de Endocrinologia Pediátrica da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP), avalia que, por recorrerem a casos extremos, programas como esse podem estigmatizar ainda mais a obesidade. “É aquela história do paciente muito obeso, que não consegue andar, que sente falta de ar, que precisa ser transportado para o consultório ou para o hospital.”
Geloneze pensa de forma parecida. “Aparentemente tratam os casos extremos em termos de peso como aberrações a serem corrigidas. A questão de saúde pública ou saúde coletiva não é abordada.”
Um dos grandes desafios, na opinião dele, é um programa como esse conseguir retratar a pessoa com obesidade como uma pessoa normal. “Produções que foquem na imagem do corpo obeso devem ser, antes de tudo, respeitosas. Imagens dos supostos hábitos inadequados, comendo algum alimento muito calórico, comendo de forma aparentemente voraz, são inadequadas, pois reforçam o conceito equivocado de que haveria uma especial falta de força de vontade, um desleixo consigo.”
Valezi discorda. “Algumas pessoas veem como sensacionalismo, mas temos que considerar que eles estão mostrando pacientes que realmente existem e que não deveriam ter chegado nessa condição. Temos que fazer é uma reflexão do porquê isso ocorreu. Seguramente, esses pacientes não foram acolhidos (adequadamente) no passado.”
“Esses casos existem. Talvez não tenhamos conhecimento porque essas pessoas nem saem de casa”, reforça.