Racismo e infância: como a arte pode ajudar na autoestima de crianças negras


Diálogo e representatividade estão entre as principais atitudes para fortalecer o amor próprio e fazer com que meninos e meninas conheçam seus valores em vez de questioná-los

Por Ana Lourenço
Atualização:

“Minha filha já falou que queria pintar o rosto com a pasta de dente”, conta Aline Carvalho, escritora e gerente de TI, de 47 anos. Ela explica que a menina Laura quis negar sua identidade, aos 6 anos, por causa de um sentimento de inferioridade que nasceu a partir dos comentários de colegas de turma e professores da escola.

Para reverter esse sentimento e mostrar a beleza da filha de forma lúdica, Aline escreveu o livro Menina bonita, que cor você tem?, pela Editora Multifoco. “A chegada dos meus filhos revolucionou a minha vida, me deu outro olhar para algumas temáticas. O livro foi uma maneira de falar com a minha filha, mas também uma maneira de ajudar outras mães a conversarem com seus filhos”, diz.

A necessidade de ser amado e de pertencer a um grupo é universal. E quando isso não é correspondido, especialmente na infância, as feridas são grandes. Por não entendermos bem o nosso “eu”, acreditamos naquilo que o outro vê e fala sobre a gente. Com crianças negras a questão é muito mais delicada, porque pode envolver discriminação e preconceito.

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“Se sou uma criança que escuto o tempo todo que não posso, que não sou bonita, entre outras coisas, os meus sonhos também vão sendo limitados dentro desse mundo que é possível na minha cabeça”, coloca a pesquisadora e escritora Francinai Gomes. “Passo a me ver somente dentro das informações que o mundo tem me dado sobre quem eu sou.”

Trabalhar a questão do racismo na infância, explicam os especialistas, é fortalecer a base de uma pessoa que muito provavelmente vai ser fragilizada no futuro e, assim, fazer com que ela cresça com autoestima e conheça seus valores, em vez de questioná-los.

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Os impactos do racismo na infância

De acordo com um estudo feito por pesquisadores da Universidade Harvard (EUA) sobre os impactos do racismo na infância, quanto mais elevado o nível de estresse de uma criança, maior será o desgaste que seu cérebro irá passar, afetando seu desenvolvimento e sistema biológico.

Foi assim com a educadora Luana Tolentino. Quando estava na 3ª série, ela era chamada de “macaca” por uma garota de sua sala. Cansada de ficar em silêncio, buscou ajuda com a professora de Matemática. “Tinha a esperança de que ela fosse tomar alguma atitude, mas ela me colocou diante da turma e perguntou: ‘Vocês acham que a Luana se parece com uma macaca?’ A sala começou a rir, fazer barulhos do animal e eu fiquei segurando o choro”, lembra ela.

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O episódio deixou marcas. Culpabilizada e envergonhada, a menina que era ótima em cálculos passou a ter dificuldades que permanecem até hoje.

A exposição ao estresse tóxico também faz com que as crianças tenham maior risco de desenvolver doenças crônicas ao longo da vida, além das sequelas visíveis na esfera social, como isolamento e distanciamento. O medo das interações ainda pode fazer com que ela fique sempre na defensiva e não seja totalmente autêntica. Consequentemente, o racismo impede a criança de brincar e viver sua infância de forma plena. “A pessoa vive em estado de alerta, com medo de sofrer ou presenciar alguma situação racista”, explica Gabriel Basilio, psicólogo e criador da página Psicologia Contra o Racismo.

Além disso, a criança pode ser levada a acreditar que existe um padrão definido para o que é belo. “E se o branco é a norma, todos os outros, principalmente o negro, entram como incorreto, como alguém que precisa se adequar.”

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Aline Carvalho com os filhos Laura, de 6 anos, e Lucas, de 8. Em casa, a conversa profunda é coisa séria Foto: WILTON JUNIOR

Como abordar a questão do racismo?

“A gente acha que só porque não existe um pensamento crítico durante a infância, as crianças não pensam sobre isso, mas o nosso corpo também tem memória por meio de impressões, sensações e sentimentos”, diz Francinai.

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O diálogo é a grande chave para construir a autoestima das crianças. A partir das conversas, Aline notou o incômodo de Laura com o posicionamento de algumas pessoas em sua escola. “Apesar da idade dos meus filhos, eu converso com eles sobre muitos temas, e percebi que isso fez com que eles mudassem a maneira como se viam e como viam as pessoas negras”, diz.

A família é a primeira escola. A partir do momento em que ali se estabelece um ambiente de confiança, a criança pode se expressar e receber apoio para aumentar sua autoestima e amor próprio. “A conversa ajuda a fortalecer a criança em eventuais situações de racismo. É óbvio que ela não vai estar preparada para lidar com isso, porque a gente nunca está. Mas não a afetará tanto. Ela consegue, de alguma forma, entender o que está acontecendo e sabe como responder”, afirma Aline.

A pesquisadora e estudante de psicologia Bárbara Borges ressalta o papel valioso da escuta. “Os adultos se comportam como se ouvir as crianças fosse muito difícil, e isso é mentira. É preciso ouvi-las com atenção e buscar entender o que que ela está expressando”, afirma.

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Negar ou minimizar o problema, para ela, é um dos maiores erros. “Enquanto a gente continuar ignorando o racismo e o sofrimento das crianças, a gente não vai poder falar abertamente sobre isso.”

Vale observar que o autocuidado do adulto também afeta esse imaginário infantil. Com os pais e familiares, as crianças podem aprender a amar o cabelo, os traços e os cuidados com a pele. Nesse ambiente, também é possível conversar mais sobre a própria história e as origens.

O psicólogo Gabriel Basilio lembra que muitos comportamentos das crianças são espelhados nas atitudes dos outros, sejam boas ou ruins. “A criança aprende de algum lugar: de casa, da escola e da comunidade que ela está inserida. Depois, ela reproduz”, diz.

Para fazer da escola um lugar de acolhimento, Luana Tolentino promove práticas pedagógicas antirracistas descritas em seu livro Outra educação é possível. “Desde 2003, nós temos uma lei federal que determina o ensino da história da cultura africana e afro-brasileira em sala de aula justamente para enfrentar e superar esses processos discriminatórios dos quais a criança negra é alvo”, conta.

Para a autora, a lei também direciona práticas cotidianas e pedagógicas que levam a criança a ter orgulho da sua história. Fora isso, ensina as crianças não negras a respeitarem e valorizarem a diversidade do País.

Quais são as diferenças entre bullying e racismo?

Ambos são condenáveis, mas, para evitar o debate racial, muitos preferem trocar o nome. “O racismo pode se manifestar pelo bullying. Enquanto o primeiro se refere à população geral, o outro é dirigido a um grupo específico. A distinção é importante pelo seu valor político, histórico e social”, explica Francinai.

O diálogo pode ser complementado pela arte, um dos principais meios para a representatividade. “A partir dos 6 anos, a criança já vai entendendo melhor o mundo e quem ela é. A gente pode começar a trabalhar com o lúdico, com filmes e livros infantis que falam sobre a questão da identidade negra, das religiões de matriz africana”, orienta Luana.

No Brasil, representantes de duas editoras especializadas na cultura afro-brasileira acreditam ser imprescindível a publicação de livros com essa didática. “Durante um período, a última coisa que eu desejava era ter nascido negra. Era revoltada com minha cor, meus cabelos e os apelidos que recebia. Nunca tive a chance de ser personagem nas representações infantis na escola, como princesa ou rainha. Daí minha preocupação com texto e ilustrações em nossas publicações, para que meninas e meninos se sintam representados ali”, conta Maria Mazarello Rodrigues, fundadora da Mazza Edições.

O editor Vagner Amaro, da Editora Malê, considera que introduzir o tema nos livros possibilita que crianças e jovens aprimorem o senso crítico sobre a prática de racismo e se engajem em práticas antirracistas. “É importante falar sobre racismo em obras infantis e juvenis para tirar esse tema da condição de tabu, pouco abordado pelos constrangimentos que ele causa”, raciocina.

Arte como influenciadora de amor próprio

Diferentemente das referências negativas das peças de ficção, como malandro, bandido ou subalternizado, é preciso colocar figuras positivas no imaginário infantil. Daí a relevância da arte, desde a literatura até o teatro.

'Menina bonita que cor você tem', de Aline Carvalho é um entre os tantos livros que tratam sobre o tema do racismo Foto: WILTON JUNIOR

“A representatividade impacta diretamente. Na década de 70, a minha geração não teve essa oportunidade tão brilhante de nos vermos. Muito pelo contrário: os livros não eram livros como a gente tem hoje, com personagens contando a sua própria história. Os protagonistas eram brancos”, conta a escritora e atriz Cássia Valle.

Hoje, ela faz questão de propor novas histórias. Calu, a menina cheia de histórias, da Editora Malê, por exemplo, fala sobreo valor do contato com a ancestralidade. Já Aziza, a preciosa contadora de sonhos, luta contra o “Dragão da maldade”, uma metáfora para o racismo. “Procuro buscar essa representatividade e mostrar para nossas crianças que somos belíssimos, que temos poderes, que somos descendentes de africanos e isso nos faz ficar mais próximos. Acredito de verdade que, desde muito cedo, a gente pode influenciar a autoimagem positiva”, diz Cássia.

Para as crianças não negras, a introdução de filmes, livros, brinquedos, personalidades negras no cotidiano e no ensino também ajuda no respeito da diversidade. “A melhor forma de a gente entender é por meio do estudo, é falar sobre o tema, ler livros, porque assim fazemos um letramento racial. Ou seja, entendemos a questão a fundo para não ser um reprodutor de racismo”, indica Basilio.

Algumas produções para ajudar na construção da autoestima

  • No livro Amoras (Companhia das Letrinhas), o rapper Emicida fala sobre a importância de nos reconhecermos nos pequenos detalhes do mundo.
  • O podcast Amma Psique e Negritude levanta questões raciais a partir de uma abordagem psicossocial.
  • Sobrevivendo ao Racismo: memórias, cartas e o cotidiano da discriminação no Brasil (Mazza Edições), de Luana Tolentino, faz um registro, através de crônicas e cartas, de algumas violências que as pessoas negras passam no Brasil.
  • O curta-metragem Ana (disponível no Youtube), com direção de Vitória Felipe dos Santos. A menina não se reconhece como negra e passa a entender a relevância de se valorizar dessa maneira quando conhece uma refugiada do Congo.
  • O desenho animado Cada um na sua casa, da Dreamworks, (disponível na plataforma Netflix) mostra as aventuras de Tip, uma menina negra, e Oh, um alienígena de um bando que invade a Terra. Ao longo da trama, eles falam sobre a lealdade e o respeito às diferenças.
  • Antes peça de teatro, agora livro, o O Pequeno Príncipe Preto (Editora Nova Fronteira), de Rodrigo França, fala da importância de valorizarmos quem somos e de onde viemos.
  • A campanha ‘Infância sem Racismo’, da Unicef (também disponível no Youtube), traz artigos e vídeos para ajudar a reduzir os impactos do racismo na infância.

* Este conteúdo foi produzido em parcerias com as editoras Malê e Mazza, especializadas em conteúdos afro-brasileiros

“Minha filha já falou que queria pintar o rosto com a pasta de dente”, conta Aline Carvalho, escritora e gerente de TI, de 47 anos. Ela explica que a menina Laura quis negar sua identidade, aos 6 anos, por causa de um sentimento de inferioridade que nasceu a partir dos comentários de colegas de turma e professores da escola.

Para reverter esse sentimento e mostrar a beleza da filha de forma lúdica, Aline escreveu o livro Menina bonita, que cor você tem?, pela Editora Multifoco. “A chegada dos meus filhos revolucionou a minha vida, me deu outro olhar para algumas temáticas. O livro foi uma maneira de falar com a minha filha, mas também uma maneira de ajudar outras mães a conversarem com seus filhos”, diz.

A necessidade de ser amado e de pertencer a um grupo é universal. E quando isso não é correspondido, especialmente na infância, as feridas são grandes. Por não entendermos bem o nosso “eu”, acreditamos naquilo que o outro vê e fala sobre a gente. Com crianças negras a questão é muito mais delicada, porque pode envolver discriminação e preconceito.

“Se sou uma criança que escuto o tempo todo que não posso, que não sou bonita, entre outras coisas, os meus sonhos também vão sendo limitados dentro desse mundo que é possível na minha cabeça”, coloca a pesquisadora e escritora Francinai Gomes. “Passo a me ver somente dentro das informações que o mundo tem me dado sobre quem eu sou.”

Trabalhar a questão do racismo na infância, explicam os especialistas, é fortalecer a base de uma pessoa que muito provavelmente vai ser fragilizada no futuro e, assim, fazer com que ela cresça com autoestima e conheça seus valores, em vez de questioná-los.

Os impactos do racismo na infância

De acordo com um estudo feito por pesquisadores da Universidade Harvard (EUA) sobre os impactos do racismo na infância, quanto mais elevado o nível de estresse de uma criança, maior será o desgaste que seu cérebro irá passar, afetando seu desenvolvimento e sistema biológico.

Foi assim com a educadora Luana Tolentino. Quando estava na 3ª série, ela era chamada de “macaca” por uma garota de sua sala. Cansada de ficar em silêncio, buscou ajuda com a professora de Matemática. “Tinha a esperança de que ela fosse tomar alguma atitude, mas ela me colocou diante da turma e perguntou: ‘Vocês acham que a Luana se parece com uma macaca?’ A sala começou a rir, fazer barulhos do animal e eu fiquei segurando o choro”, lembra ela.

O episódio deixou marcas. Culpabilizada e envergonhada, a menina que era ótima em cálculos passou a ter dificuldades que permanecem até hoje.

A exposição ao estresse tóxico também faz com que as crianças tenham maior risco de desenvolver doenças crônicas ao longo da vida, além das sequelas visíveis na esfera social, como isolamento e distanciamento. O medo das interações ainda pode fazer com que ela fique sempre na defensiva e não seja totalmente autêntica. Consequentemente, o racismo impede a criança de brincar e viver sua infância de forma plena. “A pessoa vive em estado de alerta, com medo de sofrer ou presenciar alguma situação racista”, explica Gabriel Basilio, psicólogo e criador da página Psicologia Contra o Racismo.

Além disso, a criança pode ser levada a acreditar que existe um padrão definido para o que é belo. “E se o branco é a norma, todos os outros, principalmente o negro, entram como incorreto, como alguém que precisa se adequar.”

Aline Carvalho com os filhos Laura, de 6 anos, e Lucas, de 8. Em casa, a conversa profunda é coisa séria Foto: WILTON JUNIOR

Como abordar a questão do racismo?

“A gente acha que só porque não existe um pensamento crítico durante a infância, as crianças não pensam sobre isso, mas o nosso corpo também tem memória por meio de impressões, sensações e sentimentos”, diz Francinai.

O diálogo é a grande chave para construir a autoestima das crianças. A partir das conversas, Aline notou o incômodo de Laura com o posicionamento de algumas pessoas em sua escola. “Apesar da idade dos meus filhos, eu converso com eles sobre muitos temas, e percebi que isso fez com que eles mudassem a maneira como se viam e como viam as pessoas negras”, diz.

A família é a primeira escola. A partir do momento em que ali se estabelece um ambiente de confiança, a criança pode se expressar e receber apoio para aumentar sua autoestima e amor próprio. “A conversa ajuda a fortalecer a criança em eventuais situações de racismo. É óbvio que ela não vai estar preparada para lidar com isso, porque a gente nunca está. Mas não a afetará tanto. Ela consegue, de alguma forma, entender o que está acontecendo e sabe como responder”, afirma Aline.

A pesquisadora e estudante de psicologia Bárbara Borges ressalta o papel valioso da escuta. “Os adultos se comportam como se ouvir as crianças fosse muito difícil, e isso é mentira. É preciso ouvi-las com atenção e buscar entender o que que ela está expressando”, afirma.

Negar ou minimizar o problema, para ela, é um dos maiores erros. “Enquanto a gente continuar ignorando o racismo e o sofrimento das crianças, a gente não vai poder falar abertamente sobre isso.”

Vale observar que o autocuidado do adulto também afeta esse imaginário infantil. Com os pais e familiares, as crianças podem aprender a amar o cabelo, os traços e os cuidados com a pele. Nesse ambiente, também é possível conversar mais sobre a própria história e as origens.

O psicólogo Gabriel Basilio lembra que muitos comportamentos das crianças são espelhados nas atitudes dos outros, sejam boas ou ruins. “A criança aprende de algum lugar: de casa, da escola e da comunidade que ela está inserida. Depois, ela reproduz”, diz.

Para fazer da escola um lugar de acolhimento, Luana Tolentino promove práticas pedagógicas antirracistas descritas em seu livro Outra educação é possível. “Desde 2003, nós temos uma lei federal que determina o ensino da história da cultura africana e afro-brasileira em sala de aula justamente para enfrentar e superar esses processos discriminatórios dos quais a criança negra é alvo”, conta.

Para a autora, a lei também direciona práticas cotidianas e pedagógicas que levam a criança a ter orgulho da sua história. Fora isso, ensina as crianças não negras a respeitarem e valorizarem a diversidade do País.

Quais são as diferenças entre bullying e racismo?

Ambos são condenáveis, mas, para evitar o debate racial, muitos preferem trocar o nome. “O racismo pode se manifestar pelo bullying. Enquanto o primeiro se refere à população geral, o outro é dirigido a um grupo específico. A distinção é importante pelo seu valor político, histórico e social”, explica Francinai.

O diálogo pode ser complementado pela arte, um dos principais meios para a representatividade. “A partir dos 6 anos, a criança já vai entendendo melhor o mundo e quem ela é. A gente pode começar a trabalhar com o lúdico, com filmes e livros infantis que falam sobre a questão da identidade negra, das religiões de matriz africana”, orienta Luana.

No Brasil, representantes de duas editoras especializadas na cultura afro-brasileira acreditam ser imprescindível a publicação de livros com essa didática. “Durante um período, a última coisa que eu desejava era ter nascido negra. Era revoltada com minha cor, meus cabelos e os apelidos que recebia. Nunca tive a chance de ser personagem nas representações infantis na escola, como princesa ou rainha. Daí minha preocupação com texto e ilustrações em nossas publicações, para que meninas e meninos se sintam representados ali”, conta Maria Mazarello Rodrigues, fundadora da Mazza Edições.

O editor Vagner Amaro, da Editora Malê, considera que introduzir o tema nos livros possibilita que crianças e jovens aprimorem o senso crítico sobre a prática de racismo e se engajem em práticas antirracistas. “É importante falar sobre racismo em obras infantis e juvenis para tirar esse tema da condição de tabu, pouco abordado pelos constrangimentos que ele causa”, raciocina.

Arte como influenciadora de amor próprio

Diferentemente das referências negativas das peças de ficção, como malandro, bandido ou subalternizado, é preciso colocar figuras positivas no imaginário infantil. Daí a relevância da arte, desde a literatura até o teatro.

'Menina bonita que cor você tem', de Aline Carvalho é um entre os tantos livros que tratam sobre o tema do racismo Foto: WILTON JUNIOR

“A representatividade impacta diretamente. Na década de 70, a minha geração não teve essa oportunidade tão brilhante de nos vermos. Muito pelo contrário: os livros não eram livros como a gente tem hoje, com personagens contando a sua própria história. Os protagonistas eram brancos”, conta a escritora e atriz Cássia Valle.

Hoje, ela faz questão de propor novas histórias. Calu, a menina cheia de histórias, da Editora Malê, por exemplo, fala sobreo valor do contato com a ancestralidade. Já Aziza, a preciosa contadora de sonhos, luta contra o “Dragão da maldade”, uma metáfora para o racismo. “Procuro buscar essa representatividade e mostrar para nossas crianças que somos belíssimos, que temos poderes, que somos descendentes de africanos e isso nos faz ficar mais próximos. Acredito de verdade que, desde muito cedo, a gente pode influenciar a autoimagem positiva”, diz Cássia.

Para as crianças não negras, a introdução de filmes, livros, brinquedos, personalidades negras no cotidiano e no ensino também ajuda no respeito da diversidade. “A melhor forma de a gente entender é por meio do estudo, é falar sobre o tema, ler livros, porque assim fazemos um letramento racial. Ou seja, entendemos a questão a fundo para não ser um reprodutor de racismo”, indica Basilio.

Algumas produções para ajudar na construção da autoestima

  • No livro Amoras (Companhia das Letrinhas), o rapper Emicida fala sobre a importância de nos reconhecermos nos pequenos detalhes do mundo.
  • O podcast Amma Psique e Negritude levanta questões raciais a partir de uma abordagem psicossocial.
  • Sobrevivendo ao Racismo: memórias, cartas e o cotidiano da discriminação no Brasil (Mazza Edições), de Luana Tolentino, faz um registro, através de crônicas e cartas, de algumas violências que as pessoas negras passam no Brasil.
  • O curta-metragem Ana (disponível no Youtube), com direção de Vitória Felipe dos Santos. A menina não se reconhece como negra e passa a entender a relevância de se valorizar dessa maneira quando conhece uma refugiada do Congo.
  • O desenho animado Cada um na sua casa, da Dreamworks, (disponível na plataforma Netflix) mostra as aventuras de Tip, uma menina negra, e Oh, um alienígena de um bando que invade a Terra. Ao longo da trama, eles falam sobre a lealdade e o respeito às diferenças.
  • Antes peça de teatro, agora livro, o O Pequeno Príncipe Preto (Editora Nova Fronteira), de Rodrigo França, fala da importância de valorizarmos quem somos e de onde viemos.
  • A campanha ‘Infância sem Racismo’, da Unicef (também disponível no Youtube), traz artigos e vídeos para ajudar a reduzir os impactos do racismo na infância.

* Este conteúdo foi produzido em parcerias com as editoras Malê e Mazza, especializadas em conteúdos afro-brasileiros

“Minha filha já falou que queria pintar o rosto com a pasta de dente”, conta Aline Carvalho, escritora e gerente de TI, de 47 anos. Ela explica que a menina Laura quis negar sua identidade, aos 6 anos, por causa de um sentimento de inferioridade que nasceu a partir dos comentários de colegas de turma e professores da escola.

Para reverter esse sentimento e mostrar a beleza da filha de forma lúdica, Aline escreveu o livro Menina bonita, que cor você tem?, pela Editora Multifoco. “A chegada dos meus filhos revolucionou a minha vida, me deu outro olhar para algumas temáticas. O livro foi uma maneira de falar com a minha filha, mas também uma maneira de ajudar outras mães a conversarem com seus filhos”, diz.

A necessidade de ser amado e de pertencer a um grupo é universal. E quando isso não é correspondido, especialmente na infância, as feridas são grandes. Por não entendermos bem o nosso “eu”, acreditamos naquilo que o outro vê e fala sobre a gente. Com crianças negras a questão é muito mais delicada, porque pode envolver discriminação e preconceito.

“Se sou uma criança que escuto o tempo todo que não posso, que não sou bonita, entre outras coisas, os meus sonhos também vão sendo limitados dentro desse mundo que é possível na minha cabeça”, coloca a pesquisadora e escritora Francinai Gomes. “Passo a me ver somente dentro das informações que o mundo tem me dado sobre quem eu sou.”

Trabalhar a questão do racismo na infância, explicam os especialistas, é fortalecer a base de uma pessoa que muito provavelmente vai ser fragilizada no futuro e, assim, fazer com que ela cresça com autoestima e conheça seus valores, em vez de questioná-los.

Os impactos do racismo na infância

De acordo com um estudo feito por pesquisadores da Universidade Harvard (EUA) sobre os impactos do racismo na infância, quanto mais elevado o nível de estresse de uma criança, maior será o desgaste que seu cérebro irá passar, afetando seu desenvolvimento e sistema biológico.

Foi assim com a educadora Luana Tolentino. Quando estava na 3ª série, ela era chamada de “macaca” por uma garota de sua sala. Cansada de ficar em silêncio, buscou ajuda com a professora de Matemática. “Tinha a esperança de que ela fosse tomar alguma atitude, mas ela me colocou diante da turma e perguntou: ‘Vocês acham que a Luana se parece com uma macaca?’ A sala começou a rir, fazer barulhos do animal e eu fiquei segurando o choro”, lembra ela.

O episódio deixou marcas. Culpabilizada e envergonhada, a menina que era ótima em cálculos passou a ter dificuldades que permanecem até hoje.

A exposição ao estresse tóxico também faz com que as crianças tenham maior risco de desenvolver doenças crônicas ao longo da vida, além das sequelas visíveis na esfera social, como isolamento e distanciamento. O medo das interações ainda pode fazer com que ela fique sempre na defensiva e não seja totalmente autêntica. Consequentemente, o racismo impede a criança de brincar e viver sua infância de forma plena. “A pessoa vive em estado de alerta, com medo de sofrer ou presenciar alguma situação racista”, explica Gabriel Basilio, psicólogo e criador da página Psicologia Contra o Racismo.

Além disso, a criança pode ser levada a acreditar que existe um padrão definido para o que é belo. “E se o branco é a norma, todos os outros, principalmente o negro, entram como incorreto, como alguém que precisa se adequar.”

Aline Carvalho com os filhos Laura, de 6 anos, e Lucas, de 8. Em casa, a conversa profunda é coisa séria Foto: WILTON JUNIOR

Como abordar a questão do racismo?

“A gente acha que só porque não existe um pensamento crítico durante a infância, as crianças não pensam sobre isso, mas o nosso corpo também tem memória por meio de impressões, sensações e sentimentos”, diz Francinai.

O diálogo é a grande chave para construir a autoestima das crianças. A partir das conversas, Aline notou o incômodo de Laura com o posicionamento de algumas pessoas em sua escola. “Apesar da idade dos meus filhos, eu converso com eles sobre muitos temas, e percebi que isso fez com que eles mudassem a maneira como se viam e como viam as pessoas negras”, diz.

A família é a primeira escola. A partir do momento em que ali se estabelece um ambiente de confiança, a criança pode se expressar e receber apoio para aumentar sua autoestima e amor próprio. “A conversa ajuda a fortalecer a criança em eventuais situações de racismo. É óbvio que ela não vai estar preparada para lidar com isso, porque a gente nunca está. Mas não a afetará tanto. Ela consegue, de alguma forma, entender o que está acontecendo e sabe como responder”, afirma Aline.

A pesquisadora e estudante de psicologia Bárbara Borges ressalta o papel valioso da escuta. “Os adultos se comportam como se ouvir as crianças fosse muito difícil, e isso é mentira. É preciso ouvi-las com atenção e buscar entender o que que ela está expressando”, afirma.

Negar ou minimizar o problema, para ela, é um dos maiores erros. “Enquanto a gente continuar ignorando o racismo e o sofrimento das crianças, a gente não vai poder falar abertamente sobre isso.”

Vale observar que o autocuidado do adulto também afeta esse imaginário infantil. Com os pais e familiares, as crianças podem aprender a amar o cabelo, os traços e os cuidados com a pele. Nesse ambiente, também é possível conversar mais sobre a própria história e as origens.

O psicólogo Gabriel Basilio lembra que muitos comportamentos das crianças são espelhados nas atitudes dos outros, sejam boas ou ruins. “A criança aprende de algum lugar: de casa, da escola e da comunidade que ela está inserida. Depois, ela reproduz”, diz.

Para fazer da escola um lugar de acolhimento, Luana Tolentino promove práticas pedagógicas antirracistas descritas em seu livro Outra educação é possível. “Desde 2003, nós temos uma lei federal que determina o ensino da história da cultura africana e afro-brasileira em sala de aula justamente para enfrentar e superar esses processos discriminatórios dos quais a criança negra é alvo”, conta.

Para a autora, a lei também direciona práticas cotidianas e pedagógicas que levam a criança a ter orgulho da sua história. Fora isso, ensina as crianças não negras a respeitarem e valorizarem a diversidade do País.

Quais são as diferenças entre bullying e racismo?

Ambos são condenáveis, mas, para evitar o debate racial, muitos preferem trocar o nome. “O racismo pode se manifestar pelo bullying. Enquanto o primeiro se refere à população geral, o outro é dirigido a um grupo específico. A distinção é importante pelo seu valor político, histórico e social”, explica Francinai.

O diálogo pode ser complementado pela arte, um dos principais meios para a representatividade. “A partir dos 6 anos, a criança já vai entendendo melhor o mundo e quem ela é. A gente pode começar a trabalhar com o lúdico, com filmes e livros infantis que falam sobre a questão da identidade negra, das religiões de matriz africana”, orienta Luana.

No Brasil, representantes de duas editoras especializadas na cultura afro-brasileira acreditam ser imprescindível a publicação de livros com essa didática. “Durante um período, a última coisa que eu desejava era ter nascido negra. Era revoltada com minha cor, meus cabelos e os apelidos que recebia. Nunca tive a chance de ser personagem nas representações infantis na escola, como princesa ou rainha. Daí minha preocupação com texto e ilustrações em nossas publicações, para que meninas e meninos se sintam representados ali”, conta Maria Mazarello Rodrigues, fundadora da Mazza Edições.

O editor Vagner Amaro, da Editora Malê, considera que introduzir o tema nos livros possibilita que crianças e jovens aprimorem o senso crítico sobre a prática de racismo e se engajem em práticas antirracistas. “É importante falar sobre racismo em obras infantis e juvenis para tirar esse tema da condição de tabu, pouco abordado pelos constrangimentos que ele causa”, raciocina.

Arte como influenciadora de amor próprio

Diferentemente das referências negativas das peças de ficção, como malandro, bandido ou subalternizado, é preciso colocar figuras positivas no imaginário infantil. Daí a relevância da arte, desde a literatura até o teatro.

'Menina bonita que cor você tem', de Aline Carvalho é um entre os tantos livros que tratam sobre o tema do racismo Foto: WILTON JUNIOR

“A representatividade impacta diretamente. Na década de 70, a minha geração não teve essa oportunidade tão brilhante de nos vermos. Muito pelo contrário: os livros não eram livros como a gente tem hoje, com personagens contando a sua própria história. Os protagonistas eram brancos”, conta a escritora e atriz Cássia Valle.

Hoje, ela faz questão de propor novas histórias. Calu, a menina cheia de histórias, da Editora Malê, por exemplo, fala sobreo valor do contato com a ancestralidade. Já Aziza, a preciosa contadora de sonhos, luta contra o “Dragão da maldade”, uma metáfora para o racismo. “Procuro buscar essa representatividade e mostrar para nossas crianças que somos belíssimos, que temos poderes, que somos descendentes de africanos e isso nos faz ficar mais próximos. Acredito de verdade que, desde muito cedo, a gente pode influenciar a autoimagem positiva”, diz Cássia.

Para as crianças não negras, a introdução de filmes, livros, brinquedos, personalidades negras no cotidiano e no ensino também ajuda no respeito da diversidade. “A melhor forma de a gente entender é por meio do estudo, é falar sobre o tema, ler livros, porque assim fazemos um letramento racial. Ou seja, entendemos a questão a fundo para não ser um reprodutor de racismo”, indica Basilio.

Algumas produções para ajudar na construção da autoestima

  • No livro Amoras (Companhia das Letrinhas), o rapper Emicida fala sobre a importância de nos reconhecermos nos pequenos detalhes do mundo.
  • O podcast Amma Psique e Negritude levanta questões raciais a partir de uma abordagem psicossocial.
  • Sobrevivendo ao Racismo: memórias, cartas e o cotidiano da discriminação no Brasil (Mazza Edições), de Luana Tolentino, faz um registro, através de crônicas e cartas, de algumas violências que as pessoas negras passam no Brasil.
  • O curta-metragem Ana (disponível no Youtube), com direção de Vitória Felipe dos Santos. A menina não se reconhece como negra e passa a entender a relevância de se valorizar dessa maneira quando conhece uma refugiada do Congo.
  • O desenho animado Cada um na sua casa, da Dreamworks, (disponível na plataforma Netflix) mostra as aventuras de Tip, uma menina negra, e Oh, um alienígena de um bando que invade a Terra. Ao longo da trama, eles falam sobre a lealdade e o respeito às diferenças.
  • Antes peça de teatro, agora livro, o O Pequeno Príncipe Preto (Editora Nova Fronteira), de Rodrigo França, fala da importância de valorizarmos quem somos e de onde viemos.
  • A campanha ‘Infância sem Racismo’, da Unicef (também disponível no Youtube), traz artigos e vídeos para ajudar a reduzir os impactos do racismo na infância.

* Este conteúdo foi produzido em parcerias com as editoras Malê e Mazza, especializadas em conteúdos afro-brasileiros

“Minha filha já falou que queria pintar o rosto com a pasta de dente”, conta Aline Carvalho, escritora e gerente de TI, de 47 anos. Ela explica que a menina Laura quis negar sua identidade, aos 6 anos, por causa de um sentimento de inferioridade que nasceu a partir dos comentários de colegas de turma e professores da escola.

Para reverter esse sentimento e mostrar a beleza da filha de forma lúdica, Aline escreveu o livro Menina bonita, que cor você tem?, pela Editora Multifoco. “A chegada dos meus filhos revolucionou a minha vida, me deu outro olhar para algumas temáticas. O livro foi uma maneira de falar com a minha filha, mas também uma maneira de ajudar outras mães a conversarem com seus filhos”, diz.

A necessidade de ser amado e de pertencer a um grupo é universal. E quando isso não é correspondido, especialmente na infância, as feridas são grandes. Por não entendermos bem o nosso “eu”, acreditamos naquilo que o outro vê e fala sobre a gente. Com crianças negras a questão é muito mais delicada, porque pode envolver discriminação e preconceito.

“Se sou uma criança que escuto o tempo todo que não posso, que não sou bonita, entre outras coisas, os meus sonhos também vão sendo limitados dentro desse mundo que é possível na minha cabeça”, coloca a pesquisadora e escritora Francinai Gomes. “Passo a me ver somente dentro das informações que o mundo tem me dado sobre quem eu sou.”

Trabalhar a questão do racismo na infância, explicam os especialistas, é fortalecer a base de uma pessoa que muito provavelmente vai ser fragilizada no futuro e, assim, fazer com que ela cresça com autoestima e conheça seus valores, em vez de questioná-los.

Os impactos do racismo na infância

De acordo com um estudo feito por pesquisadores da Universidade Harvard (EUA) sobre os impactos do racismo na infância, quanto mais elevado o nível de estresse de uma criança, maior será o desgaste que seu cérebro irá passar, afetando seu desenvolvimento e sistema biológico.

Foi assim com a educadora Luana Tolentino. Quando estava na 3ª série, ela era chamada de “macaca” por uma garota de sua sala. Cansada de ficar em silêncio, buscou ajuda com a professora de Matemática. “Tinha a esperança de que ela fosse tomar alguma atitude, mas ela me colocou diante da turma e perguntou: ‘Vocês acham que a Luana se parece com uma macaca?’ A sala começou a rir, fazer barulhos do animal e eu fiquei segurando o choro”, lembra ela.

O episódio deixou marcas. Culpabilizada e envergonhada, a menina que era ótima em cálculos passou a ter dificuldades que permanecem até hoje.

A exposição ao estresse tóxico também faz com que as crianças tenham maior risco de desenvolver doenças crônicas ao longo da vida, além das sequelas visíveis na esfera social, como isolamento e distanciamento. O medo das interações ainda pode fazer com que ela fique sempre na defensiva e não seja totalmente autêntica. Consequentemente, o racismo impede a criança de brincar e viver sua infância de forma plena. “A pessoa vive em estado de alerta, com medo de sofrer ou presenciar alguma situação racista”, explica Gabriel Basilio, psicólogo e criador da página Psicologia Contra o Racismo.

Além disso, a criança pode ser levada a acreditar que existe um padrão definido para o que é belo. “E se o branco é a norma, todos os outros, principalmente o negro, entram como incorreto, como alguém que precisa se adequar.”

Aline Carvalho com os filhos Laura, de 6 anos, e Lucas, de 8. Em casa, a conversa profunda é coisa séria Foto: WILTON JUNIOR

Como abordar a questão do racismo?

“A gente acha que só porque não existe um pensamento crítico durante a infância, as crianças não pensam sobre isso, mas o nosso corpo também tem memória por meio de impressões, sensações e sentimentos”, diz Francinai.

O diálogo é a grande chave para construir a autoestima das crianças. A partir das conversas, Aline notou o incômodo de Laura com o posicionamento de algumas pessoas em sua escola. “Apesar da idade dos meus filhos, eu converso com eles sobre muitos temas, e percebi que isso fez com que eles mudassem a maneira como se viam e como viam as pessoas negras”, diz.

A família é a primeira escola. A partir do momento em que ali se estabelece um ambiente de confiança, a criança pode se expressar e receber apoio para aumentar sua autoestima e amor próprio. “A conversa ajuda a fortalecer a criança em eventuais situações de racismo. É óbvio que ela não vai estar preparada para lidar com isso, porque a gente nunca está. Mas não a afetará tanto. Ela consegue, de alguma forma, entender o que está acontecendo e sabe como responder”, afirma Aline.

A pesquisadora e estudante de psicologia Bárbara Borges ressalta o papel valioso da escuta. “Os adultos se comportam como se ouvir as crianças fosse muito difícil, e isso é mentira. É preciso ouvi-las com atenção e buscar entender o que que ela está expressando”, afirma.

Negar ou minimizar o problema, para ela, é um dos maiores erros. “Enquanto a gente continuar ignorando o racismo e o sofrimento das crianças, a gente não vai poder falar abertamente sobre isso.”

Vale observar que o autocuidado do adulto também afeta esse imaginário infantil. Com os pais e familiares, as crianças podem aprender a amar o cabelo, os traços e os cuidados com a pele. Nesse ambiente, também é possível conversar mais sobre a própria história e as origens.

O psicólogo Gabriel Basilio lembra que muitos comportamentos das crianças são espelhados nas atitudes dos outros, sejam boas ou ruins. “A criança aprende de algum lugar: de casa, da escola e da comunidade que ela está inserida. Depois, ela reproduz”, diz.

Para fazer da escola um lugar de acolhimento, Luana Tolentino promove práticas pedagógicas antirracistas descritas em seu livro Outra educação é possível. “Desde 2003, nós temos uma lei federal que determina o ensino da história da cultura africana e afro-brasileira em sala de aula justamente para enfrentar e superar esses processos discriminatórios dos quais a criança negra é alvo”, conta.

Para a autora, a lei também direciona práticas cotidianas e pedagógicas que levam a criança a ter orgulho da sua história. Fora isso, ensina as crianças não negras a respeitarem e valorizarem a diversidade do País.

Quais são as diferenças entre bullying e racismo?

Ambos são condenáveis, mas, para evitar o debate racial, muitos preferem trocar o nome. “O racismo pode se manifestar pelo bullying. Enquanto o primeiro se refere à população geral, o outro é dirigido a um grupo específico. A distinção é importante pelo seu valor político, histórico e social”, explica Francinai.

O diálogo pode ser complementado pela arte, um dos principais meios para a representatividade. “A partir dos 6 anos, a criança já vai entendendo melhor o mundo e quem ela é. A gente pode começar a trabalhar com o lúdico, com filmes e livros infantis que falam sobre a questão da identidade negra, das religiões de matriz africana”, orienta Luana.

No Brasil, representantes de duas editoras especializadas na cultura afro-brasileira acreditam ser imprescindível a publicação de livros com essa didática. “Durante um período, a última coisa que eu desejava era ter nascido negra. Era revoltada com minha cor, meus cabelos e os apelidos que recebia. Nunca tive a chance de ser personagem nas representações infantis na escola, como princesa ou rainha. Daí minha preocupação com texto e ilustrações em nossas publicações, para que meninas e meninos se sintam representados ali”, conta Maria Mazarello Rodrigues, fundadora da Mazza Edições.

O editor Vagner Amaro, da Editora Malê, considera que introduzir o tema nos livros possibilita que crianças e jovens aprimorem o senso crítico sobre a prática de racismo e se engajem em práticas antirracistas. “É importante falar sobre racismo em obras infantis e juvenis para tirar esse tema da condição de tabu, pouco abordado pelos constrangimentos que ele causa”, raciocina.

Arte como influenciadora de amor próprio

Diferentemente das referências negativas das peças de ficção, como malandro, bandido ou subalternizado, é preciso colocar figuras positivas no imaginário infantil. Daí a relevância da arte, desde a literatura até o teatro.

'Menina bonita que cor você tem', de Aline Carvalho é um entre os tantos livros que tratam sobre o tema do racismo Foto: WILTON JUNIOR

“A representatividade impacta diretamente. Na década de 70, a minha geração não teve essa oportunidade tão brilhante de nos vermos. Muito pelo contrário: os livros não eram livros como a gente tem hoje, com personagens contando a sua própria história. Os protagonistas eram brancos”, conta a escritora e atriz Cássia Valle.

Hoje, ela faz questão de propor novas histórias. Calu, a menina cheia de histórias, da Editora Malê, por exemplo, fala sobreo valor do contato com a ancestralidade. Já Aziza, a preciosa contadora de sonhos, luta contra o “Dragão da maldade”, uma metáfora para o racismo. “Procuro buscar essa representatividade e mostrar para nossas crianças que somos belíssimos, que temos poderes, que somos descendentes de africanos e isso nos faz ficar mais próximos. Acredito de verdade que, desde muito cedo, a gente pode influenciar a autoimagem positiva”, diz Cássia.

Para as crianças não negras, a introdução de filmes, livros, brinquedos, personalidades negras no cotidiano e no ensino também ajuda no respeito da diversidade. “A melhor forma de a gente entender é por meio do estudo, é falar sobre o tema, ler livros, porque assim fazemos um letramento racial. Ou seja, entendemos a questão a fundo para não ser um reprodutor de racismo”, indica Basilio.

Algumas produções para ajudar na construção da autoestima

  • No livro Amoras (Companhia das Letrinhas), o rapper Emicida fala sobre a importância de nos reconhecermos nos pequenos detalhes do mundo.
  • O podcast Amma Psique e Negritude levanta questões raciais a partir de uma abordagem psicossocial.
  • Sobrevivendo ao Racismo: memórias, cartas e o cotidiano da discriminação no Brasil (Mazza Edições), de Luana Tolentino, faz um registro, através de crônicas e cartas, de algumas violências que as pessoas negras passam no Brasil.
  • O curta-metragem Ana (disponível no Youtube), com direção de Vitória Felipe dos Santos. A menina não se reconhece como negra e passa a entender a relevância de se valorizar dessa maneira quando conhece uma refugiada do Congo.
  • O desenho animado Cada um na sua casa, da Dreamworks, (disponível na plataforma Netflix) mostra as aventuras de Tip, uma menina negra, e Oh, um alienígena de um bando que invade a Terra. Ao longo da trama, eles falam sobre a lealdade e o respeito às diferenças.
  • Antes peça de teatro, agora livro, o O Pequeno Príncipe Preto (Editora Nova Fronteira), de Rodrigo França, fala da importância de valorizarmos quem somos e de onde viemos.
  • A campanha ‘Infância sem Racismo’, da Unicef (também disponível no Youtube), traz artigos e vídeos para ajudar a reduzir os impactos do racismo na infância.

* Este conteúdo foi produzido em parcerias com as editoras Malê e Mazza, especializadas em conteúdos afro-brasileiros

“Minha filha já falou que queria pintar o rosto com a pasta de dente”, conta Aline Carvalho, escritora e gerente de TI, de 47 anos. Ela explica que a menina Laura quis negar sua identidade, aos 6 anos, por causa de um sentimento de inferioridade que nasceu a partir dos comentários de colegas de turma e professores da escola.

Para reverter esse sentimento e mostrar a beleza da filha de forma lúdica, Aline escreveu o livro Menina bonita, que cor você tem?, pela Editora Multifoco. “A chegada dos meus filhos revolucionou a minha vida, me deu outro olhar para algumas temáticas. O livro foi uma maneira de falar com a minha filha, mas também uma maneira de ajudar outras mães a conversarem com seus filhos”, diz.

A necessidade de ser amado e de pertencer a um grupo é universal. E quando isso não é correspondido, especialmente na infância, as feridas são grandes. Por não entendermos bem o nosso “eu”, acreditamos naquilo que o outro vê e fala sobre a gente. Com crianças negras a questão é muito mais delicada, porque pode envolver discriminação e preconceito.

“Se sou uma criança que escuto o tempo todo que não posso, que não sou bonita, entre outras coisas, os meus sonhos também vão sendo limitados dentro desse mundo que é possível na minha cabeça”, coloca a pesquisadora e escritora Francinai Gomes. “Passo a me ver somente dentro das informações que o mundo tem me dado sobre quem eu sou.”

Trabalhar a questão do racismo na infância, explicam os especialistas, é fortalecer a base de uma pessoa que muito provavelmente vai ser fragilizada no futuro e, assim, fazer com que ela cresça com autoestima e conheça seus valores, em vez de questioná-los.

Os impactos do racismo na infância

De acordo com um estudo feito por pesquisadores da Universidade Harvard (EUA) sobre os impactos do racismo na infância, quanto mais elevado o nível de estresse de uma criança, maior será o desgaste que seu cérebro irá passar, afetando seu desenvolvimento e sistema biológico.

Foi assim com a educadora Luana Tolentino. Quando estava na 3ª série, ela era chamada de “macaca” por uma garota de sua sala. Cansada de ficar em silêncio, buscou ajuda com a professora de Matemática. “Tinha a esperança de que ela fosse tomar alguma atitude, mas ela me colocou diante da turma e perguntou: ‘Vocês acham que a Luana se parece com uma macaca?’ A sala começou a rir, fazer barulhos do animal e eu fiquei segurando o choro”, lembra ela.

O episódio deixou marcas. Culpabilizada e envergonhada, a menina que era ótima em cálculos passou a ter dificuldades que permanecem até hoje.

A exposição ao estresse tóxico também faz com que as crianças tenham maior risco de desenvolver doenças crônicas ao longo da vida, além das sequelas visíveis na esfera social, como isolamento e distanciamento. O medo das interações ainda pode fazer com que ela fique sempre na defensiva e não seja totalmente autêntica. Consequentemente, o racismo impede a criança de brincar e viver sua infância de forma plena. “A pessoa vive em estado de alerta, com medo de sofrer ou presenciar alguma situação racista”, explica Gabriel Basilio, psicólogo e criador da página Psicologia Contra o Racismo.

Além disso, a criança pode ser levada a acreditar que existe um padrão definido para o que é belo. “E se o branco é a norma, todos os outros, principalmente o negro, entram como incorreto, como alguém que precisa se adequar.”

Aline Carvalho com os filhos Laura, de 6 anos, e Lucas, de 8. Em casa, a conversa profunda é coisa séria Foto: WILTON JUNIOR

Como abordar a questão do racismo?

“A gente acha que só porque não existe um pensamento crítico durante a infância, as crianças não pensam sobre isso, mas o nosso corpo também tem memória por meio de impressões, sensações e sentimentos”, diz Francinai.

O diálogo é a grande chave para construir a autoestima das crianças. A partir das conversas, Aline notou o incômodo de Laura com o posicionamento de algumas pessoas em sua escola. “Apesar da idade dos meus filhos, eu converso com eles sobre muitos temas, e percebi que isso fez com que eles mudassem a maneira como se viam e como viam as pessoas negras”, diz.

A família é a primeira escola. A partir do momento em que ali se estabelece um ambiente de confiança, a criança pode se expressar e receber apoio para aumentar sua autoestima e amor próprio. “A conversa ajuda a fortalecer a criança em eventuais situações de racismo. É óbvio que ela não vai estar preparada para lidar com isso, porque a gente nunca está. Mas não a afetará tanto. Ela consegue, de alguma forma, entender o que está acontecendo e sabe como responder”, afirma Aline.

A pesquisadora e estudante de psicologia Bárbara Borges ressalta o papel valioso da escuta. “Os adultos se comportam como se ouvir as crianças fosse muito difícil, e isso é mentira. É preciso ouvi-las com atenção e buscar entender o que que ela está expressando”, afirma.

Negar ou minimizar o problema, para ela, é um dos maiores erros. “Enquanto a gente continuar ignorando o racismo e o sofrimento das crianças, a gente não vai poder falar abertamente sobre isso.”

Vale observar que o autocuidado do adulto também afeta esse imaginário infantil. Com os pais e familiares, as crianças podem aprender a amar o cabelo, os traços e os cuidados com a pele. Nesse ambiente, também é possível conversar mais sobre a própria história e as origens.

O psicólogo Gabriel Basilio lembra que muitos comportamentos das crianças são espelhados nas atitudes dos outros, sejam boas ou ruins. “A criança aprende de algum lugar: de casa, da escola e da comunidade que ela está inserida. Depois, ela reproduz”, diz.

Para fazer da escola um lugar de acolhimento, Luana Tolentino promove práticas pedagógicas antirracistas descritas em seu livro Outra educação é possível. “Desde 2003, nós temos uma lei federal que determina o ensino da história da cultura africana e afro-brasileira em sala de aula justamente para enfrentar e superar esses processos discriminatórios dos quais a criança negra é alvo”, conta.

Para a autora, a lei também direciona práticas cotidianas e pedagógicas que levam a criança a ter orgulho da sua história. Fora isso, ensina as crianças não negras a respeitarem e valorizarem a diversidade do País.

Quais são as diferenças entre bullying e racismo?

Ambos são condenáveis, mas, para evitar o debate racial, muitos preferem trocar o nome. “O racismo pode se manifestar pelo bullying. Enquanto o primeiro se refere à população geral, o outro é dirigido a um grupo específico. A distinção é importante pelo seu valor político, histórico e social”, explica Francinai.

O diálogo pode ser complementado pela arte, um dos principais meios para a representatividade. “A partir dos 6 anos, a criança já vai entendendo melhor o mundo e quem ela é. A gente pode começar a trabalhar com o lúdico, com filmes e livros infantis que falam sobre a questão da identidade negra, das religiões de matriz africana”, orienta Luana.

No Brasil, representantes de duas editoras especializadas na cultura afro-brasileira acreditam ser imprescindível a publicação de livros com essa didática. “Durante um período, a última coisa que eu desejava era ter nascido negra. Era revoltada com minha cor, meus cabelos e os apelidos que recebia. Nunca tive a chance de ser personagem nas representações infantis na escola, como princesa ou rainha. Daí minha preocupação com texto e ilustrações em nossas publicações, para que meninas e meninos se sintam representados ali”, conta Maria Mazarello Rodrigues, fundadora da Mazza Edições.

O editor Vagner Amaro, da Editora Malê, considera que introduzir o tema nos livros possibilita que crianças e jovens aprimorem o senso crítico sobre a prática de racismo e se engajem em práticas antirracistas. “É importante falar sobre racismo em obras infantis e juvenis para tirar esse tema da condição de tabu, pouco abordado pelos constrangimentos que ele causa”, raciocina.

Arte como influenciadora de amor próprio

Diferentemente das referências negativas das peças de ficção, como malandro, bandido ou subalternizado, é preciso colocar figuras positivas no imaginário infantil. Daí a relevância da arte, desde a literatura até o teatro.

'Menina bonita que cor você tem', de Aline Carvalho é um entre os tantos livros que tratam sobre o tema do racismo Foto: WILTON JUNIOR

“A representatividade impacta diretamente. Na década de 70, a minha geração não teve essa oportunidade tão brilhante de nos vermos. Muito pelo contrário: os livros não eram livros como a gente tem hoje, com personagens contando a sua própria história. Os protagonistas eram brancos”, conta a escritora e atriz Cássia Valle.

Hoje, ela faz questão de propor novas histórias. Calu, a menina cheia de histórias, da Editora Malê, por exemplo, fala sobreo valor do contato com a ancestralidade. Já Aziza, a preciosa contadora de sonhos, luta contra o “Dragão da maldade”, uma metáfora para o racismo. “Procuro buscar essa representatividade e mostrar para nossas crianças que somos belíssimos, que temos poderes, que somos descendentes de africanos e isso nos faz ficar mais próximos. Acredito de verdade que, desde muito cedo, a gente pode influenciar a autoimagem positiva”, diz Cássia.

Para as crianças não negras, a introdução de filmes, livros, brinquedos, personalidades negras no cotidiano e no ensino também ajuda no respeito da diversidade. “A melhor forma de a gente entender é por meio do estudo, é falar sobre o tema, ler livros, porque assim fazemos um letramento racial. Ou seja, entendemos a questão a fundo para não ser um reprodutor de racismo”, indica Basilio.

Algumas produções para ajudar na construção da autoestima

  • No livro Amoras (Companhia das Letrinhas), o rapper Emicida fala sobre a importância de nos reconhecermos nos pequenos detalhes do mundo.
  • O podcast Amma Psique e Negritude levanta questões raciais a partir de uma abordagem psicossocial.
  • Sobrevivendo ao Racismo: memórias, cartas e o cotidiano da discriminação no Brasil (Mazza Edições), de Luana Tolentino, faz um registro, através de crônicas e cartas, de algumas violências que as pessoas negras passam no Brasil.
  • O curta-metragem Ana (disponível no Youtube), com direção de Vitória Felipe dos Santos. A menina não se reconhece como negra e passa a entender a relevância de se valorizar dessa maneira quando conhece uma refugiada do Congo.
  • O desenho animado Cada um na sua casa, da Dreamworks, (disponível na plataforma Netflix) mostra as aventuras de Tip, uma menina negra, e Oh, um alienígena de um bando que invade a Terra. Ao longo da trama, eles falam sobre a lealdade e o respeito às diferenças.
  • Antes peça de teatro, agora livro, o O Pequeno Príncipe Preto (Editora Nova Fronteira), de Rodrigo França, fala da importância de valorizarmos quem somos e de onde viemos.
  • A campanha ‘Infância sem Racismo’, da Unicef (também disponível no Youtube), traz artigos e vídeos para ajudar a reduzir os impactos do racismo na infância.

* Este conteúdo foi produzido em parcerias com as editoras Malê e Mazza, especializadas em conteúdos afro-brasileiros

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