Análise|Ser cabeça-dura é a sina de todo ser humano? Cientista conta por que é tão difícil mudar de opinião


A nossa inflexibilidade cognitiva pode ser explicada por fatores intelectuais, sociais e emocionais; entenda

Por Daniel Gontijo

Imagine que você e seus amigos participam de uma religião cujo líder anuncia que o fim do mundo se aproxima. Como vocês confiam naquele profeta – o porta-voz de Deus –, suas orientações são seguidas e as expectativas são as mais positivas. Vocês serão salvos, e uma nova era finalmente se estabelecerá. No entanto, quando o calendário anuncia o que deveria ser o dia derradeiro, nada de extraordinário acontece. A semana corre tão banal quanto as precedentes. Os boletos continuam a chegar, as notícias continuam ruins e, fora você, todos continuam firmemente associados àquele grupo religioso.

Cenários como esse já ocorreram diversas vezes ao longo da história. Intrigados, cientistas comportamentais têm se esforçado para compreender por que, apesar das evidências refutantes, tanta gente permanece crendo em ideias falsas. E, obviamente, isso não se restringe a profecias que não se cumpriram. Teorias da conspiração, pseudociências e diversas formas de negacionismo científico são incrivelmente resistentes a críticas racionais. Nossas crenças políticas também.

Cientistas buscam compreender por que mudar de opinião é tão difícil.  Foto: dreamsnavigator/Adobe Stock
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Segundo o psicólogo Michael Shermer, o cérebro humano é uma máquina de crenças – e isso seria adaptativo, evolutivamente importante. Precisamos gerar hipóteses ou previsões sobre o mundo circundante, as quais governam e flexibilizam nossas ações.

Por exemplo, se circulam notícias confiáveis de que têm ocorrido assaltos em seu bairro depois das 19h, você abandona suas caminhadas noturnas. Especificamente, você passa a crer que há assaltantes por perto, diminuindo sua propensão a perambular à noite. Mas, como o preço do sedentarismo é alto, você prontamente desenvolve a crença de que, se passar a dormir mais cedo, conseguirá caminhar naquela mesma pracinha toda manhã. Em poucos dias, sua rotina estaria consideravelmente transformada. Suas novas crenças teriam protegido seu bolso e sua saúde.

Por outro lado, nosso maquinário cerebral também produz crenças falsas – subprodutos que são frequentemente desadaptativos e perigosos. Crer na eficácia dos remédios homeopáticos pode até não gerar grandes efeitos colaterais, mas inevitavelmente resultará no desperdício de tempo e de dinheiro – e pode desviar algumas pessoas de tratamentos melhores.

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Para dar um exemplo menos sensível – pois a homeopatia ainda é bastante popular entre os brasileiros –, um volume expressivo de pacientes morreu devido à crença no poder curativo da sangria – um método que iludiu médicos e curandeiros por séculos. É por isso que, como prescrevem filósofos e terapeutas cognitivo-comportamentais, devemos cuidar para que nossas crenças sejam mais realistas, racionais. Esse cuidado, a propósito, pode até mesmo beneficiar nossa saúde mental.

Por que, então, somos tão resistentes a mudar de opinião? Por que algumas de nossas crenças parecem ser imunes à crítica, ao questionamento, às evidências contrárias? Afinal, a sina de todo ser humano é ser meio cabeça-dura?

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Fatores intelectuais, sociais e emocionais estão por trás dessa inflexibilidade cognitiva. Em primeiro lugar, alguém pode perseverar em suas crenças ou opiniões por não compreender bem ideias concorrentes, alternativas. Por exemplo, uma pesquisa australiana verificou que, quanto menos os participantes compreendiam o aquecimento global, menos eles acreditavam em sua ocorrência. Mesmo que crenças e valores políticos também expliquem esse tipo de resistência, dados como esse ilustram que a educação científica não pode ser negligenciada.

Em segundo lugar, nossas opiniões são consideravelmente moldadas por interações sociais que estabelecemos no cotidiano – e boa parte disso não tem nada a ver com uma busca coletiva e desinteressada pela verdade. Pelo contrário, se você tem familiares mergulhados em grupos virtuais politicamente polarizados, é possível que eles confiem mais nas alegações conspiratórias de seus líderes do que em dados empíricos de pesquisas.

De acordo com os resultados de uma revisão sistemática sobre fake news, essa polarização enfraquece as estratégias de convencimento baseadas exclusivamente na racionalidade. Nesse cenário, o “quem está falando” conta mais do que o conteúdo da mensagem, e um argumento factual pode deixar seu interlocutor ainda mais resistente – o chamado “efeito backfire”. Diante disso, ficamos inclinados a jogar a toalha, sucumbir ao ditado de que política não se discute e, com isso, salvar o Natal em família.

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Em terceiro lugar, as emoções estão sempre orquestrando a dinâmica das crenças – mesmo que silenciosamente. Quando avaliamos ideias que conflitam com nossas convicções, somos atravessados por um desconforto capaz de enviesar nosso discernimento. É como se nosso cérebro estivesse sendo ameaçado por corpos estranhos, antígenos, os quais soariam um alarme emocional que nos motivaria a combatê-los para assegurar o equilíbrio interno. Ou, para falar em “psicologuês”, nosso sistema imune psicológico, como alguns autores o nomeiam, se encarregaria de proteger nossas crenças mais valiosas, ou seja, aquelas que definem quem somos nós.

As pessoas não brigam por discordâncias triviais como sobre o valor do café ou a previsão de chuva, mas podem se armar contra quem questiona sua centralidade no plano divino ou a relevância de suas lutas sociais. Em suma, quanto mais uma crença integra nossa identidade, mais nos dispomos a defendê-la – mesmo que isso vá contra as evidências.

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Voltando ao cenário hipotético com que comecei este texto, talvez a compreensão de seus amigos de que a profecia falhou não fosse suficiente para fazê-los abandonar a seita. Para resolver essa dissonância cognitiva, seu líder poderia alegar que, digamos, Deus resolveu dar mais uma chance à humanidade. E isso provavelmente funcionaria. Frequentemente, grupos religiosos oferecem respostas às grandes questões existenciais, oportunizam socialização, consolam enlutados, recompensam membros fiéis e prometem um futuro maravilhoso aos convertidos. Com tudo isso em jogo, não seria difícil engolir a explicação do profeta.

No frigir dos ovos, formamos, mantemos e abandonamos crenças mais por sua utilidade do que por sua veracidade. E não me entenda mal: crenças verdadeiras são bastante úteis – e as incríveis realizações da ciência demonstram isso. Mas, como cantava Cazuza, “mentiras sinceras” também nos interessam. Às vezes, para muita gente, abraçar uma ilusão é muito mais vantajoso do que encarar a realidade.

Imagine que você e seus amigos participam de uma religião cujo líder anuncia que o fim do mundo se aproxima. Como vocês confiam naquele profeta – o porta-voz de Deus –, suas orientações são seguidas e as expectativas são as mais positivas. Vocês serão salvos, e uma nova era finalmente se estabelecerá. No entanto, quando o calendário anuncia o que deveria ser o dia derradeiro, nada de extraordinário acontece. A semana corre tão banal quanto as precedentes. Os boletos continuam a chegar, as notícias continuam ruins e, fora você, todos continuam firmemente associados àquele grupo religioso.

Cenários como esse já ocorreram diversas vezes ao longo da história. Intrigados, cientistas comportamentais têm se esforçado para compreender por que, apesar das evidências refutantes, tanta gente permanece crendo em ideias falsas. E, obviamente, isso não se restringe a profecias que não se cumpriram. Teorias da conspiração, pseudociências e diversas formas de negacionismo científico são incrivelmente resistentes a críticas racionais. Nossas crenças políticas também.

Cientistas buscam compreender por que mudar de opinião é tão difícil.  Foto: dreamsnavigator/Adobe Stock

Segundo o psicólogo Michael Shermer, o cérebro humano é uma máquina de crenças – e isso seria adaptativo, evolutivamente importante. Precisamos gerar hipóteses ou previsões sobre o mundo circundante, as quais governam e flexibilizam nossas ações.

Por exemplo, se circulam notícias confiáveis de que têm ocorrido assaltos em seu bairro depois das 19h, você abandona suas caminhadas noturnas. Especificamente, você passa a crer que há assaltantes por perto, diminuindo sua propensão a perambular à noite. Mas, como o preço do sedentarismo é alto, você prontamente desenvolve a crença de que, se passar a dormir mais cedo, conseguirá caminhar naquela mesma pracinha toda manhã. Em poucos dias, sua rotina estaria consideravelmente transformada. Suas novas crenças teriam protegido seu bolso e sua saúde.

Por outro lado, nosso maquinário cerebral também produz crenças falsas – subprodutos que são frequentemente desadaptativos e perigosos. Crer na eficácia dos remédios homeopáticos pode até não gerar grandes efeitos colaterais, mas inevitavelmente resultará no desperdício de tempo e de dinheiro – e pode desviar algumas pessoas de tratamentos melhores.

Para dar um exemplo menos sensível – pois a homeopatia ainda é bastante popular entre os brasileiros –, um volume expressivo de pacientes morreu devido à crença no poder curativo da sangria – um método que iludiu médicos e curandeiros por séculos. É por isso que, como prescrevem filósofos e terapeutas cognitivo-comportamentais, devemos cuidar para que nossas crenças sejam mais realistas, racionais. Esse cuidado, a propósito, pode até mesmo beneficiar nossa saúde mental.

Por que, então, somos tão resistentes a mudar de opinião? Por que algumas de nossas crenças parecem ser imunes à crítica, ao questionamento, às evidências contrárias? Afinal, a sina de todo ser humano é ser meio cabeça-dura?

Fatores intelectuais, sociais e emocionais estão por trás dessa inflexibilidade cognitiva. Em primeiro lugar, alguém pode perseverar em suas crenças ou opiniões por não compreender bem ideias concorrentes, alternativas. Por exemplo, uma pesquisa australiana verificou que, quanto menos os participantes compreendiam o aquecimento global, menos eles acreditavam em sua ocorrência. Mesmo que crenças e valores políticos também expliquem esse tipo de resistência, dados como esse ilustram que a educação científica não pode ser negligenciada.

Em segundo lugar, nossas opiniões são consideravelmente moldadas por interações sociais que estabelecemos no cotidiano – e boa parte disso não tem nada a ver com uma busca coletiva e desinteressada pela verdade. Pelo contrário, se você tem familiares mergulhados em grupos virtuais politicamente polarizados, é possível que eles confiem mais nas alegações conspiratórias de seus líderes do que em dados empíricos de pesquisas.

De acordo com os resultados de uma revisão sistemática sobre fake news, essa polarização enfraquece as estratégias de convencimento baseadas exclusivamente na racionalidade. Nesse cenário, o “quem está falando” conta mais do que o conteúdo da mensagem, e um argumento factual pode deixar seu interlocutor ainda mais resistente – o chamado “efeito backfire”. Diante disso, ficamos inclinados a jogar a toalha, sucumbir ao ditado de que política não se discute e, com isso, salvar o Natal em família.

Em terceiro lugar, as emoções estão sempre orquestrando a dinâmica das crenças – mesmo que silenciosamente. Quando avaliamos ideias que conflitam com nossas convicções, somos atravessados por um desconforto capaz de enviesar nosso discernimento. É como se nosso cérebro estivesse sendo ameaçado por corpos estranhos, antígenos, os quais soariam um alarme emocional que nos motivaria a combatê-los para assegurar o equilíbrio interno. Ou, para falar em “psicologuês”, nosso sistema imune psicológico, como alguns autores o nomeiam, se encarregaria de proteger nossas crenças mais valiosas, ou seja, aquelas que definem quem somos nós.

As pessoas não brigam por discordâncias triviais como sobre o valor do café ou a previsão de chuva, mas podem se armar contra quem questiona sua centralidade no plano divino ou a relevância de suas lutas sociais. Em suma, quanto mais uma crença integra nossa identidade, mais nos dispomos a defendê-la – mesmo que isso vá contra as evidências.

Voltando ao cenário hipotético com que comecei este texto, talvez a compreensão de seus amigos de que a profecia falhou não fosse suficiente para fazê-los abandonar a seita. Para resolver essa dissonância cognitiva, seu líder poderia alegar que, digamos, Deus resolveu dar mais uma chance à humanidade. E isso provavelmente funcionaria. Frequentemente, grupos religiosos oferecem respostas às grandes questões existenciais, oportunizam socialização, consolam enlutados, recompensam membros fiéis e prometem um futuro maravilhoso aos convertidos. Com tudo isso em jogo, não seria difícil engolir a explicação do profeta.

No frigir dos ovos, formamos, mantemos e abandonamos crenças mais por sua utilidade do que por sua veracidade. E não me entenda mal: crenças verdadeiras são bastante úteis – e as incríveis realizações da ciência demonstram isso. Mas, como cantava Cazuza, “mentiras sinceras” também nos interessam. Às vezes, para muita gente, abraçar uma ilusão é muito mais vantajoso do que encarar a realidade.

Imagine que você e seus amigos participam de uma religião cujo líder anuncia que o fim do mundo se aproxima. Como vocês confiam naquele profeta – o porta-voz de Deus –, suas orientações são seguidas e as expectativas são as mais positivas. Vocês serão salvos, e uma nova era finalmente se estabelecerá. No entanto, quando o calendário anuncia o que deveria ser o dia derradeiro, nada de extraordinário acontece. A semana corre tão banal quanto as precedentes. Os boletos continuam a chegar, as notícias continuam ruins e, fora você, todos continuam firmemente associados àquele grupo religioso.

Cenários como esse já ocorreram diversas vezes ao longo da história. Intrigados, cientistas comportamentais têm se esforçado para compreender por que, apesar das evidências refutantes, tanta gente permanece crendo em ideias falsas. E, obviamente, isso não se restringe a profecias que não se cumpriram. Teorias da conspiração, pseudociências e diversas formas de negacionismo científico são incrivelmente resistentes a críticas racionais. Nossas crenças políticas também.

Cientistas buscam compreender por que mudar de opinião é tão difícil.  Foto: dreamsnavigator/Adobe Stock

Segundo o psicólogo Michael Shermer, o cérebro humano é uma máquina de crenças – e isso seria adaptativo, evolutivamente importante. Precisamos gerar hipóteses ou previsões sobre o mundo circundante, as quais governam e flexibilizam nossas ações.

Por exemplo, se circulam notícias confiáveis de que têm ocorrido assaltos em seu bairro depois das 19h, você abandona suas caminhadas noturnas. Especificamente, você passa a crer que há assaltantes por perto, diminuindo sua propensão a perambular à noite. Mas, como o preço do sedentarismo é alto, você prontamente desenvolve a crença de que, se passar a dormir mais cedo, conseguirá caminhar naquela mesma pracinha toda manhã. Em poucos dias, sua rotina estaria consideravelmente transformada. Suas novas crenças teriam protegido seu bolso e sua saúde.

Por outro lado, nosso maquinário cerebral também produz crenças falsas – subprodutos que são frequentemente desadaptativos e perigosos. Crer na eficácia dos remédios homeopáticos pode até não gerar grandes efeitos colaterais, mas inevitavelmente resultará no desperdício de tempo e de dinheiro – e pode desviar algumas pessoas de tratamentos melhores.

Para dar um exemplo menos sensível – pois a homeopatia ainda é bastante popular entre os brasileiros –, um volume expressivo de pacientes morreu devido à crença no poder curativo da sangria – um método que iludiu médicos e curandeiros por séculos. É por isso que, como prescrevem filósofos e terapeutas cognitivo-comportamentais, devemos cuidar para que nossas crenças sejam mais realistas, racionais. Esse cuidado, a propósito, pode até mesmo beneficiar nossa saúde mental.

Por que, então, somos tão resistentes a mudar de opinião? Por que algumas de nossas crenças parecem ser imunes à crítica, ao questionamento, às evidências contrárias? Afinal, a sina de todo ser humano é ser meio cabeça-dura?

Fatores intelectuais, sociais e emocionais estão por trás dessa inflexibilidade cognitiva. Em primeiro lugar, alguém pode perseverar em suas crenças ou opiniões por não compreender bem ideias concorrentes, alternativas. Por exemplo, uma pesquisa australiana verificou que, quanto menos os participantes compreendiam o aquecimento global, menos eles acreditavam em sua ocorrência. Mesmo que crenças e valores políticos também expliquem esse tipo de resistência, dados como esse ilustram que a educação científica não pode ser negligenciada.

Em segundo lugar, nossas opiniões são consideravelmente moldadas por interações sociais que estabelecemos no cotidiano – e boa parte disso não tem nada a ver com uma busca coletiva e desinteressada pela verdade. Pelo contrário, se você tem familiares mergulhados em grupos virtuais politicamente polarizados, é possível que eles confiem mais nas alegações conspiratórias de seus líderes do que em dados empíricos de pesquisas.

De acordo com os resultados de uma revisão sistemática sobre fake news, essa polarização enfraquece as estratégias de convencimento baseadas exclusivamente na racionalidade. Nesse cenário, o “quem está falando” conta mais do que o conteúdo da mensagem, e um argumento factual pode deixar seu interlocutor ainda mais resistente – o chamado “efeito backfire”. Diante disso, ficamos inclinados a jogar a toalha, sucumbir ao ditado de que política não se discute e, com isso, salvar o Natal em família.

Em terceiro lugar, as emoções estão sempre orquestrando a dinâmica das crenças – mesmo que silenciosamente. Quando avaliamos ideias que conflitam com nossas convicções, somos atravessados por um desconforto capaz de enviesar nosso discernimento. É como se nosso cérebro estivesse sendo ameaçado por corpos estranhos, antígenos, os quais soariam um alarme emocional que nos motivaria a combatê-los para assegurar o equilíbrio interno. Ou, para falar em “psicologuês”, nosso sistema imune psicológico, como alguns autores o nomeiam, se encarregaria de proteger nossas crenças mais valiosas, ou seja, aquelas que definem quem somos nós.

As pessoas não brigam por discordâncias triviais como sobre o valor do café ou a previsão de chuva, mas podem se armar contra quem questiona sua centralidade no plano divino ou a relevância de suas lutas sociais. Em suma, quanto mais uma crença integra nossa identidade, mais nos dispomos a defendê-la – mesmo que isso vá contra as evidências.

Voltando ao cenário hipotético com que comecei este texto, talvez a compreensão de seus amigos de que a profecia falhou não fosse suficiente para fazê-los abandonar a seita. Para resolver essa dissonância cognitiva, seu líder poderia alegar que, digamos, Deus resolveu dar mais uma chance à humanidade. E isso provavelmente funcionaria. Frequentemente, grupos religiosos oferecem respostas às grandes questões existenciais, oportunizam socialização, consolam enlutados, recompensam membros fiéis e prometem um futuro maravilhoso aos convertidos. Com tudo isso em jogo, não seria difícil engolir a explicação do profeta.

No frigir dos ovos, formamos, mantemos e abandonamos crenças mais por sua utilidade do que por sua veracidade. E não me entenda mal: crenças verdadeiras são bastante úteis – e as incríveis realizações da ciência demonstram isso. Mas, como cantava Cazuza, “mentiras sinceras” também nos interessam. Às vezes, para muita gente, abraçar uma ilusão é muito mais vantajoso do que encarar a realidade.

Imagine que você e seus amigos participam de uma religião cujo líder anuncia que o fim do mundo se aproxima. Como vocês confiam naquele profeta – o porta-voz de Deus –, suas orientações são seguidas e as expectativas são as mais positivas. Vocês serão salvos, e uma nova era finalmente se estabelecerá. No entanto, quando o calendário anuncia o que deveria ser o dia derradeiro, nada de extraordinário acontece. A semana corre tão banal quanto as precedentes. Os boletos continuam a chegar, as notícias continuam ruins e, fora você, todos continuam firmemente associados àquele grupo religioso.

Cenários como esse já ocorreram diversas vezes ao longo da história. Intrigados, cientistas comportamentais têm se esforçado para compreender por que, apesar das evidências refutantes, tanta gente permanece crendo em ideias falsas. E, obviamente, isso não se restringe a profecias que não se cumpriram. Teorias da conspiração, pseudociências e diversas formas de negacionismo científico são incrivelmente resistentes a críticas racionais. Nossas crenças políticas também.

Cientistas buscam compreender por que mudar de opinião é tão difícil.  Foto: dreamsnavigator/Adobe Stock

Segundo o psicólogo Michael Shermer, o cérebro humano é uma máquina de crenças – e isso seria adaptativo, evolutivamente importante. Precisamos gerar hipóteses ou previsões sobre o mundo circundante, as quais governam e flexibilizam nossas ações.

Por exemplo, se circulam notícias confiáveis de que têm ocorrido assaltos em seu bairro depois das 19h, você abandona suas caminhadas noturnas. Especificamente, você passa a crer que há assaltantes por perto, diminuindo sua propensão a perambular à noite. Mas, como o preço do sedentarismo é alto, você prontamente desenvolve a crença de que, se passar a dormir mais cedo, conseguirá caminhar naquela mesma pracinha toda manhã. Em poucos dias, sua rotina estaria consideravelmente transformada. Suas novas crenças teriam protegido seu bolso e sua saúde.

Por outro lado, nosso maquinário cerebral também produz crenças falsas – subprodutos que são frequentemente desadaptativos e perigosos. Crer na eficácia dos remédios homeopáticos pode até não gerar grandes efeitos colaterais, mas inevitavelmente resultará no desperdício de tempo e de dinheiro – e pode desviar algumas pessoas de tratamentos melhores.

Para dar um exemplo menos sensível – pois a homeopatia ainda é bastante popular entre os brasileiros –, um volume expressivo de pacientes morreu devido à crença no poder curativo da sangria – um método que iludiu médicos e curandeiros por séculos. É por isso que, como prescrevem filósofos e terapeutas cognitivo-comportamentais, devemos cuidar para que nossas crenças sejam mais realistas, racionais. Esse cuidado, a propósito, pode até mesmo beneficiar nossa saúde mental.

Por que, então, somos tão resistentes a mudar de opinião? Por que algumas de nossas crenças parecem ser imunes à crítica, ao questionamento, às evidências contrárias? Afinal, a sina de todo ser humano é ser meio cabeça-dura?

Fatores intelectuais, sociais e emocionais estão por trás dessa inflexibilidade cognitiva. Em primeiro lugar, alguém pode perseverar em suas crenças ou opiniões por não compreender bem ideias concorrentes, alternativas. Por exemplo, uma pesquisa australiana verificou que, quanto menos os participantes compreendiam o aquecimento global, menos eles acreditavam em sua ocorrência. Mesmo que crenças e valores políticos também expliquem esse tipo de resistência, dados como esse ilustram que a educação científica não pode ser negligenciada.

Em segundo lugar, nossas opiniões são consideravelmente moldadas por interações sociais que estabelecemos no cotidiano – e boa parte disso não tem nada a ver com uma busca coletiva e desinteressada pela verdade. Pelo contrário, se você tem familiares mergulhados em grupos virtuais politicamente polarizados, é possível que eles confiem mais nas alegações conspiratórias de seus líderes do que em dados empíricos de pesquisas.

De acordo com os resultados de uma revisão sistemática sobre fake news, essa polarização enfraquece as estratégias de convencimento baseadas exclusivamente na racionalidade. Nesse cenário, o “quem está falando” conta mais do que o conteúdo da mensagem, e um argumento factual pode deixar seu interlocutor ainda mais resistente – o chamado “efeito backfire”. Diante disso, ficamos inclinados a jogar a toalha, sucumbir ao ditado de que política não se discute e, com isso, salvar o Natal em família.

Em terceiro lugar, as emoções estão sempre orquestrando a dinâmica das crenças – mesmo que silenciosamente. Quando avaliamos ideias que conflitam com nossas convicções, somos atravessados por um desconforto capaz de enviesar nosso discernimento. É como se nosso cérebro estivesse sendo ameaçado por corpos estranhos, antígenos, os quais soariam um alarme emocional que nos motivaria a combatê-los para assegurar o equilíbrio interno. Ou, para falar em “psicologuês”, nosso sistema imune psicológico, como alguns autores o nomeiam, se encarregaria de proteger nossas crenças mais valiosas, ou seja, aquelas que definem quem somos nós.

As pessoas não brigam por discordâncias triviais como sobre o valor do café ou a previsão de chuva, mas podem se armar contra quem questiona sua centralidade no plano divino ou a relevância de suas lutas sociais. Em suma, quanto mais uma crença integra nossa identidade, mais nos dispomos a defendê-la – mesmo que isso vá contra as evidências.

Voltando ao cenário hipotético com que comecei este texto, talvez a compreensão de seus amigos de que a profecia falhou não fosse suficiente para fazê-los abandonar a seita. Para resolver essa dissonância cognitiva, seu líder poderia alegar que, digamos, Deus resolveu dar mais uma chance à humanidade. E isso provavelmente funcionaria. Frequentemente, grupos religiosos oferecem respostas às grandes questões existenciais, oportunizam socialização, consolam enlutados, recompensam membros fiéis e prometem um futuro maravilhoso aos convertidos. Com tudo isso em jogo, não seria difícil engolir a explicação do profeta.

No frigir dos ovos, formamos, mantemos e abandonamos crenças mais por sua utilidade do que por sua veracidade. E não me entenda mal: crenças verdadeiras são bastante úteis – e as incríveis realizações da ciência demonstram isso. Mas, como cantava Cazuza, “mentiras sinceras” também nos interessam. Às vezes, para muita gente, abraçar uma ilusão é muito mais vantajoso do que encarar a realidade.

Imagine que você e seus amigos participam de uma religião cujo líder anuncia que o fim do mundo se aproxima. Como vocês confiam naquele profeta – o porta-voz de Deus –, suas orientações são seguidas e as expectativas são as mais positivas. Vocês serão salvos, e uma nova era finalmente se estabelecerá. No entanto, quando o calendário anuncia o que deveria ser o dia derradeiro, nada de extraordinário acontece. A semana corre tão banal quanto as precedentes. Os boletos continuam a chegar, as notícias continuam ruins e, fora você, todos continuam firmemente associados àquele grupo religioso.

Cenários como esse já ocorreram diversas vezes ao longo da história. Intrigados, cientistas comportamentais têm se esforçado para compreender por que, apesar das evidências refutantes, tanta gente permanece crendo em ideias falsas. E, obviamente, isso não se restringe a profecias que não se cumpriram. Teorias da conspiração, pseudociências e diversas formas de negacionismo científico são incrivelmente resistentes a críticas racionais. Nossas crenças políticas também.

Cientistas buscam compreender por que mudar de opinião é tão difícil.  Foto: dreamsnavigator/Adobe Stock

Segundo o psicólogo Michael Shermer, o cérebro humano é uma máquina de crenças – e isso seria adaptativo, evolutivamente importante. Precisamos gerar hipóteses ou previsões sobre o mundo circundante, as quais governam e flexibilizam nossas ações.

Por exemplo, se circulam notícias confiáveis de que têm ocorrido assaltos em seu bairro depois das 19h, você abandona suas caminhadas noturnas. Especificamente, você passa a crer que há assaltantes por perto, diminuindo sua propensão a perambular à noite. Mas, como o preço do sedentarismo é alto, você prontamente desenvolve a crença de que, se passar a dormir mais cedo, conseguirá caminhar naquela mesma pracinha toda manhã. Em poucos dias, sua rotina estaria consideravelmente transformada. Suas novas crenças teriam protegido seu bolso e sua saúde.

Por outro lado, nosso maquinário cerebral também produz crenças falsas – subprodutos que são frequentemente desadaptativos e perigosos. Crer na eficácia dos remédios homeopáticos pode até não gerar grandes efeitos colaterais, mas inevitavelmente resultará no desperdício de tempo e de dinheiro – e pode desviar algumas pessoas de tratamentos melhores.

Para dar um exemplo menos sensível – pois a homeopatia ainda é bastante popular entre os brasileiros –, um volume expressivo de pacientes morreu devido à crença no poder curativo da sangria – um método que iludiu médicos e curandeiros por séculos. É por isso que, como prescrevem filósofos e terapeutas cognitivo-comportamentais, devemos cuidar para que nossas crenças sejam mais realistas, racionais. Esse cuidado, a propósito, pode até mesmo beneficiar nossa saúde mental.

Por que, então, somos tão resistentes a mudar de opinião? Por que algumas de nossas crenças parecem ser imunes à crítica, ao questionamento, às evidências contrárias? Afinal, a sina de todo ser humano é ser meio cabeça-dura?

Fatores intelectuais, sociais e emocionais estão por trás dessa inflexibilidade cognitiva. Em primeiro lugar, alguém pode perseverar em suas crenças ou opiniões por não compreender bem ideias concorrentes, alternativas. Por exemplo, uma pesquisa australiana verificou que, quanto menos os participantes compreendiam o aquecimento global, menos eles acreditavam em sua ocorrência. Mesmo que crenças e valores políticos também expliquem esse tipo de resistência, dados como esse ilustram que a educação científica não pode ser negligenciada.

Em segundo lugar, nossas opiniões são consideravelmente moldadas por interações sociais que estabelecemos no cotidiano – e boa parte disso não tem nada a ver com uma busca coletiva e desinteressada pela verdade. Pelo contrário, se você tem familiares mergulhados em grupos virtuais politicamente polarizados, é possível que eles confiem mais nas alegações conspiratórias de seus líderes do que em dados empíricos de pesquisas.

De acordo com os resultados de uma revisão sistemática sobre fake news, essa polarização enfraquece as estratégias de convencimento baseadas exclusivamente na racionalidade. Nesse cenário, o “quem está falando” conta mais do que o conteúdo da mensagem, e um argumento factual pode deixar seu interlocutor ainda mais resistente – o chamado “efeito backfire”. Diante disso, ficamos inclinados a jogar a toalha, sucumbir ao ditado de que política não se discute e, com isso, salvar o Natal em família.

Em terceiro lugar, as emoções estão sempre orquestrando a dinâmica das crenças – mesmo que silenciosamente. Quando avaliamos ideias que conflitam com nossas convicções, somos atravessados por um desconforto capaz de enviesar nosso discernimento. É como se nosso cérebro estivesse sendo ameaçado por corpos estranhos, antígenos, os quais soariam um alarme emocional que nos motivaria a combatê-los para assegurar o equilíbrio interno. Ou, para falar em “psicologuês”, nosso sistema imune psicológico, como alguns autores o nomeiam, se encarregaria de proteger nossas crenças mais valiosas, ou seja, aquelas que definem quem somos nós.

As pessoas não brigam por discordâncias triviais como sobre o valor do café ou a previsão de chuva, mas podem se armar contra quem questiona sua centralidade no plano divino ou a relevância de suas lutas sociais. Em suma, quanto mais uma crença integra nossa identidade, mais nos dispomos a defendê-la – mesmo que isso vá contra as evidências.

Voltando ao cenário hipotético com que comecei este texto, talvez a compreensão de seus amigos de que a profecia falhou não fosse suficiente para fazê-los abandonar a seita. Para resolver essa dissonância cognitiva, seu líder poderia alegar que, digamos, Deus resolveu dar mais uma chance à humanidade. E isso provavelmente funcionaria. Frequentemente, grupos religiosos oferecem respostas às grandes questões existenciais, oportunizam socialização, consolam enlutados, recompensam membros fiéis e prometem um futuro maravilhoso aos convertidos. Com tudo isso em jogo, não seria difícil engolir a explicação do profeta.

No frigir dos ovos, formamos, mantemos e abandonamos crenças mais por sua utilidade do que por sua veracidade. E não me entenda mal: crenças verdadeiras são bastante úteis – e as incríveis realizações da ciência demonstram isso. Mas, como cantava Cazuza, “mentiras sinceras” também nos interessam. Às vezes, para muita gente, abraçar uma ilusão é muito mais vantajoso do que encarar a realidade.

Análise por Daniel Gontijo

Graduado em Psicologia, doutor em Neurociências (UFMG) e fundador do Instituto Ponto Azul

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