A Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou nesta sexta-feira, 5, o fim da emergência internacional por causa da pandemia da covid-19, que vigorava desde janeiro de 2020. A maior crise sanitária do último século matou quase 7 milhões de pessoas, segundo o balanço oficial, mas especialistas estimam que o total de vítimas deve ser próximo de 20 milhões.
A entidade global destaca que o pior já passou, mas é preciso manter cuidados, como o monitoramento de novas variantes do vírus e tomar a vacina. No Brasil, os governos têm ampliado a aplicação do imunizante bivalente, adaptado a novas mutações do Sars-CoV-2.
Natalia Pasternak, presidente do Instituto Questão de Ciência, diz que o coronavírus mostrou a necessidade de comunicação transparente, mas é cética sobre os aprendizados que o Brasil e o mundo tiveram com essa experiência. “Nenhuma medida preventiva - seja uso de máscaras, distanciamento social e vacinação - funciona sem uma comunicação extremamente transparente, honesta e que seja capaz de reconhecer as nossas incertezas”, diz.
Ainda segundo a bióloga, a crise sanitária foi marcada pelos problemas da gestão Jair Bolsonaro na condução do enfrentamento à doença, mas revelou avanços significativos na ciência e a necessidade de desenvolver estratégias de monitoramento de novas ameaças de surtos.
Pouco mais de três anos depois do início, a emergência de saúde pública da pandemia do coronavírus chega ao fim. O que aprendemos nesse período todo?
Sou bastante cética em relação à nossa capacidade de aprendizado com a pandemia da covid-19, visto que repetimos vários erros de pandemias passadas. Não só no Brasil, como no mundo todo. No País, espero que tenhamos aprendido o papel de uma boa comunicação de risco e uma boa comunicação de ciência e saúde com a população. Porque nenhuma medida preventiva - seja uso de máscaras, distanciamento social e vacinação - funciona sem uma comunicação extremamente transparente, honesta e que seja capaz de reconhecer as nossas incertezas.
Saber comunicar o que não sabemos ainda, o que estamos pesquisando e o que já sabemos, mas principalmente comunicar o processo da ciência, justamente porque a ciência é um processo. Ou seja, medidas que estão sendo tomadas hoje podem ser mudadas com novas evidências que forem obtidas com o decorrer das pesquisas. Esse tipo de comunicação é o maior aprendizado que se tira da pandemia - só que eu não sei se tiramos.
Na sua visão, as lacunas que a gente tinha no começo da emergência de saúde pública, há pouco mais de três anos, são as mesmas de hoje?
Aprendizados científicos houve inúmeros. Quanto ao aprendizado de condução da pandemia, que tem muito a ver com o meu trabalho de comunicação de ciência, sou cética. Em relação a avanços da ciência em si, foram inúmeros. Em pouquíssimo tempo, conseguimos isolar o vírus, sequenciá-lo, desenvolver vacinas, medicamentos, acompanhar a evolução do vírus com sequenciamentos continuados para ver a evolução das variantes.
A ciência avançou rapidamente e abriu portas para as nossas tecnologias. As vacinas genéticas, as vacinas de RNA que foram aprovadas durante a pandemia abriram espaço para que essa tecnologia seja usada para a prevenção de outras doenças, para tratamentos de outras doenças que nem são infecciosas, como tratamento de câncer, de doenças genéticas.
No Brasil, houve investigações por atraso na compra de vacinas, por medidas controversas etc. Como as medidas adotadas aqui podem ser vistas em relação ao que foi feito em outros países?
Houve problemas de logística, de administração pública, de comunicação. Não de ciência. O Brasil no que pôde contribuir com uma colaboração para o avanço da ciência durante a pandemia, contribuiu. Houve diversos pesquisadores e cientistas brasileiros envolvidos na colaboração internacional para o avanço da ciência. Internamente, a condução da pandemia durante o governo (Jair) Bolsonaro, deixou a desejar. O atraso na compra das vacinas, a falha na comunicação, a promoção de curas milagrosas, o tratamento da implementação das campanhas de vacinação em si, levantando dúvidas sobre a segurança das vacinas. Tudo isso atrapalhou muito.
Onde a gente ainda precisa avançar para combater emergências de saúde futuras?
Alguns aspectos precisam ser levados em conta quando pensamos em preparação para pandemias. O primeiro é realmente ter no País um sistema de vigilância genômica ativo para saber o que está circulando. E um sistema de notificação. Esses sistemas hoje não temos no Brasil. Não há nem um sistema de vigilância genômica de esgoto, por exemplo, para conseguir acompanhar o vírus da pólio.
Nos Estados Unidos, há um serviço de vigilância em esgoto que rotineiramente pesquisa se você tem poliovírus, poliovírus derivado de vacina. Isso precisa ser feito para todos os tipos de patógenos com potencial pandêmico.
Precisa ter um sistema de vigilância e um sistema de notificação, que englobem criação animal. Houve gripe suína, gripe aviária, muitas viroses conseguem proliferar em criação animal e daí passar para humanos. Além desse sistema de monitoramento, precisa ter um sistema de reação rápida a emergências, com comitês interdisciplinares que possam ser ativados quando se tem uma emergência sanitária. Não pode ser lento para reagir numa próxima vez.
Na prática, o que significa o fim da emergência de saúde pública e qual é a importância, no curto prazo, de seguir com medidas, como monitorar novas variantes, como a Arcturus, e atualizar o esquema vacinal com imunizantes bivalentes?
Não muda muita coisa na prática para a maior parte do mundo, porque já estamos vivendo normalmente. Já não há mais medidas de restrição que impactam o dia a dia do cidadão,
O que muda, e por que a OMS precisa declarar, é uma questão de logística e compromisso dos países membros. Enquanto está em vigor uma emergência global, os países-membros têm obrigações a cumprir com a OMS, como a notificação de casos e mortes durante a pandemia. E tem um valor simbólico muito importante. Deixa de ser uma emergência global, o que não quer dizer que ainda não tenha efeitos deletérios em grande parte do mundo -que precisam de cuidados, o Tedros Adhanom (diretor-presidente da Organização Mundial da Saúde) deixou isso muito claro.
Mudamos nossa relação com esse vírus, que sabíamos que veio para ficar. Vamos lidar com ele de outras maneiras. Em que regiões ele está endêmico? Quais as regiões que ainda precisam de cuidados? Onde ele está crônico? São situações diferentes agora para como a OMS e os países membros vão encarar esse vírus. Que esse aviso simbólico possa trazer tranquilidade para essas pessoas.