Um dos sustos que a consultora jurídica Aline Barros, de 39 anos, teve com os filhos gêmeos, Filipe e Lorenzo, aconteceu quando eles leram as placas de trânsito e de publicidade no caminho para a casa da avó quando tinham 2 anos. O espanto aumentou quando aprenderam inglês vendo desenhos animados e começaram a aprender árabe ouvindo músicas no celular. Hoje, aos 6, os dois leem histórias para os coleguinhas em uma escola municipal de Ermelino Matarazzo, zona leste, mas reclamam da falta de lição. O QI de Lorenzo é 150 e o de Filipe, 144, enquanto a média dos brasileiros gira entre 90 e 110.
Embora causem espanto e admiração ao fazer cálculos complexos e aprender vários idiomas quando estão saindo das fraldas, crianças superdotadas enfrentam dificuldades na escola, o primeiro contato com crianças fora do lar. Pais reclamam que faltam recursos extras para explorar o potencial dos filhos. Especialistas apontam despreparo dos professores, que não observam o lado emocional atrás dos talentos.
É difícil até comprovar a superdotação, pois o exame é caro. Existem habilidades que não são captadas pelos testes de inteligência, como as artísticas e corporais. Por isso, os superdotados – e suas famílias – sofrem.
Com 3 anos, Filippo já falava inglês também por causa dos desenhos animados. Uma série de testes apontou QI de 134 aos 4 anos e meio e uma idade cognitiva de 7 anos e 2 meses. Quando começou a ir para a escola, aos três anos, ele voltava chorando.
A mãe, a jornalista Roberta Castro, de 41 anos, descobriu que ele fazia a atividade em cinco minutos e queria brincar no parquinho, pois não tinha mais tarefa. “É o problema que existe em 90% das escolas que não entendem o que é superdotação”, diz a mãe. Hoje, numa escola mais preparada para a inclusão, ele está feliz.
Especialista em superdotação, criatividade e expertise há 40 anos, a neuropsicopedagoga Olzeni Ribeiro afirma que essa é uma questão pública de saúde mental, pois pode levar a distúrbios de ansiedade, traços depressivos e dificuldade de socialização. “Os superdotados já sabem ler, mas as outras crianças nem falam direito. Com isso, eles se sentem como um ET. Temos um número expressivo de crianças em sofrimento”, diz a especialista.
Os pais do aluno Gabriel, de 6 anos, de uma escola privada de Mato Grosso, que preferem não se identificar, receberam uma advertência: “O aluno tem realizado as atividades antes da explicação dos professores”. Ficaram em choque.
Há também preconceito e bullying entre os colegas. “Os colegas acham que superdotados tiram 10 em tudo ou querem se exibir e menosprezar os outros. Eles só aprendem mais rápido, mas não são gênios”, desabafou uma mãe nas redes sociais nesta quarta-feira, 10, em razão do Dia Internacional da Superdotação.
A busca pelo ensino adequado esbarra na falta de preparo dos professores. “Ainda não temos professores preparados. Não existe um curso de pós-graduação nessa área, por exemplo”, explica Ada Toscanini, presidente da Associação Paulista de Altas Habilidades e Superdotação (Apahsd).
Essa é a mesma opinião da neuropsicopedagoga Mariana Casagrande. “É preciso lidar com o aluno do ponto de vista emocional, comportamental e cognitivo. São alunos que necessitam de material adaptado. Sem isso, ele fica com o estigma de chato”. Olzeni identifica um componente cultural. “O professor ainda pensa que ele ensina e o aluno aprende. Não é fácil assimilar que um toquinho de 3 anos sabe as coisas. Ele não sabe o que fazer com aquela criança.”
Testes cada vez mais precoces
Especialistas alertam que é preciso diagnosticar os superdotados na primeira infância. A Associação Mensa Brasil, entidade que representa a Mensa Internacional, principal organização de alto QI do mundo, passou a receber diagnósticos de crianças com 2 anos e 6 meses a partir do mês de maio.
“Nos últimos dois anos, nós formamos um cadastro de 180 famílias que aguardavam essa antecipação para apresentar os laudos”, afirma Carlos Eduardo Fonseca, vice-presidente da Mensa. Pertencer à instituição facilita a obtenção de bolsas de estudos em escolas especializadas e intensifica o contato com outros superdotados.
A entidade tem 2.014 associados, 58 menores de idade. Para fazer parte da Mensa, é preciso percentil 98, ou seja, um QI superior a 98% da população. Os gêmeos do início do texto receberam nesta terça-feira, 9, a aprovação para ingressar na entidade. “Estou muito feliz. Minha grande angústia é encontrar uma boa escola. Eles têm grande vontade de aprender e perguntam 'por que' o dia todo”, diz Aline.
Mas não é fácil conseguir o laudo de excepcionalidade. Não existem testes no Sistema Único de Saúde (SUS). Em geral, os convênios médicos não cobrem as avaliações. Universidades e ONGs oferecem os testes, mas as filas de espera são de seis meses.
A saída é desembolsar entre R$ 2 mil e R$ 4 mil, o que exige malabarismos das famílias. A assistente financeira Caroline Rovira, de 30 anos, pediu a ajuda da mãe para conferir se o filho Arthur era superdotado. Elas pagaram R$ 1.300 em dez sessões que comprovaram QI 134 e idade mental de 9 anos – ele tem 7.
Mas não parou aí. Professores da EMEF 8 de Maio, em Itaquera, zona leste, onde o menino estuda, informaram que também era necessária uma avaliação multidisciplinar para acessar a sala de recursos. A mãe, então, recorreu à Associação Paulista de Altas Habilidades e Superdotação (Apahsd), conseguiu desconto e pagou R$ 600.
Depois de quatro meses, Caroline conseguiu a liberação para uso da sala com um professor especializado. Arthur aprendeu a ler e escrever sozinho antes dos 6 anos. Quando termina a lição de casa, o menino olha as planilhas do programa Microsoft Excel feitas pela mãe e já consegue ajudá-la.
Avanço de série: uma saída, mas não para todos
O conceito de altas habilidades/superdotação só passou a fazer parte da Lei de Diretrizes e Bases (LDB), que regulamenta a educação no País, em 2013. O advogado Denner Pereira da Silva, especialista no tema, explica que os superdotados têm direito a um plano educacional individualizado, sala de recursos no contraturno escolar com professor especializado e à aceleração de série.
“Algumas das dificuldades são a falta de conhecimento dos gestores escolares e a presença de leis locais com impeditivos contrários à Constituição”, enumera.
Com dois filhos superdotados, a advogada e neurocientista Claudia Hakim se especializou em Direito Educacional para apoiar famílias de superdotados em ações judiciais. A autora do livro Superdotação e Dupla Excepcionalidade esclarece que nem todo superdotado preenche os requisitos para avanço de série.
“É uma tomada de decisão delicada porque envolve maturidade da criança, bom desempenho acadêmico em todas as disciplinas, não basta uma só, e QI acima de 130”, explica.
No caso de Arthur, o avanço funcionou. Ele deveria estar na 2ª série, mas já foi acelerado para a 3ª. “Foi uma conquista. Eu e meu marido não queremos que ele avance muito por causa da diferença de idade, mas ele já fez até provas da 5ª série”, diz Caroline.
“Não falta legislação. O que falta é a aplicação da lei. Algumas questões que poderiam ser resolvidas nas secretarias de Educação acabam sendo levadas para o Judiciário”, avalia Hakim.
As redes sociais têm sido um canal cada vez mais importante para pedido de ajuda dos pais. Claudia Hakim coordena dois grupos no Facebook que somam 40 mil membros, enquanto o neuropsicólogo Damião Silva reúne quase 60 mil em duas contas no Instagram.
Roberta Castro criou um grupo de WhatsApp no qual profissionais tiram dúvidas de forma voluntária. Ele já conta com 164 famílias. “É uma conquista coletiva para ganhar visibilidade para essa causa. Passei por uma enorme angústia quando percebi que meu filho tinha possivelmente superdotação e não encontrava ninguém para me socorrer. A ideia do grupo veio daí.”
O risco de não identificar casos de altas habilidades é perder talentos. Ou, como explica Damião Silva, levar a outros diagnósticos na vida adulta. “Adultos que não foram identificados como superdotados na infância podem amadurecer com outros diagnósticos, como transtorno de humor, depressão e ansiedade”, opina.
Prefeitura diz oferecer atendimento especializado
A Prefeitura informa que o Atendimento Educacional Especializado (AEE) é oferecido por meio do Centro de Formação e Acompanhamento à Inclusão (CEFAI).
No caso dos gêmeos superdotados, a Prefeitura informa que “os estudantes são acompanhados de forma pedagógica, avaliados e não possuem indicação pela equipe especializada de necessidade de uso de Sala de Recurso Multifuncional”.
O poder municipal diz ainda que “durante a Educação Infantil, as práticas pedagógicas se dão em contextos de aprendizagem e de forma inclusiva, proporcionadas pelo espaço físico da escola e das propostas pedagógicas planejadas pelos docentes e em consonância com o Currículo da Cidade - Educação Infantil”.
A Prefeitura informa que o estudante da EMEF 8 de Maio faz uso do TEG (Transporte Escolar Gratuito) e Sala de Recursos desde a volta às aulas do segundo semestre. "O laudo não foi exigido por parte da escola, a criança foi avaliada pelos profissionais do CEFAI e houve indicação de uso da sala.”
Questionado sobre o mapeamento e os programas de capacitação de superdotados, o Ministério da Educação não se posicionou.