Há cerca de seis meses, a analista de marketing Larissa Wehbe, de 25 anos, começou a tomar um suplemento de biotina para fortalecer os cabelos e as unhas. Recentemente, ao abrir os resultados de um exame de rotina de tireoide, constatou alteração de seus níveis hormonais. Ela não sabia, mas a vitamina, que tem se popularizado para fins estéticos, pode interferir na reação química ocorrida em laboratório para a obtenção dos resultados de exames.
Além de alterar análises de tireoide, como TSH, T4 e T3, a biotina também pode modificar resultados de exames de hepatite, gravidez (Beta HCG), testosterona e vitamina D. Para evitar diagnósticos incorretos, laboratórios estão mudando condutas e orientações aos funcionários, incluindo novas perguntas para os pacientes, e dialogando com médicos que se deparam com taxas alteradas.
A biotina está na moda. O crescimento se deu principalmente porque pessoas passaram a alardear nas redes sociais e pelo boca a boca os supostos benefícios da substância. Mas, segundo representante da Sociedade Brasileira de Dermatologia (SBD), não há pesquisas científicas que comprovem sua eficácia em pacientes saudáveis.
A vitamina é encontrada facilmente nas prateleiras das farmácias e em lojas de suplementos, em fórmulas prontas, já que não é necessário receita para comprá-la. Não há dados consolidados do setor, mas empresas que comercializam fórmulas prontas, como Unilife Vitamins e Nutrends, relatam aumentos de até 10 vezes.
A Ultrafarma lançou, em 2014, uma versão com 60 cápsulas e, desde então, as vendas aumentaram 48%. "Acreditamos que o crescimento das vendas de biotina se deve pelo aumento da preocupação das pessoas com a queda de cabelo decorrente do estresse, falta de vitaminas e má alimentação, por exemplo", informa, em nota.
"A biotina é da família da vitamina B que tem papel no aproveitamento da energia celular. As células que se dividem rapidamente e precisam de energia se beneficiam. Tem estudos que mostram benefícios diante de doenças muito específicas nas unhas e no cabelo, mas não tem um mostrando que uma pessoa saudável é beneficiada", explica a médica dermatologista da Sociedade Brasileira de Dermatologia (SBD) Tatiana Gabbi.
A necessidade diária de biotina pode ser suprida por meio da alimentação. "O Food and Nutrition Board, do Instituto de Medicina dos Estados Unidos, faz uma segmentação por idade e, em um adulto, a quantidade recomendada é de 20 a 30 microgramas por dia. As pessoas estão tomando em miligramas. Na alimentação, adquire-se facilmente comendo cereais integrais, nozes, vísceras de animais", explica Rosita Fontes, membro da Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia (SBEM).
Larissa resolveu comprar o suplemento ao notar que os cabelos estavam caindo e as unhas estavam fracas. "Me mediquei, mas nunca imaginei que poderia dar alguma interferência no meu exame. Na hora de fazer o exame, nem me lembrei de falar da biotina. Falei só do anticoncepcional."
Na consulta, no mês passado, o resultado surpreendeu a médica que a acompanha, que solicitou repetição do exame em um prazo de três meses. "Na hora, achei que poderia ser um erro, porque nunca tive problemas desse tipo." A analista de marketing diz que vai refazer o exame e interromper o tratamento antes de realizá-lo. "Não vou abrir mão de tomar a biotina, porque vi uma melhora. Mas li que, se eu parar três dias antes, não vai ter interferência."
Foi o que comprovou um estudo publicado no ano passado em uma revista científica pela assessora médica em endocrinologia do Fleury Medicina e Saúde, Rosa Paula Mello Biscolla. Na análise, 19 voluntários tomaram 10 mg e tiveram o sangue colhido após a ingestão.
"O (hormônio) TSH diminuiu e o T4 livre e T3 aumentaram com um único comprimido. Os valores antes e depois eram muito diferentes, mas, 24 horas depois, já voltaram ao normal e continuavam 48 horas depois. A gente manteve a orientação de interromper 72 horas antes do exame, porque não sabemos a dose e o tempo que as pessoas estão tomando o suplemento."
Mas a alteração diz respeito somente ao exame. A vitamina não interfere na tireoide. "Não é que a tireoide fique doente. Essa mesma biotina que tem no leite, nos cereais e cogumelos é usada para fazer dosagens. A biotina se liga em outra molécula chamada estreptavidina e ajuda a 'enxergar' alguns hormônios. Quando o paciente está usando, vai ter uma interferência mostrando mais hormônio ou menos, mas as taxas estão normais. É o excesso de biotina na reação."
A questão já é discutida desde 2016, quando a relação entre a vitamina e interferências em resultados de exames foi apresentando em um congresso internacional de tireoide. A preocupação dos médicos é que pacientes recebam diagnósticos errados, como de hiper ou hipotireoidismo, e iniciem investigações ou tratamentos desnecessários.
"Se o novo resultado mantiver esses mesmos níveis, o médico então irá por outro caminho, solicitando novos exames. Por outro lado, se os níveis normalizarem, fica comprovado que a biotina foi responsável. Existem casos na literatura médica de pacientes que foram até tratados em cima de um diagnóstico equivocado por conta da interferência da biotina", diz Rosita.
Segundo Rosita, não são só exames da área da endocrinologia que podem ser afetados. "Pode causar interferência em exames de insulina, o beta HCG da gravidez, de marcadores tumorais e de marcadores de doenças virais, como hepatite B."
Soluções
Diretor médico de Análises Clínicas da Dasa, grupo que integra os laboratórios Alta Diagnósticos, Delboni Auriemo, Salomão Zoppi Diagnósticos e Lavoisier, Gustavo Campana diz que, desde então, laboratórios estão mais atentos aos resultados e têm buscado alternativas para evitar diagnósticos incorretos.
"Estamos fazendo muitas publicações sobre o tema e falando sobre isso em palestras e eventos médicos. Estamos perguntando as medicações e suplementos que o paciente toma diariamente, porque temos de estimular esse tipo de resposta. Além disso, nosso sistema compara com os exames anteriores e, se não for compatível, fazemos o contato com o médico.
Diretor médico do Richet Medicina & Diagnóstico, Helio Magarinos Torres Filho diz que é necessário que os pacientes comecem a avisar o médico e o laboratório sobre o uso de qualquer substância. "Tem muita gente que faz uso e acha que não precisa reportar. Mas eles precisam saber da possibilidade de interferência e sempre ter um diálogo com o médico, pois, ao ter um resultado de exame inesperado, podem ter de repetir o exame, o que onera o sistema de saúde."
Outras substâncias
Embora a biotina seja a substância mais conhecida dentre as que podem alterar resultados de exames, há outros suplementos que podem causar esse tipo de interferência. Os medicamentos vendidos sem prescrição médica, como os que são encontrados nas gôndolas de farmácias, também podem ter esse impacto.
"Encontramos casos de pessoas com a testosterona alta, mas por uso de um gel com a substância. Componentes do cranberry podem diminuir o valor do PSA (que mede alterações na próstata). O uso do corticoide, utilizado em infecções virais, interfere na dosagem da glicose", explica Carlos Eduardo Ferreira, patologista clínico e diretor de ensino da Sociedade Brasileira de Patologia Clínica e Medicina Laboratorial (SBPC/ML).
Outros exemplos são a aspirina, que pode modificar resultados de exames de coagulação, e a ginkgo biloba (planta medicinal), que pode ter impacto em análises de enzimas hepáticas, segundo Torres Filho.
Um estudo de junho deste ano realizado em 18 países da Europa e publicado na revista Clinical Chemistry and Laboratory Medicine apontou que quem faz uso de suplementos não tem o hábito de comunicá-lo ao fazer exames. A pesquisa ouviu 200 pessoas em cada país e constatou que 68% utilizavam suplementos e 55% consideravam importante comunicar o uso à equipe do laboratório.
Novas regras
Em julho, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) publicou novas regras para o mercado de suplementos alimentares e deu um prazo de cinco anos para a indústria se adequar. A regulamentação apresentou a lista de ingredientes que podem estar contidos nos produtos, que engloba 383 fontes de nutrientes e 249 aditivos alimentares, por exemplo. Também foram definidas as quantidades mínimas e máximas de componentes e foram autorizadas 189 alegações que podem ser usadas pelos fabricantes para abordar os benefícios à saúde.
"A nova regulamentação proporcionará informações claras ao consumidor uma vez que prevê o uso de alegações de propriedade funcional e de saúde incluindo funções plenamente reconhecidas, como a de vitaminas e minerais", comenta Tatiana Pires, engenheira de alimentos e presidente da Associação Brasileira da Indústria de Alimentos para Fins Especiais e Congêneres (Abiad).
Uma pesquisa realizada em 2016 pelas entidades do setor, incluindo a Abiad, apontou que os suplementos alimentares são consumidos em 54% dos lares brasileiros e que 53% dos consumidores são mulheres.