Um estudo sueco demonstrou uma associação inédita entre a presença de tatuagem e um risco mais elevado para linfoma, conhecido como um tipo de câncer no sangue. Isso alça, no máximo, as gravuras na pele a uma posição de fator de risco para o problema, uma vez que ainda não é possível apontar uma causalidade — para isso, são necessárias mais pesquisas.
Médicos não envolvidos na investigação destacam que o estudo publicado na revista científica eClinicalMedicine, do respeitado grupo Lancet, é robusto e bem feito, mas pedem cautela. “Gera muito mais uma pergunta do que chega a uma conclusão”, diz Guilherme Perini, hematologista do Hospital Israelita Albert Einstein. “Acende uma luz amarela, não vermelha”, resume.
“Não vamos proibir ninguém de fazer tatuagem. A grande mensagem do estudo é que as pessoas que têm tatuagem precisam fazer um controle maior. Um checkup anual pelo menos”, afirma Vanderson Rocha, professor de Hematologia e Terapia Celular da Faculdade de Medicina da USP.
De acordo com o Ministério da Saúde, o linfoma é um câncer que afeta os linfócitos, células responsáveis por proteger nosso corpo de infecções. Ele se desenvolve principalmente nos linfonodos (gânglios linfáticos), popularmente conhecidos como “ínguas”.
Para a pesquisa, os cientistas recorreram aos Registros da Autoridade Nacional Sueca — o que já dificulta extrapolar os dados para populações de outros países — e identificaram casos de linfoma maligno diagnosticados entre 2007 e 2017, entre pacientes de 20 a 60 anos — embora alguns subtipos desse tipo de câncer sejam mais comuns com o avançar da idade, essa faixa etária foi escolhida porque aumentava a chance de encontrar mais pessoas tatuadas. Os pesquisadores usaram um questionário de estilo de vida, que foi enviado aos pacientes (ou aos familiares em caso de morte), para definirem quem tinha tatuagem e quem não tinha.
Ao todo, o estudo envolveu mais de 11,9 mil pessoas — 2.938 pessoas tiveram linfoma. Entre elas, 1.398 pessoas com diagnóstico responderam ao questionário, enquanto o número de participantes do grupo controle foi de 4.193. No grupo com linfoma, 21% tinham tatuagem, enquanto isso foi observado em 18% do grupo controle.
De maneira geral, os pesquisadores descobriram que pessoas com tatuagens apresentavam um risco 21% maior de desenvolver linfoma comparado a quem não tinha desenhos na pele. O risco variou conforme o tempo depois de tatuar, sendo mais alto nos primeiros dois anos (risco 81% maior) e aumentou significativamente após 11 anos (risco 19% maior).
“É importante lembrar que o linfoma é uma doença rara e que nossos resultados se aplicam a nível de grupo (ou seja, refletem a tendência para uma grande população, mas não devem ser usados para estimar o risco de um indivíduo específico). Os resultados agora precisam ser verificados e investigados mais a fundo em outros estudos, e tais pesquisas estão em andamento”, disse a epidemiologista Christel Nielsen, da Universidade de Lund, na Suécia, autora principal do estudo, em comunicado à imprensa.
‘Hiperestimados’
Alguns especialistas vêm apontando na imprensa internacional que os resultados podem estar “hiperestimados”.
Cícero Martins, especialista em Oncologia Cutânea do Instituto Nacional de Câncer (Inca), acredita que essa pode, sim, ser uma possibilidade. “O estudo tem que ser avaliado com cautela. É um dado retrospectivo, e esses dados retrospectivos têm muitos vieses. Isso tem que ser levado em consideração.” Pelo ineditismo, o especialista brasileiro também aponta que a pesquisa é importante e destaca que a hipótese levantada precisa ser melhor estudada.
O grupo de pesquisa da Universidade de Lund afirmou que toca outros estudos para saber se existe alguma associação entre tatuagens e outros tipos de câncer. Eles também querem fazer mais pesquisas sobre outras doenças inflamatórias.
“As pessoas provavelmente vão querer continuar a expressar a sua identidade através de tatuagens. É muito importante que possamos garantir que isso seja seguro. Para o indivíduo, é bom saber que as tatuagens podem afetar a saúde, e que você deve procurar um médico caso apresente sintomas que acredite que possam estar relacionados a uma tatuagem”, afirmou Christel Nielsen.
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Tinta
Uma tatuagem é definida como a introdução na pele de pigmentos e corantes para obter um desenho permanente. Estudos e especialistas destacam que o número de pessoas que se tatuam tem crescido nos últimos anos. No Brasil, há estimativas de que até 20% da população tenha uma dessas gravuras.
No estudo, os pesquisadores destacam que entendemos muito pouco sobre o efeito em longo prazo das tatuagens na saúde, e apontam uma preocupação com a composição das tintas utilizadas. Segundo eles, há uma grande heterogeneidade, embora entre os compostos orgânicos e inorgânicos, sejam encontradas substâncias classificadas como cancerígenas pela Agência Internacional de Pesquisa sobre o Câncer (Iarc, na sigla em inglês).
O deslocamento de pigmento da pele (derme) para os gânglios linfáticos já foi demonstrado em outros estudos. Há relatos de casos de linfonodos — sem qualquer sintoma associado — cheios de pigmentos pretos.
“Os gânglios linfáticos contêm células em proliferação e são alvos sensíveis para produtos químicos cancerígenos”, escreveram os autores no novo estudo. “Parece razoável que a perturbação imunitária causada por produtos químicos relacionados com tatuagens depositados no sistema linfático possa explicar uma associação potencial entre a exposição à tatuagem e o linfoma”, sugerem.
No entanto, não encontraram associação de risco com o tamanho de área tatuada. “Se a gente esperava que a tinta fosse o problema, quanto maior a tatuagem, mais tinta, maior o risco. Isso não foi observado”, aponta Perini.
“Ainda não sabemos por que isso aconteceu. Só podemos especular que uma tatuagem, independentemente do tamanho, desencadeia uma inflamação de baixo grau no corpo, que, por sua vez, pode desencadear o câncer. O quadro é, portanto, mais complexo do que pensávamos inicialmente”, disse Christel.
Em 2022, a Agência Europeia dos Produtos Químicos (ECHA) limitou o uso de cerca de 4 mil produtos químicos “perigosos” encontrados em tintas de tatuagem na União Europeia. Além disso, a fiscalização tende a ser difícil, pois elas podem ser adquiridas pela internet ou compradas em feiras internacionais.
Ao Estadão, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) informou que os produtos registrados no Brasil precisam demonstrar segurança e eficácia em relatórios de avaliação biológica e revisão de literatura, por exemplo. Atualmente, afirma, existem 12 registros de pigmentos para tatuagem e para micropigmentação válidos no País.
De maneira geral, estudos anteriores não encontraram relações entre tatuagem e câncer ou eram muito pequenos. Uma revisão de 2012, publicada na The Lancet Oncology, muito citada em outros trabalhos, apontou que o número de casos de câncer de pele em tatuagens é “aparentemente baixo” e que “a associação tem de ser considerada até agora como uma coincidência”.
Essa coincidência, explicam especialistas, tem a ver com o fato de que a tatuagem pode mascarar uma mancha de preocupação e atrasar o diagnóstico. Essa é uma linha mais consensual dentro da academia médica.
Remoção a laser
No novo estudo, os pesquisadores viram que o tratamento a laser para remoção de tatuagens resultou em uma estimativa de risco maior para linfoma.
Para Cícero Martins, do Inca, não envolvido na pesquisa, esse é talvez um dos dados “mais interessantes”. “O que pode estar acontecendo aqui, conforme o estudo, é que o uso do laser deve levar a alterações dos compostos que estão dentro da tinta da tatuagem, transformando-os em substâncias carcinogênicas.”
Ele e outros especialistas pedem, porém, uma cautela extra com esse dado. “O número de pacientes que fizeram uso do laser para causar essa remoção da tatuagem e tiveram linfoma é pequeno, o intervalo de confiança é muito grande”, explica. “Mas realmente isso é uma associação que merece um estudo mais específico no futuro.”
“O laser é uma irradiação muito superficial. Acho que ainda é muito questionável”, avalia Rocha.
Linfoma
De acordo com o Ministério da Saúde, em geral, os linfomas acometem os gânglios linfáticos, com o aumento de volume dessas estruturas, popularmente denominadas de “ínguas”, e que fazem parte do sistema de defesa do organismo.
No entanto, é preciso entender que o inchaço das “ínguas” pode ser completamente normal. Muito provavelmente em reação a uma infecção, uma vez que se trata de um órgão de defesa do nosso corpo.
“O mecanismo de defesa reage às infecções formando uma inflamação dos linfonodos. Isso é normal. Porém, quando você tem um ataque frequente a esses linfonodos, isso pode virar um câncer, que é o linfoma”, explica Rocha.
O linfoma pode ocorrer em diversas partes do corpo, como pescoço, axilas e virilha, segundo a pasta da Saúde.
Sintomas
O inchaço começa a chamar atenção quando se mantém por muito tempo. Segundo especialistas, os principais sinais e sintomas são:
- Aumento dos linfonodos por mais de 30 dias;
- Suor noturno;
- Febre;
- Coceira na pele;
- Perda de peso sem causa aparente.
Fator de risco
A verdade é que muito pouco se entende sobre os fatores de risco para os linfomas, de acordo com especialistas. Há associações comprovadas com alguns vírus, como o Epstein-Barr, HIV-1 e HTLV1, e com a bactéria Helicobacter pylori. Pessoas com sistema imune comprometido, como aquelas que vivem com o vírus HIV e pacientes que usam drogas imunossupressoras, também podem ter risco aumentado.
Tratamento
Existem dezenas de tipos de linfomas, mas, de maneira geral, são classificados em dois grandes grupos, os Hodgkin — que se espalham de forma ordenada — e os não Hodgkin — de forma não ordenada. No novo estudo, por exemplo, os resultados foram sugestivos de um risco aumentado de linfomas de células B, particularmente linfoma difuso de grandes células B e linfoma folicular.
É por isso que, segundo especialistas, o tratamento pode variar muito. Em alguns casos, basta um acompanhamento mais atento. Já em casos mais graves, talvez haja até a necessidade de um transplante. Por exemplo, o ator Reynaldo Gianecchini passou por um autotransplante de medula óssea para tratar um linfoma.
“Neste estudo, a gente tem quase 3 mil casos. A grande maioria dos pacientes estão vivos. O número de pacientes que morreram é de 321, mais ou menos 11% (do total). Isso, por si só, já mostra como os nossos tratamentos dos linfomas são bastante eficazes”, aponta Perini.