A engenharia genética de alto nível conduzida em instituições de pesquisa do País está apontando para um caminho promissor de combate a alguns tipos de câncer. Depois de avançar em outros países na última década, desde 2022 um tipo específico de terapia celular vem mostrando resultados bastante promissores também no Brasil, alegrando pacientes e médicos, apesar de todos os percalços que um tratamento inovador ainda pode sofrer ao longo do tempo.
A novidade da terapia com as células CAR-T parte dos próprios linfócitos-T dos pacientes, células encontradas no sistema imunológico humano (veja quadro nesta página). A partir de março, com aprovação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), 81 pacientes serão acompanhados em um novo ensaio clínico com a terapia celular inovadora, promovido pela Fundação Hemocentro de Ribeirão Preto (Fundherp) em parceria com o Instituto Butantan.
“Começamos com 20 pacientes há um ano, que estavam com linfoma e leucemia já sem opção terapêutica, por causa da recidiva, mesmo após serem submetidos a vários tratamentos”, explica Rodrigo Calado, diretor-presidente do hemocentro de Ribeirão Preto. “Dos 20 casos, 14 tiveram ótimos resultados e estão bem. Agora, vamos começar a próxima etapa”, explica o médico.
A parceria entre o hemocentro do interior paulista e o Butantan é fundamentalmente para potencializar a soma de experiências de ambas as instituições, explica o hematologista de Ribeirão Preto. Seja no campo exclusivamente das pesquisas científicas, seja na área da fabricação de um produto biológico nacional para ser oferecido no Sistema Único de Saúde (SUS) em breve. Além de aprovar o início do ensaio clínico, a Anvisa vai acompanhar todas as ações do projeto de pesquisa até dezembro.
“Fui sem esperança porque tínhamos tentado de tudo, mas saí outra pessoa desse tratamento”, relata a auxiliar administrativa Aline de Oliveira, de 26 anos. Ela é uma das 14 pessoas que obtiveram bons resultados nas pesquisas do ano passado. Hoje, o câncer dela está em remissão total. “O tratamento com as células CAR-T foi como uma mágica pra mim. Depois de um mês, meu câncer desapareceu”, comemora a jovem que foi diagnosticada com leucemia linfoide aguda (LLA) em 2019 e, mesmo depois de nove meses de tratamento e até de um transplante de medula óssea, não conseguia melhorar. Os dados mostram, entretanto, que nem todos os pacientes seguiram o mesmo caminho.
Outro que saiu feliz do hospital foi Paulo Pelegrino, publicitário de 62 anos, que também fez parte do grupo de 2023 que teve acesso ao estudo clínico. A travessia do paciente, entretanto, foi longa e repleta de obstáculos. “Sou o 14º paciente de CAR-T no Brasil. O meu primeiro câncer, de próstata, surgiu em 2014. Entre 2018 e 2022, tive por três vezes linfoma não Hodgkin de células tipo B e fiz um transplante de medula. Em paralelo, desenvolvi a púrpura, uma doença autoimune que destrói as plaquetas. Estava para entrar em cuidados paliativos, quando soubemos da nova possibilidade [de tratamento]”, relembra Pelegrino. A transformação no horizonte de vida do publicitário ocorreu entre o final de 2022 e os primeiros meses de 2023.
Apesar de o percurso ter sido relativamente rápido, Pelegrino enfrentou efeitos colaterais importantes, como quedas bruscas de pressão arterial e até septicemia, uma grave infecção generalizada. São processos associados à reprodução das células modificadas dentro do próprio organismo do paciente e à destruição das células tumorais pelas CAR-T. As dificuldades encontradas pelo publicitário também podem atingir outros pacientes e, por isso, servem como um desafio, e um sinal de alerta, para os médicos.
Rota auxiliar
Em alguns hospitais autorizados no Brasil, é possível tentar enfrentar o câncer com a terapia por meio de células CAR-T. A possibilidade existe, entretanto, para um perfil específico de paciente e apenas para casos de recidiva de linfoma difuso de grandes células B (tipo de linfoma não Hodgkin) e leucemia linfoblástica aguda.
“É o maior avanço no tratamento do câncer dos últimos tempos ao lado dos outros pilares, como a quimioterapia, a radioterapia e as cirurgias”, afirma Jayr Schmidt Filho, chefe do Centro de Referência em Neoplasias Hematológicas do A.C.Camargo, umas das instituições credenciadas para fazer o tratamento no Brasil. Segundo o especialista, estudos para usar a terapia em casos de linfoma folicular e mieloma múltiplo também estão em andamento.
“Existe ainda um desafio grande para baixar o custo [da terapia]. Hoje, o produto final custa aproximadamente R$ 2 milhões por paciente”, diz o médico. Como os caminhos começaram a ser trilhados, explica Schmidt Filho, agora é questão de tempo e de investimento para que os avanços ocorram. No caso do hospital da capital, até agora foram realizadas 22 infusões entre protocolos comerciais e de pesquisa.