Talvez o que venha à sua cabeça ao pensar em um vencedor do Prêmio Nobel seja uma pessoa extremamente séria e formal. Um laureado na área de química, então, deve ser alguém que fala de forma difícil. O médico e bioquímico israelense Aaron Ciechanover quebra, de cara, todos esses estereótipos. “Isso mostra que os alunos de pós-graduação não estão todos condenados no final das contas. Você pode até conhecer o rei da Suécia”, brinca, sobre o prêmio que recebeu em 2004 por uma pesquisa da qual participou ainda na pós-graduação. Ele dividiu os louros com outros dois bioquímicos: Avram Hershko, o mentor dele, e Irwin Rose.
Ciechanover, junto a uma comitiva do hospital israelense Rambam Health Care Campus, esteve no Brasil na última semana e deu duas palestras. A primeira, na Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), que comemora 90 anos, e a outra, para convidados, no evento de posse do novo conselho consultivo da Confederação Nacional das Câmaras do Comércio Brasil-Israel (CNBI), realizado no Veirano Advogados. Além de acompanhar os dois eventos, o Estadão teve a oportunidade de entrevistá-lo (confira abaixo).
Junto aos colegas, Ciechanover descreveu, em 1978, como proteínas específicas, que não estão funcionando bem, são degradadas nas nossas células, um processo denominado de proteólise. Ele ocorre por meio do chamado “sistema de ubiquitina”, que exerce a função de controle de qualidade. Descrevendo assim parece algo sem tanta importância, mas esse mecanismo é vital. Afinal, o acúmulo de proteínas “doentes”, que deveriam ter sido quebradas, está associado a doenças neurodegenerativas e ao câncer.
“Somos feitos de 25 mil proteínas diferentes”, explica Ciechanover. E elas são extremamente sensíveis a várias coisas, como temperatura e mutações – por isso, não dá para mantê-las intactas até o final da vida.
Para tirar a prova, o bioquímico sugere uma experiência com carne, um alimento reconhecido por ser fonte proteica. “Pegue um pedaço de carne crua e coloque na mesa por um dia. Depois, veja o que aconteceu com ela. Fica marrom e fedendo. Você tem que jogá-la fora. Essas proteínas apodreceram”, diz. Acontece que nossa temperatura interna é de aproximadamente 37 °C, ou seja, mais elevada do que a temperatura ambiente. “Então, dentro do corpo, é ainda pior”.
Depois de alguns anos de investigações, Ciechanover e os colegas descobriram o seguinte: quando chega a hora de uma proteína defeituosa ser decomposta, uma molécula de ubiquitina (nome que vem de “ubíquo”, que significa “onipresente”) se liga a ela, funcionando como um marcador. Daí vem uma segunda molécula, depois uma terceira e assim vai, até se formar uma cadeia de poliubiquitina.
É esse emaranhado que sinaliza a necessidade de uma proteína ser destruída. Segundo Ciechanover, é como se o sistema de ubiquitina e as proteínas estivessem nadando no mesmo aquário, mas o tubarão só vai atacar se houver esse sinal. “O comitê do Nobel chamou a cadeia de poliubiquitina de beijo da morte”, conta.
À primeira vista, confessa, talvez nem ele tenha dado o devido valor à descoberta, que hoje chama de “meu bebê”. Décadas depois, porém, com mais estudos e investimentos, compreendeu-se melhor como o sistema está por trás de uma série de doenças. Dessa maneira, medicamentos foram desenvolvidos e milhares de vidas, salvas. A seguir, confira nossa conversa com Aaron Ciechanover.
Como o sistema de ubiquitina está associado a doenças neurodegenerativas, como Alzheimer, e ao câncer?
Todas essas doenças têm um denominador comum: proteínas agregadas que deveriam ser removidas, mas não são. Portanto, de alguma forma, o sistema falha ou simplesmente não consegue (degradá-las), porque é como um ‘ovo duro’. Em biologia, tudo ocorre em um ambiente aquoso. Uma vez que você tem um ‘ovo’ agregado, como uma rocha, é muito difícil para a enzima ‘mordiscar’. Isso, então, é falha do sistema ou incapacidade do sistema, mas sempre tem a ver com esse controle de qualidade.
E existem muitas doenças, posso dar a você uma palestra sobre isso (o fato de que muitas doenças têm a ver com acúmulo de proteínas). E, claro, o sistema de ubiquitina está de alguma forma ligado a isso.
O senhor explicou que há cânceres causados por uma degradação exagerada de proteínas, e outros por uma menor degradação, o que leva ao acúmulo de proteínas defeituosas. Pensando nisso, o senhor acha que encontraremos uma cura universal para essa doença ou os tratamentos serão individualizados?
Eu não acho (que uma única terapia vai curar todos os tipos de câncer), mas não sou um profeta. Exceto por dois tipos de câncer que conheço – um é o de testículo e o outro, é um tipo de leucemia chamada leucemia promielocítica –, que são tratáveis e totalmente curáveis com apenas um ou dois medicamentos, todos os outros precisam de uma combinação (de medicamentos). E o câncer pode criar resistência à combinação. Muitos deles (cânceres) estão voltando. A não ser que seja algo limitado, como um tumor na pele que é retirado, e não há metástase.
A razão para isso está no mecanismo subjacente do câncer. Uma das suas características é a instabilidade genômica. No genoma de pessoas saudáveis, se houver um erro, uma mutação, há correção imediata. O câncer é instável, desenvolve mutações o tempo todo, e também desenvolve mutação sob a pressão do tratamento. De vez em quando, o tratamento piora a situação. Inicialmente, a maioria dos pacientes responde (ao tratamento) e, de repente, (o tumor) torna-se agressivo e nenhum tratamento ajuda, porque estamos o colocando sob pressão.
O câncer é uma doença sorrateira, que encontra uma maneira de fugir (do controle). Até onde posso falar, vamos conseguir tratá-lo com uma abordagem de múltiplas drogas. E eu sei que as pessoas estão procurando por magia. Elas querem tomar uma única pílula que faça o câncer desaparecer, mas parece que isso não vai acontecer.
Aaron Ciechanover
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E esses tratamentos vão ser focados no tipo de câncer ou no paciente?
Acho que vai ser no paciente e no câncer. Como gosto de dirigir, sempre comparo com carros. Digamos que, de manhã, seu carro não liga, então, o nome da doença é “o carro não liga”. Mas o motivo pode ser que você esqueceu as luzes acesas e a bateria está descarregada, o fato de ter batido em uma pedra, a existência de um buraco no tanque de óleo ou uma chuva que deixou o carro enferrujado. Portanto, se você consertar um motivo, mas não for o correto, o carro ainda não se moverá.
Digamos que a mulher tem câncer de mama e você a trata com tamoxifeno (um remédio que bloquea a atuação do estrogênio nas células), mas o problema não é uma mutação no receptor de estrogênio, e sim no receptor EGF (sigla para fator de crescimento epidérmico). Perdemos tempo e dinheiro e, principalmente, a doença vai piorar. Você precisa tratar sempre a doença no contexto do paciente. Essa é a beleza da medicina personalizada.
Até agora, olhávamos apenas para a doença. ‘Você tem um tumor na mama, vamos ver se não tem metástase, o cirurgião vai cortar fora, vamos mandar para radioterapia e quimioterapia’. Era uma espécie de tamanho único. Agora, o tratamento será feito sob medida para o paciente e a doença.
Quando questionado sobre a cura do câncer, o senhor falou que progredimos bastante. Pode explicar um pouco melhor?
Vou trazer dois exemplos. Um deles é a imunoterapia. Durante anos, foi um enigma por que e como o câncer, que é estranho ao corpo, passa despercebido pelo sistema imunológico. Então, as pessoas descobriram que o câncer é realmente complicado, e que o sistema imunológico é feito como um carro de dois pedais: o acelerador e o freio. Quando pisamos no acelerador, o preço que podemos pagar é desenvolver doenças autoimunes, quando nosso próprio sistema imunológico nos ataca. Mas você não quer pisar demais no freio, porque fica sem imunidade. Portanto, é sempre um equilíbrio entre o freio e o acelerador.
Então, as pessoas dizem ‘vamos desenvolver um anticorpo suave para o freio’. E os anticorpos tiram um pouco o pé do freio, e o carro acelera. De fato, o que fizeram foi baixar o limiar (do freio) e, agora, o câncer está exposto ao sistema imunológico. Isso revolucionou o tratamento do câncer.
Tomemos, por exemplo, o melanoma, que é o câncer de pele que causa a morte dentro de três a quatro meses devido à metástase. Agora, é uma doença curável, não para todos os pacientes, mas para muitos deles. Aqueles que não têm cura desfrutam de uma alta qualidade de vida, por 10 ou 15 anos.
Aí veio uma segunda questão: vamos liberar mais o acelerador. Então, tiramos linfócitos T do paciente (células de defesa), manipulamos no laboratório e infundimos de volta ao paciente, para atacar o tumor (trata-se da terapia com células CAR-T). Para o câncer hematológico, foi um milagre. O tratamento do mieloma múltiplo e da leucemia mudou completamente. Pacientes morriam em poucos meses e, agora, estão vivendo 10 a 15 anos. Alguns deles são curados.
O número de pacientes com câncer está aumentando e, entre outras coisas, muito disso é porque estamos vivendo mais. Isso já é uma grande conquista, e se a vida mais longa for de qualidade, e eles não precisarem correr para o hospital a cada dois dias, então é significativo. É realmente uma conquista significativa.
Aaron Ciechanover
Sobre essas doenças neurodegenerativas, como Alzheimer, o senhor comemorou a aprovação do primeiro medicamento pelo FDA, mas deu a entender que progredimos menos do que com o câncer. Por quê? Sabemos menos sobre as doenças neurodegenerativas?
As pessoas prestam atenção para saber o que está em pauta. Então, de alguma forma, o câncer ‘veio’ primeiro. Tem a ver com investimento do governo em pesquisa, disponibilidade do pesquisador e com a complexidade.
Agora, pense em um exame de imagem. Para o cérebro, precisamos de imagens muito sofisticadas. Até a década de 1980, só tínhamos o raio-X, e ele não enxergava o cérebro, não enxergava os tecidos moles. Hoje, temos ressonância magnética e tomografia computadorizada. Podemos injetar isótopos e perguntar às pessoas quanto é dois mais dois e, quando elas respondem, conseguimos ver como os neurônios são iluminados e, assim, acompanhar a função. É uma questão de tecnologia. Estou otimista de que chegaremos lá.
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O que ainda não entendemos sobre as doenças neurodegenerativas?
Não entendemos o cérebro. Não entendemos as funções nobres do cérebro. Não entendemos o que é memória. Se eu digo a você “mãe”, ou seja, apenas uma palavra, de repente surge (na sua cabeça) a foto da sua mãe, os cheiros da comida, as lembranças, os acontecimentos. E onde estão? O que eles querem dizer? O que eles significam fisicamente? Do que são feitos? Se você pensa em doenças cardíacas, são principalmente problemas de instalação, de dutos e de eletricidade. Câncer é um pouco mais complexo, é sobre a regulação do ciclo celular, e rápidas divisões celulares. O cérebro é sobre emoções, sobre memória, sobre inteligência, sobre criatividade. É muito mais complexo.
Em uma entrevista, ao falar sobre medicina personalizada, o senhor disse que, no momento, ‘usamos grandes canhões para atirar em moscas’. Quais as atuais fragilidades da medicina no tratamento de doenças e o que o senhor quis dizer com essa analogia?
Até agora, o canhão era a nossa única arma. Não tínhamos acesso ao genoma, então, era isso que tínhamos. Fizemos quimioterapia, fizemos cirurgias ‘mutiladoras’, tirando a mama, e fizemos radioterapia com efeitos colaterais. Isso é o que tínhamos.
A tecnologia oferece, agora, novas armas que são muito mais sutis, muito mais delicadas, e podemos olhar para o genoma, sequenciá-lo e identificar uma mutação. Depois de identificar uma mutação, em princípio, é possível ver qual é a diferença na estrutura entre a proteína mutante e a normal. Você pode ir ao químico computacional e pedir a ele para projetar uma molécula que se encaixe na proteína mutante, mas não na proteína normal. Esse é o roteiro que leva ao desenvolvimento de novos medicamentos.
A promessa é óbvia: em vez de realmente atirar com um assassino inespecífico, porque a quimioterapia afeta todas as células normais e tudo mais, estamos entrando na célula doente e na mutação na célula. Assim, deixamos todos os outros tecidos intactos e vamos ver se os efeitos colaterais serão menores.
Aaron Ciechanover
Mas não é algo que o New York Times anunciará em 1º de janeiro de 2024. É um processo contínuo. Temos que acumular dados de vários pacientes e também big data, e, no final, teremos um produto muito, muito melhor.
Aqui no Brasil, um assunto tem sido bastante polêmico nas últimas semanas. Trata-se da ozonioterapia. O senhor já ouviu falar sobre isso?
Nunca ouvi falar sobre. E o que ela faz?
É uma técnica que consiste na aplicação de uma mistura dos gases oxigênio e ozônio por diversas vias. Embora só haja liberação para uso estético e na odontologia, algumas associações defendem que essa terapia pode ser usada para tratar vários quadros clínicos, sem apresentar estudos que sustentem isso. O que o senhor acha da inclusão de uma terapia envolta de controvérsias e sem evidências no cardápio de um sistema público de saúde?
Eu sou um cientista, acredito na ciência. Não que eu seja contra (ozonioterapia), porque eu não sei nada sobre isso e nunca ouvi falar, o que é um pouco suspeito, porque se algo é mundialmente conhecido, normalmente estou lendo sem parar. Mas, se não tem base científica, é abertura para charlatanismo. Tem gente vendendo coisas que são perigosas e ganhando dinheiro. As pessoas estão desesperadas. É verdade. A medicina não tem resposta para tudo. Na verdade, não tem resposta para muitos problemas que incomodam. Então, algumas pessoas se voltam para Deus, algumas se voltam para a bruxaria, outras se voltam para a conta bancária e desperdiçam seu dinheiro. No final das contas, se houver uma base científica para isso, tudo bem, se não...