Transtornos alimentares são graves e comuns, mas demoram a ser tratados; entenda e veja sinais


Eles afetam cerca de 55 milhões da população mundial e vão muito além de anorexia e bulimia

Por Leon Ferrari

ENVIADO ESPECIAL A BRASÍLIA* - Com as maiores taxas de mortalidade entre as doenças psiquiátricas, os transtornos alimentares chegam tarde aos psiquiatras e tendem a ter um diagnóstico tardio, o que pode prejudicar o sucesso do tratamento, alertaram especialistas da área durante o XLI Congresso Brasileiro de Psiquiatria.

“Os pacientes com transtornos alimentares chegam para nós, no consultório, diante de uma complicação secundária, como um quadro de desnutrição, quando eu já preciso interná-los e, aí sim, vou fornecer o tratamento (adequado)”, falou psiquiatra Maria Amália Pedrosa, coordenadora da residência em psiquiatria do Instituto Capixaba de Ensino, Pesquisa e Inovação em Saúde (ICEPi), durante o evento, que ocorreu no final de outubro, em Brasília.

Isso acontece, de acordo com as especialistas, por diversas razões, que incluem o estigmas e conceitos errôneos — como dizer que só afetam mulheres ou que todos envolvem um peso específico para diagnóstico —, a falta de serviços públicos especializados, falhas na formação médica e, sobretudo, uma especificidade desses pacientes. “Eles são egossintônicos”, descreve Maria Amália. Isso significa que há uma dificuldade em reconhecer que o próprio comportamento causa um prejuízo. Por isso, quem costuma levar os pacientes ao consultório são familiares e amigos preocupados.

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Transtornos alimentares são mais comuns do que sempre se imaginou, mas tendem a ser reconhecidos tardiamente. Foto: weixx/Adobe Stock

Um estudo publicado na respeitada revista científica The Lancet Psychiatry, em 2021, colocou em xeque o que se pensava sobre os transtornos alimentares, expandindo as estimativas para além da anorexia e da bulimia nervosas.

Nomeada como o “fardo oculto dos transtornos alimentares” (em tradução livre), a pesquisa usou dados do famoso banco de dados Global Burden of Disease (GDB), de 2019, e de outras pesquisas. Naquele momento, o GDB considerava para suas estimativas apenas a anorexia e a bulimia, com uma estimativa de 13,6 milhões de casos globalmente.

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A partir dos dados do GDB e de outros estudos epidemiológicos, publicados entre 1998 e 2019, os autores estimaram outros 41,9 milhões casos de transtorno da compulsão alimentar periódica e transtorno alimentar não especificado (OSFED, na sigla em inglês, no qual há perturbação no padrão alimentar, sofrimento, mas o paciente não responde a critérios diagnósticos dos outros transtornos). Totalizando, então, 55,5 milhões de pessoas com transtornos alimentares globalmente em 2019.

Com isso, a prevalência desses transtornos passou de 0,2% da população mundial para 0,7%, aproximando-se da estimativa dos transtornos por uso de substâncias (drogas), e superando as de transtorno bipolar, do espectro autista e de conduta.

Os transtornos

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A psiquiatra Mireille Almeida, professora da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo, listou, durante o Congresso, os quatro transtornos mais vistos no cotidiano do consultório. São eles:

  • Anorexia nervosa: nela, há uma severa restrição alimentar, com uma preocupação extrema com a forma do corpo. O paciente está abaixo do peso normal (o peso é um critério diagnóstico somente para a anorexia).
  • Bulimia nervosa: padrão alimentar irregular. O comportamento pode incluir pular refeições assim como passar por restrições alimentares. Há uma supervalorização da imagem corporal e ações purgativas compensatórias (como induzir o próprio vômito).
  • Transtorno da compulsão alimentar periódica: segundo a American Psychiatric Association (APA), o paciente apresenta episódios de compulsão alimentar nos quais consome grandes quantidades de comida em um breve período, com uma sensação de perda de controle e angústia, mas não recorre a comportamentos compensatórios.
  • Transtorno alimentar restritivo evitativo: são os pacientes com dificuldade de atender às necessidades nutricionais e com uma alimentação extremamente seletiva, de acordo com a APA.

Quais são os sinais?

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É preciso que amigos e familiares estejam atentos, porque esses transtornos são mais prevalentes do que sempre se imaginou. Durante o evento, as especialistas indicaram alguns comportamentos que podem indicar que algo não vai bem. São eles:

  • Mudança no padrão da alimentação, tanto os hábitos compulsivos como restritivos;
  • Preocupação constante com o peso e com a alimentação;
  • Alterações extremas no peso, sejam ganhos ou perdas;
  • Isolar-se para se alimentar.

Maria Amália destacou alguns grupos que merecem mais atenção — o que não significa que pessoas fora deles não possam ter transtornos alimentares. São eles: como adolescentes, pessoas com diabetes, mulheres com ovários policísticos e indivíduos com queixas gastrointestinais. Algumas profissões também são afetadas desproporcionalmente, a exemplo de bailarinos, atletas e modelos.

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Homens também podem ter transtornos alimentares

Um dos mitos que rondam os transtornos alimentares é de que não afetam os homens. No Congresso, porém, as médicas destacaram que isso não é verdade.

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“Para a anorexia, realmente a prevalência é maior em mulheres. Mas, quando observamos o transtorno da compulsão alimentar e o transtorno alimentar não especificado, está quase de um para um”, comentou Maria Amália.

Esse estigma tem raízes na maneira como o assunto foi abordado e pesquisado durante muitos anos. “Muito da literatura de transtorno alimentar foi estudado em padrão corporal feminino. Isso é um grande problema, porque hoje vemos que alguns padrões estéticos são muito diferentes para os homens. O que pode ser o ideal de magreza para a mulher, pode ser uma quantidade muscular para o homem (por exemplo)”, diz ela.

Maria Amália lembra que por muito tempo um dos critérios diagnósticos da anorexia foi a amenorreia (parar de menstruar). Segundo ela, contudo, isso já começou a mudar.

Exercício físico merece atenção

No que diz respeito ao estilo de vida, o exercício físico é considerado um dos pilares mais importantes para a manutenção da saúde, já que traz benefícios para o corpo e a mente. No entanto, em pacientes com transtorno alimentar, ele pode indicar que algo está errado.

“O exercício é considerado excessivo quando interfere significativamente em atividades importantes, ocorre em momentos ou ambientes inapropriados ou quando o indivíduo continua a se exercitar apesar de lesões ou outras implicações médicas, resultando em comprometimento da saúde física e psicológica”, descreve a psiquiatra Patrícia Lemos.

“Muitas vezes ele é utilizado como uma estratégia compensatória em pacientes que têm transtornos alimentares”, completa.

Por outro lado, ela aponta que as evidências atuais sugerem que a atividade física pode ser uma ótima aliada no âmbito do tratamento. Mas a especialista alerta que, antes de começar a prática, é preciso fazer uma avaliação do estado de saúde do paciente. Se ele for liberado para se exercitar, isso deve acontecer de forma supervisionada.

“Uma revisão sistemática apontou que o exercício reduz a gravidade de sintomas depressivos e ansiosos, o que pode reduzir a frequência dos episódios de compulsão alimentar. Teria, então, uma ação direta no sistema de recompensa, auxiliando na regulação do humor.” A meta-análise que analisou o impacto de exercício físico como aliado terapêutico em pacientes com transtorno da compulsão alimentar foi publicada no Journal of Nutrition Education and Behavior, em 2023.

“A restrição completa do exercício não é necessária ou apropriada em muitos casos, e pode até fazer mais mal do que bem”, concluiu ela.

Um paciente ‘desafiador’ em meio a falhas na formação médica

Segundo Mireille Almeida, não dá para negar que, nos últimos anos, muitos estudos ajudaram a melhorar a identificação desses quadros e ocorreram avanços importantes em relação ao diagnóstico e tratamento. Mas ela comentou que a realidade ainda é complicada: “A prática vai nos mostrando que o dia a dia desses pacientes com transtornos alimentares é muito mais difícil, muito mais desafiador e complexo do que encontramos, às vezes, nesses estudos”.

Ela mostrou estudos, ao investigar melhor essa complexidade, buscando as perspectivas de pacientes, familiares e profissionais de saúde, encontraram “sentimentos como frustração, irritabilidade, resistência ou aversão podem ser identificados nessa equipe cuidadora”. “Isso interfere diretamente no vínculo terapêutico, na relação com esse paciente, consequentemente alterando e comprometendo tanto o próprio tratamento como o prognóstico. Isso é muito grave.”

Outras pesquisas revelam como a formação médica, da graduação à residência, pode estar falhando na educação em relação aos transtornos alimentares, apresentou ela. Um relatório do Parliamentary and Health Service Ombudsman (PHSO), órgão independente do governo do Reino Unido que investiga queixas sobre o NHS — o SUS britânico —, apontou que o treinamento para médicos sobre esses quadros é limitado “a apenas algumas horas”.

“E isso traz uma preocupação adicional. Porque nós (psiquiatras) vamos tratar os pacientes com transtorno alimentar provavelmente. Mas, para a grande maioria deles, o primeiro contato não é com o psiquiatra, é com o clínico geral”, afirmou.

Mesmo entre os psiquiatras, todavia, o conhecimento pode não ser adequado. Ela e outros pesquisadores investigaram a realidade brasileira em estudo publicado na Revista Brasileira de Psiquiatria, da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP).

Foram 259 psiquiatras avaliados via formulário online. Cerca de 15% tiveram algum contato ou treinamento a respeito de transtornos alimentares na própria graduação, e apenas 60% deles tiveram durante a formação em psiquiatria, contou Mireille.

O formulário incluiu perguntas para avaliar os conhecimentos deles sobre os critérios diagnósticos e também sobre os tratamentos recomendados. Apenas 12,74% responderam corretamente todas as questões sobre diagnóstico, e nenhum participante acertou todas as questões de tratamento, mostrou a pesquisa.

Outro entrave é a falta de serviços especializados, sobretudo públicos, alerta Maria Amália. Em setembro deste ano, em audiência pública na Comissão de Assuntos Sociais do Senado, especialistas denunciaram a falta de leitos e profissionais especializados no tratamento de transtornos alimentares no Brasil.

Segundo eles, havia apenas 15 centros públicos no País e uma única enfermaria especializada – para internações, por exemplo —, em toda a América Latina, o Programa de Transtornos Alimentares (Ambulim), localizado no Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP).

“Em epidemiologia, o transtorno da compulsão alimentar é muito prevalente, e ele está associado à obesidade. É preciso ter serviços para isso, ou vou tentar tratar a obesidade com remédio, e não vou tratar a compulsão alimentar?” pontua Maria Amália. Ela conta que, embora menos prevalente, os casos de anorexia podem ser bastante graves. “Às vezes, é preciso internar, e eu não tenho leitos de internação”, completa.

Tratamento

Apesar do cenário complexo, durante o evento as médicas reforçaram que o tratamento é possível e evoluiu bastante nos últimos anos. Contudo, o que faz muita diferença é quão cedo ele vai começar. “O reconhecimento e a intervenção precoces dentro dos transtornos alimentares são fundamentais para a resposta ao tratamento”, afirmou Mireille.

*O repórter viajou a convite da Associação Brasileira de Psiquiatra

ENVIADO ESPECIAL A BRASÍLIA* - Com as maiores taxas de mortalidade entre as doenças psiquiátricas, os transtornos alimentares chegam tarde aos psiquiatras e tendem a ter um diagnóstico tardio, o que pode prejudicar o sucesso do tratamento, alertaram especialistas da área durante o XLI Congresso Brasileiro de Psiquiatria.

“Os pacientes com transtornos alimentares chegam para nós, no consultório, diante de uma complicação secundária, como um quadro de desnutrição, quando eu já preciso interná-los e, aí sim, vou fornecer o tratamento (adequado)”, falou psiquiatra Maria Amália Pedrosa, coordenadora da residência em psiquiatria do Instituto Capixaba de Ensino, Pesquisa e Inovação em Saúde (ICEPi), durante o evento, que ocorreu no final de outubro, em Brasília.

Isso acontece, de acordo com as especialistas, por diversas razões, que incluem o estigmas e conceitos errôneos — como dizer que só afetam mulheres ou que todos envolvem um peso específico para diagnóstico —, a falta de serviços públicos especializados, falhas na formação médica e, sobretudo, uma especificidade desses pacientes. “Eles são egossintônicos”, descreve Maria Amália. Isso significa que há uma dificuldade em reconhecer que o próprio comportamento causa um prejuízo. Por isso, quem costuma levar os pacientes ao consultório são familiares e amigos preocupados.

Transtornos alimentares são mais comuns do que sempre se imaginou, mas tendem a ser reconhecidos tardiamente. Foto: weixx/Adobe Stock

Um estudo publicado na respeitada revista científica The Lancet Psychiatry, em 2021, colocou em xeque o que se pensava sobre os transtornos alimentares, expandindo as estimativas para além da anorexia e da bulimia nervosas.

Nomeada como o “fardo oculto dos transtornos alimentares” (em tradução livre), a pesquisa usou dados do famoso banco de dados Global Burden of Disease (GDB), de 2019, e de outras pesquisas. Naquele momento, o GDB considerava para suas estimativas apenas a anorexia e a bulimia, com uma estimativa de 13,6 milhões de casos globalmente.

A partir dos dados do GDB e de outros estudos epidemiológicos, publicados entre 1998 e 2019, os autores estimaram outros 41,9 milhões casos de transtorno da compulsão alimentar periódica e transtorno alimentar não especificado (OSFED, na sigla em inglês, no qual há perturbação no padrão alimentar, sofrimento, mas o paciente não responde a critérios diagnósticos dos outros transtornos). Totalizando, então, 55,5 milhões de pessoas com transtornos alimentares globalmente em 2019.

Com isso, a prevalência desses transtornos passou de 0,2% da população mundial para 0,7%, aproximando-se da estimativa dos transtornos por uso de substâncias (drogas), e superando as de transtorno bipolar, do espectro autista e de conduta.

Os transtornos

A psiquiatra Mireille Almeida, professora da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo, listou, durante o Congresso, os quatro transtornos mais vistos no cotidiano do consultório. São eles:

  • Anorexia nervosa: nela, há uma severa restrição alimentar, com uma preocupação extrema com a forma do corpo. O paciente está abaixo do peso normal (o peso é um critério diagnóstico somente para a anorexia).
  • Bulimia nervosa: padrão alimentar irregular. O comportamento pode incluir pular refeições assim como passar por restrições alimentares. Há uma supervalorização da imagem corporal e ações purgativas compensatórias (como induzir o próprio vômito).
  • Transtorno da compulsão alimentar periódica: segundo a American Psychiatric Association (APA), o paciente apresenta episódios de compulsão alimentar nos quais consome grandes quantidades de comida em um breve período, com uma sensação de perda de controle e angústia, mas não recorre a comportamentos compensatórios.
  • Transtorno alimentar restritivo evitativo: são os pacientes com dificuldade de atender às necessidades nutricionais e com uma alimentação extremamente seletiva, de acordo com a APA.

Quais são os sinais?

É preciso que amigos e familiares estejam atentos, porque esses transtornos são mais prevalentes do que sempre se imaginou. Durante o evento, as especialistas indicaram alguns comportamentos que podem indicar que algo não vai bem. São eles:

  • Mudança no padrão da alimentação, tanto os hábitos compulsivos como restritivos;
  • Preocupação constante com o peso e com a alimentação;
  • Alterações extremas no peso, sejam ganhos ou perdas;
  • Isolar-se para se alimentar.

Maria Amália destacou alguns grupos que merecem mais atenção — o que não significa que pessoas fora deles não possam ter transtornos alimentares. São eles: como adolescentes, pessoas com diabetes, mulheres com ovários policísticos e indivíduos com queixas gastrointestinais. Algumas profissões também são afetadas desproporcionalmente, a exemplo de bailarinos, atletas e modelos.

Homens também podem ter transtornos alimentares

Um dos mitos que rondam os transtornos alimentares é de que não afetam os homens. No Congresso, porém, as médicas destacaram que isso não é verdade.

“Para a anorexia, realmente a prevalência é maior em mulheres. Mas, quando observamos o transtorno da compulsão alimentar e o transtorno alimentar não especificado, está quase de um para um”, comentou Maria Amália.

Esse estigma tem raízes na maneira como o assunto foi abordado e pesquisado durante muitos anos. “Muito da literatura de transtorno alimentar foi estudado em padrão corporal feminino. Isso é um grande problema, porque hoje vemos que alguns padrões estéticos são muito diferentes para os homens. O que pode ser o ideal de magreza para a mulher, pode ser uma quantidade muscular para o homem (por exemplo)”, diz ela.

Maria Amália lembra que por muito tempo um dos critérios diagnósticos da anorexia foi a amenorreia (parar de menstruar). Segundo ela, contudo, isso já começou a mudar.

Exercício físico merece atenção

No que diz respeito ao estilo de vida, o exercício físico é considerado um dos pilares mais importantes para a manutenção da saúde, já que traz benefícios para o corpo e a mente. No entanto, em pacientes com transtorno alimentar, ele pode indicar que algo está errado.

“O exercício é considerado excessivo quando interfere significativamente em atividades importantes, ocorre em momentos ou ambientes inapropriados ou quando o indivíduo continua a se exercitar apesar de lesões ou outras implicações médicas, resultando em comprometimento da saúde física e psicológica”, descreve a psiquiatra Patrícia Lemos.

“Muitas vezes ele é utilizado como uma estratégia compensatória em pacientes que têm transtornos alimentares”, completa.

Por outro lado, ela aponta que as evidências atuais sugerem que a atividade física pode ser uma ótima aliada no âmbito do tratamento. Mas a especialista alerta que, antes de começar a prática, é preciso fazer uma avaliação do estado de saúde do paciente. Se ele for liberado para se exercitar, isso deve acontecer de forma supervisionada.

“Uma revisão sistemática apontou que o exercício reduz a gravidade de sintomas depressivos e ansiosos, o que pode reduzir a frequência dos episódios de compulsão alimentar. Teria, então, uma ação direta no sistema de recompensa, auxiliando na regulação do humor.” A meta-análise que analisou o impacto de exercício físico como aliado terapêutico em pacientes com transtorno da compulsão alimentar foi publicada no Journal of Nutrition Education and Behavior, em 2023.

“A restrição completa do exercício não é necessária ou apropriada em muitos casos, e pode até fazer mais mal do que bem”, concluiu ela.

Um paciente ‘desafiador’ em meio a falhas na formação médica

Segundo Mireille Almeida, não dá para negar que, nos últimos anos, muitos estudos ajudaram a melhorar a identificação desses quadros e ocorreram avanços importantes em relação ao diagnóstico e tratamento. Mas ela comentou que a realidade ainda é complicada: “A prática vai nos mostrando que o dia a dia desses pacientes com transtornos alimentares é muito mais difícil, muito mais desafiador e complexo do que encontramos, às vezes, nesses estudos”.

Ela mostrou estudos, ao investigar melhor essa complexidade, buscando as perspectivas de pacientes, familiares e profissionais de saúde, encontraram “sentimentos como frustração, irritabilidade, resistência ou aversão podem ser identificados nessa equipe cuidadora”. “Isso interfere diretamente no vínculo terapêutico, na relação com esse paciente, consequentemente alterando e comprometendo tanto o próprio tratamento como o prognóstico. Isso é muito grave.”

Outras pesquisas revelam como a formação médica, da graduação à residência, pode estar falhando na educação em relação aos transtornos alimentares, apresentou ela. Um relatório do Parliamentary and Health Service Ombudsman (PHSO), órgão independente do governo do Reino Unido que investiga queixas sobre o NHS — o SUS britânico —, apontou que o treinamento para médicos sobre esses quadros é limitado “a apenas algumas horas”.

“E isso traz uma preocupação adicional. Porque nós (psiquiatras) vamos tratar os pacientes com transtorno alimentar provavelmente. Mas, para a grande maioria deles, o primeiro contato não é com o psiquiatra, é com o clínico geral”, afirmou.

Mesmo entre os psiquiatras, todavia, o conhecimento pode não ser adequado. Ela e outros pesquisadores investigaram a realidade brasileira em estudo publicado na Revista Brasileira de Psiquiatria, da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP).

Foram 259 psiquiatras avaliados via formulário online. Cerca de 15% tiveram algum contato ou treinamento a respeito de transtornos alimentares na própria graduação, e apenas 60% deles tiveram durante a formação em psiquiatria, contou Mireille.

O formulário incluiu perguntas para avaliar os conhecimentos deles sobre os critérios diagnósticos e também sobre os tratamentos recomendados. Apenas 12,74% responderam corretamente todas as questões sobre diagnóstico, e nenhum participante acertou todas as questões de tratamento, mostrou a pesquisa.

Outro entrave é a falta de serviços especializados, sobretudo públicos, alerta Maria Amália. Em setembro deste ano, em audiência pública na Comissão de Assuntos Sociais do Senado, especialistas denunciaram a falta de leitos e profissionais especializados no tratamento de transtornos alimentares no Brasil.

Segundo eles, havia apenas 15 centros públicos no País e uma única enfermaria especializada – para internações, por exemplo —, em toda a América Latina, o Programa de Transtornos Alimentares (Ambulim), localizado no Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP).

“Em epidemiologia, o transtorno da compulsão alimentar é muito prevalente, e ele está associado à obesidade. É preciso ter serviços para isso, ou vou tentar tratar a obesidade com remédio, e não vou tratar a compulsão alimentar?” pontua Maria Amália. Ela conta que, embora menos prevalente, os casos de anorexia podem ser bastante graves. “Às vezes, é preciso internar, e eu não tenho leitos de internação”, completa.

Tratamento

Apesar do cenário complexo, durante o evento as médicas reforçaram que o tratamento é possível e evoluiu bastante nos últimos anos. Contudo, o que faz muita diferença é quão cedo ele vai começar. “O reconhecimento e a intervenção precoces dentro dos transtornos alimentares são fundamentais para a resposta ao tratamento”, afirmou Mireille.

*O repórter viajou a convite da Associação Brasileira de Psiquiatra

ENVIADO ESPECIAL A BRASÍLIA* - Com as maiores taxas de mortalidade entre as doenças psiquiátricas, os transtornos alimentares chegam tarde aos psiquiatras e tendem a ter um diagnóstico tardio, o que pode prejudicar o sucesso do tratamento, alertaram especialistas da área durante o XLI Congresso Brasileiro de Psiquiatria.

“Os pacientes com transtornos alimentares chegam para nós, no consultório, diante de uma complicação secundária, como um quadro de desnutrição, quando eu já preciso interná-los e, aí sim, vou fornecer o tratamento (adequado)”, falou psiquiatra Maria Amália Pedrosa, coordenadora da residência em psiquiatria do Instituto Capixaba de Ensino, Pesquisa e Inovação em Saúde (ICEPi), durante o evento, que ocorreu no final de outubro, em Brasília.

Isso acontece, de acordo com as especialistas, por diversas razões, que incluem o estigmas e conceitos errôneos — como dizer que só afetam mulheres ou que todos envolvem um peso específico para diagnóstico —, a falta de serviços públicos especializados, falhas na formação médica e, sobretudo, uma especificidade desses pacientes. “Eles são egossintônicos”, descreve Maria Amália. Isso significa que há uma dificuldade em reconhecer que o próprio comportamento causa um prejuízo. Por isso, quem costuma levar os pacientes ao consultório são familiares e amigos preocupados.

Transtornos alimentares são mais comuns do que sempre se imaginou, mas tendem a ser reconhecidos tardiamente. Foto: weixx/Adobe Stock

Um estudo publicado na respeitada revista científica The Lancet Psychiatry, em 2021, colocou em xeque o que se pensava sobre os transtornos alimentares, expandindo as estimativas para além da anorexia e da bulimia nervosas.

Nomeada como o “fardo oculto dos transtornos alimentares” (em tradução livre), a pesquisa usou dados do famoso banco de dados Global Burden of Disease (GDB), de 2019, e de outras pesquisas. Naquele momento, o GDB considerava para suas estimativas apenas a anorexia e a bulimia, com uma estimativa de 13,6 milhões de casos globalmente.

A partir dos dados do GDB e de outros estudos epidemiológicos, publicados entre 1998 e 2019, os autores estimaram outros 41,9 milhões casos de transtorno da compulsão alimentar periódica e transtorno alimentar não especificado (OSFED, na sigla em inglês, no qual há perturbação no padrão alimentar, sofrimento, mas o paciente não responde a critérios diagnósticos dos outros transtornos). Totalizando, então, 55,5 milhões de pessoas com transtornos alimentares globalmente em 2019.

Com isso, a prevalência desses transtornos passou de 0,2% da população mundial para 0,7%, aproximando-se da estimativa dos transtornos por uso de substâncias (drogas), e superando as de transtorno bipolar, do espectro autista e de conduta.

Os transtornos

A psiquiatra Mireille Almeida, professora da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo, listou, durante o Congresso, os quatro transtornos mais vistos no cotidiano do consultório. São eles:

  • Anorexia nervosa: nela, há uma severa restrição alimentar, com uma preocupação extrema com a forma do corpo. O paciente está abaixo do peso normal (o peso é um critério diagnóstico somente para a anorexia).
  • Bulimia nervosa: padrão alimentar irregular. O comportamento pode incluir pular refeições assim como passar por restrições alimentares. Há uma supervalorização da imagem corporal e ações purgativas compensatórias (como induzir o próprio vômito).
  • Transtorno da compulsão alimentar periódica: segundo a American Psychiatric Association (APA), o paciente apresenta episódios de compulsão alimentar nos quais consome grandes quantidades de comida em um breve período, com uma sensação de perda de controle e angústia, mas não recorre a comportamentos compensatórios.
  • Transtorno alimentar restritivo evitativo: são os pacientes com dificuldade de atender às necessidades nutricionais e com uma alimentação extremamente seletiva, de acordo com a APA.

Quais são os sinais?

É preciso que amigos e familiares estejam atentos, porque esses transtornos são mais prevalentes do que sempre se imaginou. Durante o evento, as especialistas indicaram alguns comportamentos que podem indicar que algo não vai bem. São eles:

  • Mudança no padrão da alimentação, tanto os hábitos compulsivos como restritivos;
  • Preocupação constante com o peso e com a alimentação;
  • Alterações extremas no peso, sejam ganhos ou perdas;
  • Isolar-se para se alimentar.

Maria Amália destacou alguns grupos que merecem mais atenção — o que não significa que pessoas fora deles não possam ter transtornos alimentares. São eles: como adolescentes, pessoas com diabetes, mulheres com ovários policísticos e indivíduos com queixas gastrointestinais. Algumas profissões também são afetadas desproporcionalmente, a exemplo de bailarinos, atletas e modelos.

Homens também podem ter transtornos alimentares

Um dos mitos que rondam os transtornos alimentares é de que não afetam os homens. No Congresso, porém, as médicas destacaram que isso não é verdade.

“Para a anorexia, realmente a prevalência é maior em mulheres. Mas, quando observamos o transtorno da compulsão alimentar e o transtorno alimentar não especificado, está quase de um para um”, comentou Maria Amália.

Esse estigma tem raízes na maneira como o assunto foi abordado e pesquisado durante muitos anos. “Muito da literatura de transtorno alimentar foi estudado em padrão corporal feminino. Isso é um grande problema, porque hoje vemos que alguns padrões estéticos são muito diferentes para os homens. O que pode ser o ideal de magreza para a mulher, pode ser uma quantidade muscular para o homem (por exemplo)”, diz ela.

Maria Amália lembra que por muito tempo um dos critérios diagnósticos da anorexia foi a amenorreia (parar de menstruar). Segundo ela, contudo, isso já começou a mudar.

Exercício físico merece atenção

No que diz respeito ao estilo de vida, o exercício físico é considerado um dos pilares mais importantes para a manutenção da saúde, já que traz benefícios para o corpo e a mente. No entanto, em pacientes com transtorno alimentar, ele pode indicar que algo está errado.

“O exercício é considerado excessivo quando interfere significativamente em atividades importantes, ocorre em momentos ou ambientes inapropriados ou quando o indivíduo continua a se exercitar apesar de lesões ou outras implicações médicas, resultando em comprometimento da saúde física e psicológica”, descreve a psiquiatra Patrícia Lemos.

“Muitas vezes ele é utilizado como uma estratégia compensatória em pacientes que têm transtornos alimentares”, completa.

Por outro lado, ela aponta que as evidências atuais sugerem que a atividade física pode ser uma ótima aliada no âmbito do tratamento. Mas a especialista alerta que, antes de começar a prática, é preciso fazer uma avaliação do estado de saúde do paciente. Se ele for liberado para se exercitar, isso deve acontecer de forma supervisionada.

“Uma revisão sistemática apontou que o exercício reduz a gravidade de sintomas depressivos e ansiosos, o que pode reduzir a frequência dos episódios de compulsão alimentar. Teria, então, uma ação direta no sistema de recompensa, auxiliando na regulação do humor.” A meta-análise que analisou o impacto de exercício físico como aliado terapêutico em pacientes com transtorno da compulsão alimentar foi publicada no Journal of Nutrition Education and Behavior, em 2023.

“A restrição completa do exercício não é necessária ou apropriada em muitos casos, e pode até fazer mais mal do que bem”, concluiu ela.

Um paciente ‘desafiador’ em meio a falhas na formação médica

Segundo Mireille Almeida, não dá para negar que, nos últimos anos, muitos estudos ajudaram a melhorar a identificação desses quadros e ocorreram avanços importantes em relação ao diagnóstico e tratamento. Mas ela comentou que a realidade ainda é complicada: “A prática vai nos mostrando que o dia a dia desses pacientes com transtornos alimentares é muito mais difícil, muito mais desafiador e complexo do que encontramos, às vezes, nesses estudos”.

Ela mostrou estudos, ao investigar melhor essa complexidade, buscando as perspectivas de pacientes, familiares e profissionais de saúde, encontraram “sentimentos como frustração, irritabilidade, resistência ou aversão podem ser identificados nessa equipe cuidadora”. “Isso interfere diretamente no vínculo terapêutico, na relação com esse paciente, consequentemente alterando e comprometendo tanto o próprio tratamento como o prognóstico. Isso é muito grave.”

Outras pesquisas revelam como a formação médica, da graduação à residência, pode estar falhando na educação em relação aos transtornos alimentares, apresentou ela. Um relatório do Parliamentary and Health Service Ombudsman (PHSO), órgão independente do governo do Reino Unido que investiga queixas sobre o NHS — o SUS britânico —, apontou que o treinamento para médicos sobre esses quadros é limitado “a apenas algumas horas”.

“E isso traz uma preocupação adicional. Porque nós (psiquiatras) vamos tratar os pacientes com transtorno alimentar provavelmente. Mas, para a grande maioria deles, o primeiro contato não é com o psiquiatra, é com o clínico geral”, afirmou.

Mesmo entre os psiquiatras, todavia, o conhecimento pode não ser adequado. Ela e outros pesquisadores investigaram a realidade brasileira em estudo publicado na Revista Brasileira de Psiquiatria, da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP).

Foram 259 psiquiatras avaliados via formulário online. Cerca de 15% tiveram algum contato ou treinamento a respeito de transtornos alimentares na própria graduação, e apenas 60% deles tiveram durante a formação em psiquiatria, contou Mireille.

O formulário incluiu perguntas para avaliar os conhecimentos deles sobre os critérios diagnósticos e também sobre os tratamentos recomendados. Apenas 12,74% responderam corretamente todas as questões sobre diagnóstico, e nenhum participante acertou todas as questões de tratamento, mostrou a pesquisa.

Outro entrave é a falta de serviços especializados, sobretudo públicos, alerta Maria Amália. Em setembro deste ano, em audiência pública na Comissão de Assuntos Sociais do Senado, especialistas denunciaram a falta de leitos e profissionais especializados no tratamento de transtornos alimentares no Brasil.

Segundo eles, havia apenas 15 centros públicos no País e uma única enfermaria especializada – para internações, por exemplo —, em toda a América Latina, o Programa de Transtornos Alimentares (Ambulim), localizado no Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP).

“Em epidemiologia, o transtorno da compulsão alimentar é muito prevalente, e ele está associado à obesidade. É preciso ter serviços para isso, ou vou tentar tratar a obesidade com remédio, e não vou tratar a compulsão alimentar?” pontua Maria Amália. Ela conta que, embora menos prevalente, os casos de anorexia podem ser bastante graves. “Às vezes, é preciso internar, e eu não tenho leitos de internação”, completa.

Tratamento

Apesar do cenário complexo, durante o evento as médicas reforçaram que o tratamento é possível e evoluiu bastante nos últimos anos. Contudo, o que faz muita diferença é quão cedo ele vai começar. “O reconhecimento e a intervenção precoces dentro dos transtornos alimentares são fundamentais para a resposta ao tratamento”, afirmou Mireille.

*O repórter viajou a convite da Associação Brasileira de Psiquiatra

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