Ultraprocessado não é alimento e deveria ter imposto maior, defende brasileiro que criou o termo


Considerado um dos cientistas mais influentes do mundo, o epidemiologista Carlos Augusto Monteiro alerta que estamos em um cenário de transição, no qual os ultraprocessados ocupam um espaço cada vez maior na mesa dos brasileiros

Por Ocimara Balmant
Atualização:
Foto: Tiago Queiroz/Estadão
Entrevista comCarlos Augusto MonteiroEpidemiologista da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP)

Há cinco anos, o médico epidemiologista Carlos Augusto Monteiro, da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP) figura na lista dos pesquisadores mais influentes do mundo. No ano passado, foi o brasileiro com os artigos científicos mais citados em revistas e estudos científicos internacionais.

A fama é oriunda da NOVA, a classificação proposta por Monteiro que revolucionou a forma como os alimentos são categorizados. “Começamos a identificar que a origem das doenças ligadas à alimentação estavam num grupo de produtos sobre os quais a indústria têm um lucro muito maior, na medida que são feitos com ingredientes de baixo custo e grande durabilidade”.

Nascia, em 2009, o conceito de ultraprocessado. Uma palavra enorme, mas que Monteiro define de forma simples: ultraprocessado é um produto feito com ingredientes que não encontramos na cozinha doméstica, como aditivos para substituir a cor, dar aroma e conferir determinada textura a um alimento.

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A classificação também mudou a forma como se enxerga a relação do consumidor com a comida: se antes a pessoa física era vista como a única responsável pelas escolhas alimentares, agora os CNPJs precisam assumir a parte que lhes cabe nas mazelas resultantes da alimentação inadequada.

Confira a entrevista completa.

Consumo de ultraprocessados no Brasil ainda é menor do que em países como EUA e Inglaterra, mas cenário é considerado preocupante. Foto: _KUBE_/Adobe Stock
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Como a NOVA mudou na prática a relação entre indústria e qualidade da alimentação?

O paradigma anterior tinha o foco em nutrientes – basicamente em gordura saturada, açúcar, sal e fibra – e de alguma maneira culpava o próprio consumidor pelo fato de não ter uma alimentação muito saudável.

Era um pouco assim: as pessoas preferem alimentos com muito sal, pouca fibra e muito açúcar e, por isso, acabam adoecendo. Quando a gente começa a fazer uma classificação dos alimentos não só pelo teor de nutrientes, mas também pela forma de processamento, começa a colocar a responsabilidade em quem processa esses alimentos. O foco sai do consumidor e vai para a indústria, que usa estratégias de marketing muito sofisticadas para que as pessoas troquem a alimentação tradicional pelo consumo de ultraprocessados.

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Que indústria é essa?

São as grandes indústrias transnacionais dentro do sistema alimentar. Porque um fator importante é que o ultraprocessamento requer maquinários, tecnologias, controle de qualidade e mesmo ingredientes – como aditivos – que são de acesso restrito.

E uma coisa mais sutil é que você consegue fazer um produto único, um produto de marca. Tanto que é comum receitas com segredos industriais.

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E o nome é “produto” porque, pela composição, o ultraprocessado nem deve ser considerado um alimento, certo?

Sim. Primeiro, que você tem muitos ingredientes: dez, quinze, vinte, até trinta. Depois, você manipula misturas de sal, gordura, açúcar, aromatizantes, texturizantes e consegue criar produtos de baixo custo para a indústria, mas que são extremamente palatáveis. Essas indústrias têm laboratórios de análise sensorial que permitem chegar a receitas com combinação de gordura e açúcar que maximizam o prazer e que se tornam mesmo viciantes para algumas pessoas.

O cenário no Brasil é preocupante, mas ainda consumimos menos ultraprocessados do que países como os Estados Unidos e a Inglaterra.

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A vantagem, nesse caso, seria o fato de o preço dos ultraprocessados ainda não estar tão baixo por aqui?

O preço é uma questão, mas a grande diferença é que, no Brasil, o consumo de ultraprocessados não chegou às principais refeições. Consumimos refrigerantes e sorvetes, mas, no almoço e jantar, a cultura alimentar ainda é muito forte. A maior parte dos brasileiros ainda come o PF (prato feito), a comida por quilo.

O alerta é que estamos num processo de transição, até porque estudos mostram que o preço relativo dos ultraprocessados aumentou muito menos do que o de alimentos in natura ou minimamente processados. A tendência é ruim.

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Nesse aspecto, podemos considerar que há um público mais suscetível, como as crianças e os jovens, por exemplo?

O que percebemos no recorte por idade é que, quanto mais velho, menor o consumo de ultraprocessados. Quanto mais jovem, maior. Os adolescentes são o grupo com o maior consumo.

Na semana passada, saiu um estudo na Inglaterra de uma coorte em que olharam as crianças com dois e, depois, com sete anos. O que se viu foi um aumento no consumo de dois para sete e também uma correlação muito grande: a criança de dois que comia muito ultraprocessado é a criança de sete com consumo mais elevado.

Isso mostra que os hábitos e as preferências são criados quando a criança ainda é pequena. Daí o esforço da indústria de ultraprocessados na propaganda ligada a crianças e todo o investimento em textura, cor e aroma. Tudo isso vai criando o que a gente chama de familiaridade, e que vai influenciar os hábitos para toda a vida.

E quais as consequências mais diretas do consumo de ultraprocessados?

Há dois grandes problemas: no ultraprocessado, você não tem o alimento inteiro, e é importante você comer junto a fibra, os antioxidantes e a proteína, por exemplo. Quando você separa essas coisas, o nutriente não funciona da mesma maneira.

A outra questão é que, por não ter o alimento integral, o ultraprocessado tem muitos aditivos para substituir a cor, o aroma e a textura. Então, você não tem o alimento integral e tem uma série de substâncias químicas estranhas ao alimento.

Agora, imagina a criança que começa essa trajetória logo cedo, a quantidade de aditivos que vai consumir ao longo da vida. É uma coisa cumulativa. Talvez o consumo seria inócuo se fosse numa quantidade pequena, mas imagina o volume…

E daí podemos falar do que se chama “princípio da precaução”?

Isso. Como a relação entre saúde e alimentação é complexa, a gente nunca vai conhecer tudo. Talvez a maioria dos aditivos não seja problemática, mas certamente alguns são. Então, na medida em que você aumenta a exposição do seu organismo a algo que ele não está programado (para receber), aumenta a probabilidade de ter algum tipo de problema. O princípio da precaução é esse: você tem a possibilidade de não consumir aditivos e ficar menos exposto a problemas.

E como barrar esse consumo?

Os produtos estão ficando cada vez mais baratos, com mais propaganda, e cada vez mais palatáveis e irresistíveis. Então, se tem uma série de forças caminhando no sentido de empurrar as pessoas para o aumento do consumo de ultraprocessados, a gente precisa criar uma força oposta em muitas frentes para desnormalizar esse consumo.

Um ponto é a reforma tributária: todos os ultraprocessados deveriam ter um imposto maior e, por outro lado, isentar ao máximo os alimentos naturais e minimamente processados.

A outra grande questão é a publicidade. Faz sentido que haja propaganda infantil com o uso de heróis para aquele produto já rotulado como alto em açúcar, alto em sódio e em gordura saturada?

E, por fim, a rotulagem de advertência precisa ser intensificada. A Anvisa está avaliando a possibilidade de acrescentar na rotulagem de advertência os corantes, aromatizantes e adoçantes artificiais. E daí, penso eu, uma estratégia seria proibir a publicidade de todos os produtos com essa rotulagem de advertência.

E ninguém iria a falência por isso…

Exato. Porque não é que a indústria queira fazer um alimento para as pessoas ficarem doentes. Obviamente que não. A indústria teria interesse que as pessoas ficassem saudáveis. O problema é que o lucro é uma coisa tão poderosa que a indústria tenta normalizar uma coisa que não é normal.

Durante milhões de anos, tivemos uma alimentação sem aditivos, por que agora a gente precisa? A gente não precisa. Quem precisa é a indústria. Porque o aditivo faz parte do modelo de negócios, faz com que o produto dure anos, e isso é lucro. Ela pode estocar, transportar por longas distâncias, usar ingredientes de baixo custo. O objetivo é mostrar que o consumo é inevitável. Só que não. É absolutamente possível você ter uma alimentação sem esses aditivos todos.

O que é uma alimentação saudável?

Há várias maneiras de ter uma alimentação saudável, o importante é seguir alguns princípios. Um deles é você consumir o alimento inteiro, o mais próximo possível de como está na natureza. O outro princípio é você diversificar, consumir alimentos de várias ‘famílias’. Decidir qual é a verdura ou a fruta é uma questão de cultura e de preferência. O que não se pode é ter uma dieta monótona… ou cheia de aditivos.

Há cinco anos, o médico epidemiologista Carlos Augusto Monteiro, da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP) figura na lista dos pesquisadores mais influentes do mundo. No ano passado, foi o brasileiro com os artigos científicos mais citados em revistas e estudos científicos internacionais.

A fama é oriunda da NOVA, a classificação proposta por Monteiro que revolucionou a forma como os alimentos são categorizados. “Começamos a identificar que a origem das doenças ligadas à alimentação estavam num grupo de produtos sobre os quais a indústria têm um lucro muito maior, na medida que são feitos com ingredientes de baixo custo e grande durabilidade”.

Nascia, em 2009, o conceito de ultraprocessado. Uma palavra enorme, mas que Monteiro define de forma simples: ultraprocessado é um produto feito com ingredientes que não encontramos na cozinha doméstica, como aditivos para substituir a cor, dar aroma e conferir determinada textura a um alimento.

A classificação também mudou a forma como se enxerga a relação do consumidor com a comida: se antes a pessoa física era vista como a única responsável pelas escolhas alimentares, agora os CNPJs precisam assumir a parte que lhes cabe nas mazelas resultantes da alimentação inadequada.

Confira a entrevista completa.

Consumo de ultraprocessados no Brasil ainda é menor do que em países como EUA e Inglaterra, mas cenário é considerado preocupante. Foto: _KUBE_/Adobe Stock

Como a NOVA mudou na prática a relação entre indústria e qualidade da alimentação?

O paradigma anterior tinha o foco em nutrientes – basicamente em gordura saturada, açúcar, sal e fibra – e de alguma maneira culpava o próprio consumidor pelo fato de não ter uma alimentação muito saudável.

Era um pouco assim: as pessoas preferem alimentos com muito sal, pouca fibra e muito açúcar e, por isso, acabam adoecendo. Quando a gente começa a fazer uma classificação dos alimentos não só pelo teor de nutrientes, mas também pela forma de processamento, começa a colocar a responsabilidade em quem processa esses alimentos. O foco sai do consumidor e vai para a indústria, que usa estratégias de marketing muito sofisticadas para que as pessoas troquem a alimentação tradicional pelo consumo de ultraprocessados.

Que indústria é essa?

São as grandes indústrias transnacionais dentro do sistema alimentar. Porque um fator importante é que o ultraprocessamento requer maquinários, tecnologias, controle de qualidade e mesmo ingredientes – como aditivos – que são de acesso restrito.

E uma coisa mais sutil é que você consegue fazer um produto único, um produto de marca. Tanto que é comum receitas com segredos industriais.

E o nome é “produto” porque, pela composição, o ultraprocessado nem deve ser considerado um alimento, certo?

Sim. Primeiro, que você tem muitos ingredientes: dez, quinze, vinte, até trinta. Depois, você manipula misturas de sal, gordura, açúcar, aromatizantes, texturizantes e consegue criar produtos de baixo custo para a indústria, mas que são extremamente palatáveis. Essas indústrias têm laboratórios de análise sensorial que permitem chegar a receitas com combinação de gordura e açúcar que maximizam o prazer e que se tornam mesmo viciantes para algumas pessoas.

O cenário no Brasil é preocupante, mas ainda consumimos menos ultraprocessados do que países como os Estados Unidos e a Inglaterra.

A vantagem, nesse caso, seria o fato de o preço dos ultraprocessados ainda não estar tão baixo por aqui?

O preço é uma questão, mas a grande diferença é que, no Brasil, o consumo de ultraprocessados não chegou às principais refeições. Consumimos refrigerantes e sorvetes, mas, no almoço e jantar, a cultura alimentar ainda é muito forte. A maior parte dos brasileiros ainda come o PF (prato feito), a comida por quilo.

O alerta é que estamos num processo de transição, até porque estudos mostram que o preço relativo dos ultraprocessados aumentou muito menos do que o de alimentos in natura ou minimamente processados. A tendência é ruim.

Nesse aspecto, podemos considerar que há um público mais suscetível, como as crianças e os jovens, por exemplo?

O que percebemos no recorte por idade é que, quanto mais velho, menor o consumo de ultraprocessados. Quanto mais jovem, maior. Os adolescentes são o grupo com o maior consumo.

Na semana passada, saiu um estudo na Inglaterra de uma coorte em que olharam as crianças com dois e, depois, com sete anos. O que se viu foi um aumento no consumo de dois para sete e também uma correlação muito grande: a criança de dois que comia muito ultraprocessado é a criança de sete com consumo mais elevado.

Isso mostra que os hábitos e as preferências são criados quando a criança ainda é pequena. Daí o esforço da indústria de ultraprocessados na propaganda ligada a crianças e todo o investimento em textura, cor e aroma. Tudo isso vai criando o que a gente chama de familiaridade, e que vai influenciar os hábitos para toda a vida.

E quais as consequências mais diretas do consumo de ultraprocessados?

Há dois grandes problemas: no ultraprocessado, você não tem o alimento inteiro, e é importante você comer junto a fibra, os antioxidantes e a proteína, por exemplo. Quando você separa essas coisas, o nutriente não funciona da mesma maneira.

A outra questão é que, por não ter o alimento integral, o ultraprocessado tem muitos aditivos para substituir a cor, o aroma e a textura. Então, você não tem o alimento integral e tem uma série de substâncias químicas estranhas ao alimento.

Agora, imagina a criança que começa essa trajetória logo cedo, a quantidade de aditivos que vai consumir ao longo da vida. É uma coisa cumulativa. Talvez o consumo seria inócuo se fosse numa quantidade pequena, mas imagina o volume…

E daí podemos falar do que se chama “princípio da precaução”?

Isso. Como a relação entre saúde e alimentação é complexa, a gente nunca vai conhecer tudo. Talvez a maioria dos aditivos não seja problemática, mas certamente alguns são. Então, na medida em que você aumenta a exposição do seu organismo a algo que ele não está programado (para receber), aumenta a probabilidade de ter algum tipo de problema. O princípio da precaução é esse: você tem a possibilidade de não consumir aditivos e ficar menos exposto a problemas.

E como barrar esse consumo?

Os produtos estão ficando cada vez mais baratos, com mais propaganda, e cada vez mais palatáveis e irresistíveis. Então, se tem uma série de forças caminhando no sentido de empurrar as pessoas para o aumento do consumo de ultraprocessados, a gente precisa criar uma força oposta em muitas frentes para desnormalizar esse consumo.

Um ponto é a reforma tributária: todos os ultraprocessados deveriam ter um imposto maior e, por outro lado, isentar ao máximo os alimentos naturais e minimamente processados.

A outra grande questão é a publicidade. Faz sentido que haja propaganda infantil com o uso de heróis para aquele produto já rotulado como alto em açúcar, alto em sódio e em gordura saturada?

E, por fim, a rotulagem de advertência precisa ser intensificada. A Anvisa está avaliando a possibilidade de acrescentar na rotulagem de advertência os corantes, aromatizantes e adoçantes artificiais. E daí, penso eu, uma estratégia seria proibir a publicidade de todos os produtos com essa rotulagem de advertência.

E ninguém iria a falência por isso…

Exato. Porque não é que a indústria queira fazer um alimento para as pessoas ficarem doentes. Obviamente que não. A indústria teria interesse que as pessoas ficassem saudáveis. O problema é que o lucro é uma coisa tão poderosa que a indústria tenta normalizar uma coisa que não é normal.

Durante milhões de anos, tivemos uma alimentação sem aditivos, por que agora a gente precisa? A gente não precisa. Quem precisa é a indústria. Porque o aditivo faz parte do modelo de negócios, faz com que o produto dure anos, e isso é lucro. Ela pode estocar, transportar por longas distâncias, usar ingredientes de baixo custo. O objetivo é mostrar que o consumo é inevitável. Só que não. É absolutamente possível você ter uma alimentação sem esses aditivos todos.

O que é uma alimentação saudável?

Há várias maneiras de ter uma alimentação saudável, o importante é seguir alguns princípios. Um deles é você consumir o alimento inteiro, o mais próximo possível de como está na natureza. O outro princípio é você diversificar, consumir alimentos de várias ‘famílias’. Decidir qual é a verdura ou a fruta é uma questão de cultura e de preferência. O que não se pode é ter uma dieta monótona… ou cheia de aditivos.

Há cinco anos, o médico epidemiologista Carlos Augusto Monteiro, da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP) figura na lista dos pesquisadores mais influentes do mundo. No ano passado, foi o brasileiro com os artigos científicos mais citados em revistas e estudos científicos internacionais.

A fama é oriunda da NOVA, a classificação proposta por Monteiro que revolucionou a forma como os alimentos são categorizados. “Começamos a identificar que a origem das doenças ligadas à alimentação estavam num grupo de produtos sobre os quais a indústria têm um lucro muito maior, na medida que são feitos com ingredientes de baixo custo e grande durabilidade”.

Nascia, em 2009, o conceito de ultraprocessado. Uma palavra enorme, mas que Monteiro define de forma simples: ultraprocessado é um produto feito com ingredientes que não encontramos na cozinha doméstica, como aditivos para substituir a cor, dar aroma e conferir determinada textura a um alimento.

A classificação também mudou a forma como se enxerga a relação do consumidor com a comida: se antes a pessoa física era vista como a única responsável pelas escolhas alimentares, agora os CNPJs precisam assumir a parte que lhes cabe nas mazelas resultantes da alimentação inadequada.

Confira a entrevista completa.

Consumo de ultraprocessados no Brasil ainda é menor do que em países como EUA e Inglaterra, mas cenário é considerado preocupante. Foto: _KUBE_/Adobe Stock

Como a NOVA mudou na prática a relação entre indústria e qualidade da alimentação?

O paradigma anterior tinha o foco em nutrientes – basicamente em gordura saturada, açúcar, sal e fibra – e de alguma maneira culpava o próprio consumidor pelo fato de não ter uma alimentação muito saudável.

Era um pouco assim: as pessoas preferem alimentos com muito sal, pouca fibra e muito açúcar e, por isso, acabam adoecendo. Quando a gente começa a fazer uma classificação dos alimentos não só pelo teor de nutrientes, mas também pela forma de processamento, começa a colocar a responsabilidade em quem processa esses alimentos. O foco sai do consumidor e vai para a indústria, que usa estratégias de marketing muito sofisticadas para que as pessoas troquem a alimentação tradicional pelo consumo de ultraprocessados.

Que indústria é essa?

São as grandes indústrias transnacionais dentro do sistema alimentar. Porque um fator importante é que o ultraprocessamento requer maquinários, tecnologias, controle de qualidade e mesmo ingredientes – como aditivos – que são de acesso restrito.

E uma coisa mais sutil é que você consegue fazer um produto único, um produto de marca. Tanto que é comum receitas com segredos industriais.

E o nome é “produto” porque, pela composição, o ultraprocessado nem deve ser considerado um alimento, certo?

Sim. Primeiro, que você tem muitos ingredientes: dez, quinze, vinte, até trinta. Depois, você manipula misturas de sal, gordura, açúcar, aromatizantes, texturizantes e consegue criar produtos de baixo custo para a indústria, mas que são extremamente palatáveis. Essas indústrias têm laboratórios de análise sensorial que permitem chegar a receitas com combinação de gordura e açúcar que maximizam o prazer e que se tornam mesmo viciantes para algumas pessoas.

O cenário no Brasil é preocupante, mas ainda consumimos menos ultraprocessados do que países como os Estados Unidos e a Inglaterra.

A vantagem, nesse caso, seria o fato de o preço dos ultraprocessados ainda não estar tão baixo por aqui?

O preço é uma questão, mas a grande diferença é que, no Brasil, o consumo de ultraprocessados não chegou às principais refeições. Consumimos refrigerantes e sorvetes, mas, no almoço e jantar, a cultura alimentar ainda é muito forte. A maior parte dos brasileiros ainda come o PF (prato feito), a comida por quilo.

O alerta é que estamos num processo de transição, até porque estudos mostram que o preço relativo dos ultraprocessados aumentou muito menos do que o de alimentos in natura ou minimamente processados. A tendência é ruim.

Nesse aspecto, podemos considerar que há um público mais suscetível, como as crianças e os jovens, por exemplo?

O que percebemos no recorte por idade é que, quanto mais velho, menor o consumo de ultraprocessados. Quanto mais jovem, maior. Os adolescentes são o grupo com o maior consumo.

Na semana passada, saiu um estudo na Inglaterra de uma coorte em que olharam as crianças com dois e, depois, com sete anos. O que se viu foi um aumento no consumo de dois para sete e também uma correlação muito grande: a criança de dois que comia muito ultraprocessado é a criança de sete com consumo mais elevado.

Isso mostra que os hábitos e as preferências são criados quando a criança ainda é pequena. Daí o esforço da indústria de ultraprocessados na propaganda ligada a crianças e todo o investimento em textura, cor e aroma. Tudo isso vai criando o que a gente chama de familiaridade, e que vai influenciar os hábitos para toda a vida.

E quais as consequências mais diretas do consumo de ultraprocessados?

Há dois grandes problemas: no ultraprocessado, você não tem o alimento inteiro, e é importante você comer junto a fibra, os antioxidantes e a proteína, por exemplo. Quando você separa essas coisas, o nutriente não funciona da mesma maneira.

A outra questão é que, por não ter o alimento integral, o ultraprocessado tem muitos aditivos para substituir a cor, o aroma e a textura. Então, você não tem o alimento integral e tem uma série de substâncias químicas estranhas ao alimento.

Agora, imagina a criança que começa essa trajetória logo cedo, a quantidade de aditivos que vai consumir ao longo da vida. É uma coisa cumulativa. Talvez o consumo seria inócuo se fosse numa quantidade pequena, mas imagina o volume…

E daí podemos falar do que se chama “princípio da precaução”?

Isso. Como a relação entre saúde e alimentação é complexa, a gente nunca vai conhecer tudo. Talvez a maioria dos aditivos não seja problemática, mas certamente alguns são. Então, na medida em que você aumenta a exposição do seu organismo a algo que ele não está programado (para receber), aumenta a probabilidade de ter algum tipo de problema. O princípio da precaução é esse: você tem a possibilidade de não consumir aditivos e ficar menos exposto a problemas.

E como barrar esse consumo?

Os produtos estão ficando cada vez mais baratos, com mais propaganda, e cada vez mais palatáveis e irresistíveis. Então, se tem uma série de forças caminhando no sentido de empurrar as pessoas para o aumento do consumo de ultraprocessados, a gente precisa criar uma força oposta em muitas frentes para desnormalizar esse consumo.

Um ponto é a reforma tributária: todos os ultraprocessados deveriam ter um imposto maior e, por outro lado, isentar ao máximo os alimentos naturais e minimamente processados.

A outra grande questão é a publicidade. Faz sentido que haja propaganda infantil com o uso de heróis para aquele produto já rotulado como alto em açúcar, alto em sódio e em gordura saturada?

E, por fim, a rotulagem de advertência precisa ser intensificada. A Anvisa está avaliando a possibilidade de acrescentar na rotulagem de advertência os corantes, aromatizantes e adoçantes artificiais. E daí, penso eu, uma estratégia seria proibir a publicidade de todos os produtos com essa rotulagem de advertência.

E ninguém iria a falência por isso…

Exato. Porque não é que a indústria queira fazer um alimento para as pessoas ficarem doentes. Obviamente que não. A indústria teria interesse que as pessoas ficassem saudáveis. O problema é que o lucro é uma coisa tão poderosa que a indústria tenta normalizar uma coisa que não é normal.

Durante milhões de anos, tivemos uma alimentação sem aditivos, por que agora a gente precisa? A gente não precisa. Quem precisa é a indústria. Porque o aditivo faz parte do modelo de negócios, faz com que o produto dure anos, e isso é lucro. Ela pode estocar, transportar por longas distâncias, usar ingredientes de baixo custo. O objetivo é mostrar que o consumo é inevitável. Só que não. É absolutamente possível você ter uma alimentação sem esses aditivos todos.

O que é uma alimentação saudável?

Há várias maneiras de ter uma alimentação saudável, o importante é seguir alguns princípios. Um deles é você consumir o alimento inteiro, o mais próximo possível de como está na natureza. O outro princípio é você diversificar, consumir alimentos de várias ‘famílias’. Decidir qual é a verdura ou a fruta é uma questão de cultura e de preferência. O que não se pode é ter uma dieta monótona… ou cheia de aditivos.

Entrevista por Ocimara Balmant

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