Há cerca de um ano, as imagens de um exame de PET-CT de um paciente com câncer rodaram o Brasil em jornais e redes sociais com o que parecia ser um milagre: em um mês, o doente tinha o corpo quase todo tomado pelos focos de um linfoma não-Hodgkin agressivo, representados por manchas pretas; no mês seguinte, o resultado de um novo exame mostrava uma imagem “limpa”, sem sinal da doença.
Esse paciente era o publicitário, escritor e palestrante Paulo Peregrino, de 62 anos. Após anos tratando um câncer que sempre voltava meses depois, a equipe médica já não via mais saída e se preparava para informar o paciente que ele entraria em cuidados paliativos.
Peregrino procurou, então, um grupo de pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP), do Instituto Butantan e do Hemocentro de Ribeirão Preto que estudavam um tratamento para linfoma avançado com as chamadas células CAR-T.
- Por meio da técnica, linfócitos (células de defesa) do próprio paciente são coletados, modificados geneticamente e, em seguida, reinseridos no corpo do doente para atuarem no reconhecimento e combate do tumor.
- Até agora, o tratamento é indicado somente para alguns tipos de cânceres hematológicos (do sangue) - leucemias, linfomas e mielomas múltiplos.
Após a infusão das células geneticamente modificadas em março de 2023, Peregrino teve remissão completa do tumor já em abril. Parecia mesmo um milagre, mas era ciência.
- A terapia com células CAR-T é uma das principais promessas contra o câncer porque utiliza as próprias células de defesa do paciente e as reprograma para atacar um alvo específico – as células tumorais –, tornando o tratamento personalizado e potencialmente mais efetivo.
Mas, mesmo após a resposta surpreendente ao tratamento, os médicos pediam cautela: por tratar-se de um tratamento relativamente novo e pelo fato de muitos tumores regredirem logo após o tratamento e voltarem meses depois, era preciso esperar para saber se a infusão realmente tinha livrado o publicitário da doença.
Um ano depois, o Estadão voltou a falar com Peregrino e com outros pacientes submetidos ao tratamento inovador.
O publicitário segue fazendo seus exames de monitoramento e, até agora, felizmente, a remissão se mantém. “Agora, todo dia 24 de março (data que recebeu as células CAR-T) é meu segundo aniversário, não tem como não lembrar e celebrar todos os anos”, conta.
A história é parecida à do empresário Luiz Hipólito da Rocha, de 75 anos. Diagnosticado com linfoma em 2020, ele passou por vários tratamentos. Ficava bem por alguns meses e logo a doença voltava. Em 2022, uma segunda recidiva apareceu no cérebro e, de acordo com os médicos, não havia mais opções terapêuticas efetivas.
Na mesma época, porém, o primeiro produto comercial de CAR-T havia acabado de chegar ao mercado brasileiro e Luiz decidiu tentar esse caminho. Em fevereiro de 2023, recebeu a infusão de células no Hospital Nove de Julho, da rede Dasa, e, um ano depois, os exames mostram que a doença continua no passado.
“Tudo que era feito não estava mais surtindo efeito, então foi um grande alívio quando o CAR-T funcionou e quando a gente fez os exames em junho e em dezembro e continua a remissão completa”, conta o empresário Rodrigo Seabra da Rocha, de 37 anos, filho de Luiz.
“Sem esse tratamento, não teria nenhum outro que manteria ele bem e sem linfoma por tanto tempo. A expectativa de vida era muito curta, então o CAR-T devolveu a vida a alguém que não tinha opção”, diz Celso Arrais, diretor de hematologia da Dasa e coordenador de hematologia do Nove de Julho.
O idoso foi um dos primeiros pacientes do País a receber o primeiro produto comercial de CAR-T aprovado no Brasil – ou seja, ser tratado fora de uma pesquisa clínica. A terapia foi aprovada no início de 2022 e chegou ao mercado no final do mesmo ano.
- Hoje, já são quatro produtos registrados pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) no País, dois deles já disponíveis no mercado e outros em processo de precificação.
“Nós demos muita sorte porque foi tudo na hora certa. O produto tinha acabado de chegar ao mercado. Se tivesse demorado um pouco mais, não sei o que teria acontecido”, afirma Rodrigo.
- Como o valor do tratamento é de cerca de R$ 2 milhões a R$ 3 milhões por paciente, Luiz só conseguiu acesso à terapia após mover uma ação contra seu plano de saúde solicitando o custeio.
A servidora pública Ana Cleire Marques Diógenes, de 62 anos, foi outra paciente com linfoma que passou pelo tratamento inovador em fevereiro do ano passado e segue sem sinais da doença.
“Fiz os exames agora em março e continua tudo bem. Todos os dias agradeço a Deus por ter me colocado nessas mãos tão boas, com médicos tão maravilhosos, porque meu caso não tinha mais o que fazer, eu estava indo para cuidados paliativos”, diz ela.
No caso dela, o produto foi desenvolvido pelo Hospital Israelita Albert Einstein e ainda está em estudos, como o da USP.
A esperança dos cientistas é que o desenvolvimento de versões dessas terapias por instituições nacionais barateie o tratamento no futuro e o torne mais acessível. Investimentos do governo federal foram anunciados nesta semana para impulsionar as pesquisas em território brasileiro (leia mais abaixo).
Os pacientes celebram não só a remissão da doença, mas também a possibilidade de levarem uma vida normal, sem os efeitos colaterais de quimioterapias ou outras complicações das recidivas.
“No último ano, foi a primeira vez desde 2018 que eu estou sentindo que não tenho o risco iminente de ir para o hospital, seja para infundir plaquetas, para tomar morfina para uma dor insuportável ou por causa de uma febre”, diz Peregrino.
O filho de Luiz também comenta o impacto da remissão na qualidade de vida do pai. “Desde o dia 20 de fevereiro do ano passado, ele não tomou mais nenhuma quimioterapia, isso é muito bom para o psicológico dele e permite que ele fique mais com a família também”, diz Rodrigo.
Nem todos os pacientes tratados tiveram boa resposta
Embora tecnicamente os médicos não possam dizer ainda que Paulo, Luiz e Ana Cleire estejam curados, ter exames sem sinais de câncer por um ano é um ótimo sinal.
A cura só é declarada quando o paciente passa cinco anos sem tumores detectados, mas os primeiros exames após a remissão são considerados os mais importantes. “A grande maioria das recidivas acontece no primeiro ano, então, se os pacientes permanecem em remissão completa nesse período, há maiores chances de sucesso do tratamento”, diz Arrais.
Nem todos os pacientes tratados com a terapia CAR-T no Brasil, no entanto, tiveram os mesmos bons resultados dos três pacientes entrevistados.
Segundo médicos, há também casos em que o doente não teve resposta à infusão das células e situações em que até houve uma remissão inicial, mas com o retorno da doença meses depois. Em alguns desses casos, os pacientes morreram.
“A literatura científica internacional mostra que, em média, de 40% a 50% dos pacientes tratados com CAR-T estão vivos após dois anos do tratamento. Os dados preliminares aqui no Brasil estão indo nessa mesma linha”, diz Vanderson Rocha, professor titular de hematologia e terapia celular da Faculdade de Medicina da USP e diretor do Núcleo de Terapia Avançada (Nutera-SP), centro ligado ao Instituto Butantan que, junto com seu par no interior paulista (Nutera-Ribeirão Preto), desenvolve e estuda uma versão nacional do tratamento (a mesma que foi usada no tratamento de Peregrino).
Para quem acha baixa uma taxa de sucesso em torno dos 50%, vale lembrar que o tratamento com células CAR-T é usado geralmente como última alternativa, em doentes com câncer avançado e sem outras opções terapêuticas – sem a terapia, portanto, todos eles provavelmente morreriam em poucos meses, daí a técnica ser considerada revolucionária.
“Sim, é um tratamento revolucionário porque tem resultados bem interessantes em pacientes com doença avançada. E a tendência é que ele seja usado também em fases mais precoces da doença”, diz o hematologista José Mauro Kutner, coordenador-geral do Centro de Competência em Terapias Avançadas (CCTA Einstein-Embrapii), gerenciado pelo Einstein.
O que os médicos e cientistas tentam agora é descobrir quais são os fatores que aumentam as chances de sucesso do tratamento e quais os perfis de pacientes que mais se beneficiam da técnica.
“Percebemos que pacientes com alta carga tumoral, com doença com uma progressão muito rápida e mais debilitados têm maiores chances de insucesso”, explica Jayr Schmidt Filho, líder do Centro de Referência de Neoplasias Hematológicas do A.C. Camargo Cancer Center.
- São esses pacientes também que têm maior risco de efeitos colaterais graves. Os mais preocupantes relacionados à terapia com células CAR-T são a síndrome de liberação de citocinas (CRS, na sigla em inglês), caracterizada por uma reação exacerbada do sistema imunológico e consequente resposta inflamatória descontrolada, e a síndrome de neurotoxicidade associada a células efetoras imunes (ICANS, também na sigla em inglês), reação que acomete as funções cerebrais.
“Quanto maior a carga tumoral, mais as células CAR-T se expandem e isso pode levar a uma reação exacerbada”, explica Schmidt Filho.
Os especialistas ressaltam, no entanto, que já é possível acompanhar indicadores do paciente para detectar precocemente eventuais eventos adversos e agir rapidamente para evitar que o quadro se agrave.
“Antes, esses eventos eram mais preocupantes, agora já temos melhores formas de manejá-los se o paciente estiver em um centro bem treinado e com bons recursos terapêuticos”, diz Kutner, do Einstein. Por conta desses riscos, o paciente precisa ficar internado algumas semanas após a infusão para monitoramento próximo da equipe médica.
Leia Também:
Demora na liberação da terapia por planos de saúde é entrave
Os médicos dizem que alguns casos de pacientes tratados com CAR-T poderiam ter tido uma resposta melhor se a aplicação tivesse sido mais precoce.
“Por mais inovadora e vanguardista que a terapia seja, ela precisa ser indicada no melhor momento. Se você passa do ponto, pode comprometer o sucesso dela”, diz Schmidt Filho.
Um dos maiores desafios nesse sentido tem sido a demora na liberação, por parte dos convênios médicos, da autorização para o tratamento.
“Os pacientes precisam entrar na Justiça, começa um imbróglio judicial, há uma demora na liberação mesmo em casos de determinação judicial, isso é muito ruim para o tratamento”, diz o especialista do A.C. Camargo.
Soma-se a isso o tempo necessário para a preparação da terapia, dado que o paciente precisa ter as células coletadas, processadas e reprogramadas por meio da manipulação genética (o que costuma levar semanas porque, nos casos dos produtos comerciais, elas são enviadas para laboratórios no exterior) e reinseridas no paciente.
Schmidt Filho conta que, no A.C. Camargo, a mediana de tempo entre a indicação do CAR-T e a efetiva infusão das células é de 101 dias. “A gente está falando de três a quatro meses para um paciente que não se curou com o tratamento convencional e cujo tumor tende a ter um comportamento muito mais agressivo. É um tempo muito longo.”
Uma decisão da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) de setembro do ano passado determinou que esses produtos precisam passar por um processo de avaliação de tecnologias para serem incluídos no rol de coberturas obrigatórias – ao contrário de outros tratamentos oncológicos endovenosos, que entram no rol automaticamente logo após o registro.
Uma liminar obtida nesta semana pelo Sindusfarma, entidade que representa a indústria farmacêutica, derrubou a norma da ANS e, na prática, pode obrigar os convênios a custearem terapias avançadas.
Ministério da Saúde anuncia investimento em pesquisas
Diante da barreira econômica que os pacientes enfrentam para ter acesso ao tratamento, o Ministério da Saúde anunciou nesta semana investimentos em pesquisas das terapias com células CAR-T.
Na segunda-feira, 25, a ministra Nísia Trindade anunciou aporte de R$ 100 milhões para que a USP, o Hemocentro e o Butantan realizem um estudo clínico com 81 pacientes testando o produto de CAR-T desenvolvido pelas instituições brasileiras.
Até agora, a terapia nacional só havia sido aplicada em protocolos de pesquisa de uso compassivo – ou seja, quando o paciente não tem alternativa terapêutica.
Agora, ela terá sua eficácia e segurança testadas de forma mais rigorosa e os dados do estudo podem embasar um pedido de registro do produto à Anvisa futuramente.
Para Vanderson Rocha, da USP e Butantan e um dos líderes do estudo, a expectativa é que, se os resultados bons se confirmarem, o produto desenvolvido nacionalmente esteja disponível no SUS em dois ou três anos.
Na terça-feira, 26, a pasta federal anunciou ainda investimento de R$ 330 milhões em projeto para transferência de tecnologia da organização americana Caring Cross para a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz).
Pelo convênio, a instituição de pesquisa brasileira aprenderá a produzir células CAR-T e vetores virais usados no processamento delas, fazendo com que um eventual produto nacional custe apenas 10% dos produtos hoje no mercado desenvolvidos por farmacêuticas multinacionais.
Outro esforço para alavancar as pesquisas nacionais no tema vem da Empresa Brasileira de Pesquisa e Inovação (Embrapii) e da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), que repassarão recursos ao Einstein para que ele gerencie o Centro de Competência em Terapias Avançadas (CCTA) com o objetivo de acelerar as pesquisas no tema e levar expertise de centros que já estão trabalhando com a terapia para outras instituições no País.
Mais notícias em Saúde
CAR-T pode funcionar para outros tipos de tumores?
Por enquanto, a terapia com células CAR-T só tem evidência robusta de eficácia e aprovação de agências reguladoras para o tratamento dos sangues hematológicos. Há pesquisas sendo feitas para usar a técnica no tratamento de tumores sólidos, mas os resultados, por enquanto, não foram tão animadores.
Para serem eficazes, as células CAR-T precisam reconhecer e atacar antígenos específicos (proteínas) presentes nas células cancerígenas sem afetar as células saudáveis. Enquanto no tratamento de tumores hematológicos, os cientistas conseguiram encontrar marcadores claros, os tumores sólidos apresentam uma complexidade maior. Há relatos de tentativas em que as células CAR-T acabaram atacando tecidos saudáveis, como coração e pulmão.
“Uma das maiores dificuldades é determinar um bom alvo para as células atacarem. As células do linfoma, por exemplo, têm um bom marcador, que é a molécula CD19. Nos tumores sólidos, esses marcadores não estão tão claros”, explica Kutner.
Outro desafio é fazer com que as células CAR-T consigam reconhecer as células tumorais de cânceres sólidos. Diferentemente dos tumores hematológicos, onde as células cancerígenas e os linfócitos T coexistem nos mesmos ambientes, como sangue e sistema linfático, nos tumores sólidos há uma separação física. Além disso, há maior dificuldade de manter as células CAR-T funcionais após elas infiltrarem no tumor sólido.
Ainda assim, grupos de pesquisa de todo o mundo estão buscando formas de driblar as dificuldades e fazer das terapias gênicas e celulares um tratamento promissor para outros tipos de câncer. Resultados preliminares mostram algum benefício, por exemplo, para gliomas, um tipo de tumor cerebral agressivo.
Enquanto novos avanços não vêm, os primeiros brasileiros a passar pelo tratamento inovador comemoram não só “seu renascimento”, mas também a oportunidade de terem colaborado com pesquisas que podem devolver a esperança a outros pacientes.
“Quando eu estou celebrando mais um ano de vida, estou celebrando não só o fato de estar falando aqui com você, mas também que muitas pessoas no SUS poderão ter acesso no futuro e acho que a divulgação do meu caso fez uma pressão saudável para que houvesse mais investimentos”, diz Peregrino.
“Tudo isso dá um conforto e esperança porque o tratamento do câncer não é fácil. A quimioterapia é pesada porque ataca também células saudáveis. O tratamento com CAR-T foi um pouco mais tranquilo. Espero que ele chegue logo ao SUS e salve muitas vidas”, almeja Ana Cleire.