Popularizado como uma opção para quem quer largar o tabagismo ou uma alternativa menos prejudicial ao cigarro convencional, o cigarro eletrônico tem ganhado cada vez mais usuários. No entanto, um estudo realizado pelo Instituto do Coração (InCor) reforça os riscos por trás do dispositivo: quem usa os chamados vapes pode consumir níveis de nicotina semelhantes ou muito superiores aos observados em fumantes de cigarros convencionais.
A pesquisa, realizada em parceria com a Vigilância Sanitária do Estado de São Paulo e o Laboratório de Toxicologia da Faculdade de Medicina da USP (FMUSP), analisou amostras de saliva de 417 pessoas em bares, festivais, universidades, praças e outros locais públicos de diversas cidades do Estado de São Paulo, incluindo a capital, Campinas, Campos do Jordão, Ribeirão Preto, Santos e Santo André. Além das análises laboratoriais, que verificaram os níveis de nicotina, entrevistas com os participantes ajudaram a traçar o perfil dos usuários, algo que não havia sido feito no Brasil até então.
Como resultado, a pesquisa aponta que pessoas que afirmam possuir alta dependência em vapes e usam os dispositivos por até um ano apresentam, em média, 435 nanogramas de nicotina no organismo. “Isso é extremamente alto para esse período de tempo. Para ter ideia, esse parâmetro é superior ao de quem procura tratamento após 25 anos fumando ao menos 20 cigarros por dia”, diz a cardiologista Jaqueline Scholz, coordenadora da pesquisa.
É importante destacar que a nicotina atua no sistema nervoso central, estimulando a liberação de dopamina e gerando uma sensação de prazer temporária. Seus riscos incluem o aumento da frequência cardíaca e da pressão arterial, o que eleva o risco de doenças do coração, além de prejuízos na saúde mental, contribuindo para distúrbios como ansiedade e depressão. O uso prolongado também está relacionado a problemas respiratórios e ao aumento do risco de câncer.
No caso daqueles que afirmaram ter uma dependência leve, foram identificadas 219 nanogramas da substância no organismo, em média. No caso da dependência moderada, o valor foi de 201. “Isso mostra uma falha na percepção. Às vezes, a pessoa acredita que possui uma dependência mais leve, mas os dados mostram outra realidade”, explica Jaqueline.
De acordo com ela, em casos isolados os níveis de nicotina registrados chegaram a ser até seis vezes superiores àqueles observados em fumantes de cigarros convencionais, inclusive entre usuários com menos de um ano de uso do cigarro eletrônico.
Outro ponto que a pesquisa se propôs a investigar foi a comparação dos níveis de nicotina entre ex-fumantes de cigarros tradicionais e usuários exclusivos de vapes, sem histórico com tabaco convencional. Entre os ex-fumantes atualmente dependentes de cigarros eletrônicos, a média de nicotina chegou a 450 nanogramas, sugerindo que, ao substituir o cigarro convencional pelo eletrônico, muitos indivíduos acabam consumindo doses ainda maiores da substância.
Vale ressaltar que os resultados variam bastante de pessoa para pessoa, porque dependem do tipo de produto utilizado e do número de tragadas. Justamente por isso, o estudo foi dividido em variáveis como tempo de uso e percepção da dependência — leve, moderada ou intensa. “Geralmente, as pessoas começam com um vape de 10 mil tragadas, que costuma durar cerca de 15 dias. Mas, de repente, essas 10 mil tragadas passam a durar uma semana, depois apenas três dias. Por isso, cada caso é muito diferente. Agrupar dessa forma foi uma maneira de visualizar melhor esses padrões”, explica Jaqueline.
Ela destaca que doenças relacionadas ao tabagismo, como problemas respiratórios e cardiovasculares, geralmente levam cerca de 20 anos para se manifestar. No entanto, os dados do estudo sugerem que o uso de vapes pode encurtar esse intervalo — e muito. “Já estamos observando casos de infarto em jovens de cerca de 20 anos relacionados ao cigarro eletrônico. Isso demonstra que estamos lidando com um problema sério de saúde pública, e isso é apenas a ponta do iceberg.”
Outro ponto revelado pela pesquisa é uma discrepância entre a percepção dos usuários e a composição real dos produtos que consomem. Os testes realizados com voluntários que declararam usar vapes do tipo “sem nicotina” mostram que grande parte desses dispositivos, na verdade, contém a substância — o que pode indicar que as pessoas estão sendo alvos de estratégias de marketing enganosas, que buscam reforçar a ideia de que os cigarros eletrônicos são menos prejudiciais à saúde.
“Quando analisamos os produtos que as pessoas acreditam não conter nicotina, descobrimos que muitos, na verdade, apresentam traços da substância. Isso não só confunde os usuários, como também dificulta o controle do consumo”, destaca a pesquisadora. Os dados do estudo mostram que, entre aqueles que afirmaram usar dispositivos livres de nicotina, 44% realmente não apresentavam a substância, mas 56% estavam expostos a ela sem saber.
Maioria não reconhece a dependência
Em relação ao perfil dos usuários, a pesquisa evidenciou que a maior parte são pessoas brancas (60%) e com renda mensal que varia entre R$2.500 (75%), R$5 mil (50%) e R$10 mil ou mais (30%). Com relação às motivações, 17,8% dos usuários afirmaram ter optado pelo cigarro eletrônico como método para parar de fumar o cigarro comum. O restante disse ter sido por curiosidade (40,6%), influência de amigos ou familiares (28,1%) e publicidade (4,3%).
“Esses 17,8% estão basicamente relacionados àqueles que eram ex-fumantes e enxergaram o cigarro eletrônico como uma alternativa. Ou seja, para deixar de fumar o cigarro comum, passam a usar o eletrônico, mas não conseguem se desvencilhar dele. Que tipo de tratamento é esse, que acaba tornando a pessoa tão dependente quanto antes ou até mais?”, questiona a pesquisadora.
Embora o produto seja proibido no Brasil, Jaqueline iniciou a apresentação do estudo, nesta segunda-feira, 25, no Incor, exibindo a foto de um paciente com cerca de 30 vapes de diferentes cores e modelos. A pesquisa focou exclusivamente em pessoas acima de 18 anos, com a maioria na faixa dos 27 anos, mas a pesquisadora destaca que uma quantidade significativa dos pacientes que chegam ao seu consultório são menores de idade — assim como o paciente que forneceu a foto.
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Entre os motivos que explicam o alto consumo está o fato de os dispositivos permanecerem amplamente acessíveis: 69,9% dos usuários relatam comprar os dispositivos em tabacarias e comércios locais, 25,2% pela internet, 2,2% no exterior e 9,5% os afirmam ter ganhado de amigos ou familiares. Em relação à percepção de dependência, 37% dos entrevistados afirmaram que não se consideram dependentes, enquanto 21% relataram dependência moderada, 16,9% intensa, e 2,2% não souberam responder.
Asma e saúde mental
A pesquisa também revelou que 17,9% dos participantes relataram ter algum tipo de condição de saúde. “Por incrível que pareça, a asma foi uma das principais, tendo sido mencionada por 24,3% das pessoas”, disse Jaqueline. “Isso demonstra que os vapes seguem sendo vistos como produtos menos prejudiciais, até mesmo por aqueles que já sofrem de problemas respiratórios”.
Além da asma, 23% afirmaram ter algum tipo de alergia e 31% dos participantes disseram ter problemas de saúde mental, sendo que 75% relataram sofrer de ansiedade e 30% de depressão. A relação entre o uso de cigarros eletrônicos e as alterações no estado mental preocupa e segue um padrão semelhante ao observado no tabagismo convencional. “É um ciclo vicioso: a pessoa fuma para se acalmar, mas, ao mesmo tempo, a abstinência da nicotina agrava a ansiedade. Isso acontece tanto no cigarro comum como nos ‘pods’”, afirmou Jaqueline.
“Isso talvez explique por que esse tipo de dependência é tão elevado entre indivíduos com saúde mental fragilizada. Eles usam o produto como uma forma de aliviar os sintomas, mas acabam presos a esse padrão que perpetua e até agrava o problema”.
Vape: malefícios específicos
Segundo dados do instituto Inteligência em Pesquisa e Consultoria Estratégica (Ipec), os cigarros eletrônicos são consumidos por mais de três milhões de brasileiros — isso considerando apenas os adultos. De acordo com a instituição, nos últimos seis anos, o consumo desse tipo de aparelho teve um aumento de 600%.
Os números preocupam Jaqueline, que aponta que outros países já vivem uma “epidemia” de cigarros eletrônicos. O cuidado é necessário, pois, como explica a cardiologista, os cigarros eletrônicos apresentam vários malefícios em particular:
- Enquanto um maço de cigarro convencional rende até 250 tragadas, a pessoa que usa vape pode chegar a dar 1.800 puxadas em um dia. “Os supostos benefícios do cigarro eletrônico em relação aos cigarros convencionais se perdem, pois há uma exposição muito maior”, explica. Em teoria, o principal benefício seria a não inalação de fumaça e a não exposição à combustão.
- Há uma exposição frequente ao aerossol, que tem muitas substâncias químicas, além da própria nicotina, como metais pesados e compostos que, ao serem aquecidos e combinados, podem gerar substâncias cancerígenas.
“Do ponto de vista técnico, os vapes conseguem ser piores. Enquanto as doenças relacionadas ao tabaco costumam levar de 20 a 30 anos para se manifestar, no caso do cigarro eletrônico os efeitos são muito mais rápidos”, afirma Jaqueline.
“Como podem chamar isso de ‘redução de danos’? Na verdade, é apenas uma nova forma de vender dependência, disfarçada de modernidade, com dispositivos coloridos, atraentes e eletrônicos, mas oferecendo o mesmo que o cigarro tradicional: alta dependência e doenças.”