Varíola dos macacos traz medo, preconceito e já faz gays e bissexuais mudarem hábitos


Em São Paulo, já há festas de sexo que suspenderam as próximas datas; autoridades afirmam que qualquer um pode ter a doença

Por João Ker

A alta incidência da varíola dos macacos (monkeypox) entre “homens que fazem sexo com homens” (HSH) e o pedido da Organização Mundial da Saúde (OMS) para que gays e bissexuais reduzam contatos e parceiros sexuais criaram um problema que a ciência e as autoridades tentaram evitar. Pacientes com a doença apontam para uma onda de comentários preconceituosos e homofóbicos, desinformação, paranoia e medo, ao mesmo tempo em que outra parcela da comunidade LGBT+ se nega a encarar os fatores de risco e acredita ser alvo da mesma perseguição motivada pela epidemia do HIV/Aids na década de 1980. 

Com 30 anos e vivendo com HIV, o influenciador e comunicólogo Lucas Raniel descobriu que estava com a varíola na segunda semana de julho, quando começou a ter febre e, em seguida, as feridas características da doença. Após o diagnóstico, ele começou a contar sua rotina e dividir detalhes do tratamento nas redes sociais, onde acumula mais de 70 mil seguidores. 

“Desde que comecei a falar sobre, a quantidade de mensagens é insana”, diz Raniel. Ele conta que é procurado tanto por pessoas com medo de terem se infectado e mandando fotos de possíveis lesões, “quanto gays morrendo de medo e achando que vão se infectar e morrer amanhã”. O preconceito também dá as caras, com frases como “tá vendo, quem mandou ser gay e sair transando com todo mundo”.

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O comunicólogo Lucas Raniel, de 30 anos, mostra as marcas que restaram da varíola dos macacos; ele recebeu mensagens preconceituosas nas redes sociais. Foto: Taba Benedicto/Estadão

Os primeiros casos notificados na Europa foram em festas e saunas voltadas ao público gay, no início de maio. As comemorações do Orgulho LGBTI+ no mês seguinte e o fato de que essa comunidade tem uma “rede interligada” de contatos fizeram com que o vírus se espalhasse rapidamente entre “homens que fazem sexo com homens”.

“A comunidade LGBT+ acaba negligenciando essas questões porque já somos inflamados sobre muitas coisas. Quando nos entendemos como gays, já pensamos se o HIV vem nesse combo ou não”, afirma Raniel, que vê parte da comunidade tentando se esquivar dos avisos e riscos.  

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DJ e modelo de 22 anos, Doug Mello diz que quando falou sobre seu diagnóstico nas redes sociais também recebeu mensagens de carinho, apoio e desejos de melhora, mas não só. “Fiquei abismado com a ignorância de muitos, que não procuram saber o que é e nem se informar. Teve uma parte que veio me atacar, dizendo que seria ‘a nova doença dos gays’. Fico apreensivo, porque podem achar que só pega por sexo”, conta. 

Dificuldades na comunicação

A ciência ainda não decifrou se a varíola dos macacos é transmitida pela penetração ou pelo sêmen, mas o comportamento similar ao de uma IST fez com que ela fosse relacionada a uma possível promiscuidade dos pacientes. O preconceito se agravou após Tedros Adhanom, diretor-geral da Organização Mundial da Saúde, pedir para que os “homens que fazem sexo com homens” diminuíssem contatos e parceiros sexuais. 

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A fala foi criticada pela comunidade LGBT+, ainda que ele tenha esclarecido que o enfoque nos HSH era para prevenção e prioridade na vacinação, na tentativa de frear a doença.  "O estigma e a discriminação podem ser tão perigosos quanto qualquer vírus e alimentar o surto", disse Adhanom. 

“Nos preocupamos com esse enfoque (na comunidade HSH), em razão do que vivemos com a Aids, que deixou impacto muito negativo. Um dos atributos do estigma é essa rotulação, que afasta a população das buscas por tratamento”, aponta Anderson Reis, doutor em Enfermagem e professor da Universidade Federal da Bahia (UFBA), com foco na saúde masculina. 

“Tem o ponto correto de tornar visível que homens gays estão sendo afetados desproporcionalmente, e isso é bom para a comunidade estar alerta; mas o ponto ruim é que volta para a mesma questão do HIV”, afirma o pesquisador da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo Daniel Barros. “É o grande erro: a associação massiva de que gays são os únicos responsáveis por transmitir a doença."

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“Se tivéssemos tomado uma ação rápido o suficiente e pensado que as vidas e a saúde de homens gays e bissexuais são importantes o suficiente para tirarmos vacinas do freezer e colocá-las nos nossos corpos, nem estaríamos nessa conversa”, disse Keletso Makofane, membro da Sociedade Internacional da Aids. 

Redução de riscos

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Em São Paulo, já há festas de sexo que suspenderam as próximas datas até que haja vacina disponível (o governo prevê receber o 1º lote de aproximadamente 20 mil doses em setembro). A Brutus, que ocorre mensalmente na Casa da Luz, no centro, anunciou que a próxima edição do dia 13 será com “redução de riscos” e “posição política”. O dark room, ambiente escuro onde os frequentadores fazem sexo, estará fechado. A nudez também não será incentivada e as paredes estarão cobertas com informações sobre a varíola. Nas redes sociais, a organização pediu que quem se sentir mal, com febre ou tiver lesões não compareça.

“Precisamos trabalhar, é parte do nosso sustento. Ninguém na comunidade LGBT+ deve abdicar da vida por conta disso. É preciso se cuidar, se preservar, evitar contato, mas isso também não acontece só nas nossas festas”, aponta o produtor da Brutus Alexandre Bispo, de 48 anos. “Não podemos assumir que somos o problema desse contágio porque em breve vai estar entre todo mundo.” Ele dá quase como certa a queda no número de frequentadores. 

No Largo do Arouche, também na região central, o Hotel Chilli, que funciona como hospedagem curta para homens solteiros e oferece sauna, cinema, bar e pista de dança, com sexo liberado em todas essas áreas, o funcionamento continuará o mesmo. “Como opinião pessoal, acho que (a varíola) ainda não é uma coisa assustadora, morreu só uma pessoa. Não é como a Aids, como muitas pessoas comparam. Não existe medicação, não é fácil, mas também não é esse grande desespero”, opina o dono, Douglas Drummond, de 51 anos. 

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Ele lembra que, diferentemente do início da pandemia de coronavírus, ainda não foram estabelecidos protocolos sanitários do poder público para espaços como o Hotel Chilli, saunas ou festas. “Não dá pra adivinhar o que eu preciso fazer. A partir do momento em que isso for indicado, não tem o que pensar. Saúde pública é saúde pública”, afirma.

Mesmo que aplicativos de relacionamento, saunas e festas estejam fervendo, muitos homens gays e bissexuais já adaptaram a rotina. “Mudei muita coisa, até a quantidade de encontros casuais que tenho. Estou com medo de ir a qualquer lugar porque desconheço bastante a doença e não vejo nenhuma mobilização em relação à vacina”, diz Natan (nome fictício), engenheiro de 27 anos e solteiro. 

Ele conta que um amigo próximo teve a doença e, ao acompanhar de perto a evolução dos sintomas, das feridas e da dor, decidiu que a doença pode não ser letal, mas ainda assim é perigosa. “Tenho medo das feridas, até porque não conheço só ele quem teve, e as coisas que vi não são nada agradáveis.”

Na manhã da quinta-feira, 4, o Estado de São Paulo anunciou um plano de enfrentamento contra a doença, com a criação de rede de hospitais, e a ampliação de testagem e sequenciamento das amostras coletadas durante as notificações. "Pode acontecer com todo mundo", disse o secretário estadual de Ciência, Pesquisa e Desenvolvimento em Saúde, David Uip, durante o anúncio das medidas. Uip ponderou que, até agora, há a prevalência da doença em determinados grupos, como homens que fazem sexo com outros homens, mas essa situação é "transitória". "Daqui a pouco, todas as pessoas vão estar passíveis de contaminação."

Também ontem, a Coordenadoria de IST/Aids da Secretaria Municipal de Saúde da capital se reuniu com mais de 40 produtores de festas e donos de saunas ou estabelecimentos do tipo para traçar um plano de comunicação conjunto, “sem gerar pânico”. 

Para alguns que passaram pela doença, ficam marcas. Raniel agora tem cicatrizes das feridas que teve nos dedos da mão e no peito, e conta que tem sido encarado em festas gays. “Falam ‘ali o rapaz da varíola’. Não ligo, porque quis falar e alertar as pessoas, mas acabo escutando.” 

Para Natan, “a doença pode não ser tão mortal, mas deixa uma cicatriz, inclusive no rosto, que pode nunca sair”. “Isso prejudica a nossa saúde mental e deixa sequelas.”

A alta incidência da varíola dos macacos (monkeypox) entre “homens que fazem sexo com homens” (HSH) e o pedido da Organização Mundial da Saúde (OMS) para que gays e bissexuais reduzam contatos e parceiros sexuais criaram um problema que a ciência e as autoridades tentaram evitar. Pacientes com a doença apontam para uma onda de comentários preconceituosos e homofóbicos, desinformação, paranoia e medo, ao mesmo tempo em que outra parcela da comunidade LGBT+ se nega a encarar os fatores de risco e acredita ser alvo da mesma perseguição motivada pela epidemia do HIV/Aids na década de 1980. 

Com 30 anos e vivendo com HIV, o influenciador e comunicólogo Lucas Raniel descobriu que estava com a varíola na segunda semana de julho, quando começou a ter febre e, em seguida, as feridas características da doença. Após o diagnóstico, ele começou a contar sua rotina e dividir detalhes do tratamento nas redes sociais, onde acumula mais de 70 mil seguidores. 

“Desde que comecei a falar sobre, a quantidade de mensagens é insana”, diz Raniel. Ele conta que é procurado tanto por pessoas com medo de terem se infectado e mandando fotos de possíveis lesões, “quanto gays morrendo de medo e achando que vão se infectar e morrer amanhã”. O preconceito também dá as caras, com frases como “tá vendo, quem mandou ser gay e sair transando com todo mundo”.

O comunicólogo Lucas Raniel, de 30 anos, mostra as marcas que restaram da varíola dos macacos; ele recebeu mensagens preconceituosas nas redes sociais. Foto: Taba Benedicto/Estadão

Os primeiros casos notificados na Europa foram em festas e saunas voltadas ao público gay, no início de maio. As comemorações do Orgulho LGBTI+ no mês seguinte e o fato de que essa comunidade tem uma “rede interligada” de contatos fizeram com que o vírus se espalhasse rapidamente entre “homens que fazem sexo com homens”.

“A comunidade LGBT+ acaba negligenciando essas questões porque já somos inflamados sobre muitas coisas. Quando nos entendemos como gays, já pensamos se o HIV vem nesse combo ou não”, afirma Raniel, que vê parte da comunidade tentando se esquivar dos avisos e riscos.  

DJ e modelo de 22 anos, Doug Mello diz que quando falou sobre seu diagnóstico nas redes sociais também recebeu mensagens de carinho, apoio e desejos de melhora, mas não só. “Fiquei abismado com a ignorância de muitos, que não procuram saber o que é e nem se informar. Teve uma parte que veio me atacar, dizendo que seria ‘a nova doença dos gays’. Fico apreensivo, porque podem achar que só pega por sexo”, conta. 

Dificuldades na comunicação

A ciência ainda não decifrou se a varíola dos macacos é transmitida pela penetração ou pelo sêmen, mas o comportamento similar ao de uma IST fez com que ela fosse relacionada a uma possível promiscuidade dos pacientes. O preconceito se agravou após Tedros Adhanom, diretor-geral da Organização Mundial da Saúde, pedir para que os “homens que fazem sexo com homens” diminuíssem contatos e parceiros sexuais. 

A fala foi criticada pela comunidade LGBT+, ainda que ele tenha esclarecido que o enfoque nos HSH era para prevenção e prioridade na vacinação, na tentativa de frear a doença.  "O estigma e a discriminação podem ser tão perigosos quanto qualquer vírus e alimentar o surto", disse Adhanom. 

“Nos preocupamos com esse enfoque (na comunidade HSH), em razão do que vivemos com a Aids, que deixou impacto muito negativo. Um dos atributos do estigma é essa rotulação, que afasta a população das buscas por tratamento”, aponta Anderson Reis, doutor em Enfermagem e professor da Universidade Federal da Bahia (UFBA), com foco na saúde masculina. 

“Tem o ponto correto de tornar visível que homens gays estão sendo afetados desproporcionalmente, e isso é bom para a comunidade estar alerta; mas o ponto ruim é que volta para a mesma questão do HIV”, afirma o pesquisador da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo Daniel Barros. “É o grande erro: a associação massiva de que gays são os únicos responsáveis por transmitir a doença."

“Se tivéssemos tomado uma ação rápido o suficiente e pensado que as vidas e a saúde de homens gays e bissexuais são importantes o suficiente para tirarmos vacinas do freezer e colocá-las nos nossos corpos, nem estaríamos nessa conversa”, disse Keletso Makofane, membro da Sociedade Internacional da Aids. 

Redução de riscos

Em São Paulo, já há festas de sexo que suspenderam as próximas datas até que haja vacina disponível (o governo prevê receber o 1º lote de aproximadamente 20 mil doses em setembro). A Brutus, que ocorre mensalmente na Casa da Luz, no centro, anunciou que a próxima edição do dia 13 será com “redução de riscos” e “posição política”. O dark room, ambiente escuro onde os frequentadores fazem sexo, estará fechado. A nudez também não será incentivada e as paredes estarão cobertas com informações sobre a varíola. Nas redes sociais, a organização pediu que quem se sentir mal, com febre ou tiver lesões não compareça.

“Precisamos trabalhar, é parte do nosso sustento. Ninguém na comunidade LGBT+ deve abdicar da vida por conta disso. É preciso se cuidar, se preservar, evitar contato, mas isso também não acontece só nas nossas festas”, aponta o produtor da Brutus Alexandre Bispo, de 48 anos. “Não podemos assumir que somos o problema desse contágio porque em breve vai estar entre todo mundo.” Ele dá quase como certa a queda no número de frequentadores. 

No Largo do Arouche, também na região central, o Hotel Chilli, que funciona como hospedagem curta para homens solteiros e oferece sauna, cinema, bar e pista de dança, com sexo liberado em todas essas áreas, o funcionamento continuará o mesmo. “Como opinião pessoal, acho que (a varíola) ainda não é uma coisa assustadora, morreu só uma pessoa. Não é como a Aids, como muitas pessoas comparam. Não existe medicação, não é fácil, mas também não é esse grande desespero”, opina o dono, Douglas Drummond, de 51 anos. 

Ele lembra que, diferentemente do início da pandemia de coronavírus, ainda não foram estabelecidos protocolos sanitários do poder público para espaços como o Hotel Chilli, saunas ou festas. “Não dá pra adivinhar o que eu preciso fazer. A partir do momento em que isso for indicado, não tem o que pensar. Saúde pública é saúde pública”, afirma.

Mesmo que aplicativos de relacionamento, saunas e festas estejam fervendo, muitos homens gays e bissexuais já adaptaram a rotina. “Mudei muita coisa, até a quantidade de encontros casuais que tenho. Estou com medo de ir a qualquer lugar porque desconheço bastante a doença e não vejo nenhuma mobilização em relação à vacina”, diz Natan (nome fictício), engenheiro de 27 anos e solteiro. 

Ele conta que um amigo próximo teve a doença e, ao acompanhar de perto a evolução dos sintomas, das feridas e da dor, decidiu que a doença pode não ser letal, mas ainda assim é perigosa. “Tenho medo das feridas, até porque não conheço só ele quem teve, e as coisas que vi não são nada agradáveis.”

Na manhã da quinta-feira, 4, o Estado de São Paulo anunciou um plano de enfrentamento contra a doença, com a criação de rede de hospitais, e a ampliação de testagem e sequenciamento das amostras coletadas durante as notificações. "Pode acontecer com todo mundo", disse o secretário estadual de Ciência, Pesquisa e Desenvolvimento em Saúde, David Uip, durante o anúncio das medidas. Uip ponderou que, até agora, há a prevalência da doença em determinados grupos, como homens que fazem sexo com outros homens, mas essa situação é "transitória". "Daqui a pouco, todas as pessoas vão estar passíveis de contaminação."

Também ontem, a Coordenadoria de IST/Aids da Secretaria Municipal de Saúde da capital se reuniu com mais de 40 produtores de festas e donos de saunas ou estabelecimentos do tipo para traçar um plano de comunicação conjunto, “sem gerar pânico”. 

Para alguns que passaram pela doença, ficam marcas. Raniel agora tem cicatrizes das feridas que teve nos dedos da mão e no peito, e conta que tem sido encarado em festas gays. “Falam ‘ali o rapaz da varíola’. Não ligo, porque quis falar e alertar as pessoas, mas acabo escutando.” 

Para Natan, “a doença pode não ser tão mortal, mas deixa uma cicatriz, inclusive no rosto, que pode nunca sair”. “Isso prejudica a nossa saúde mental e deixa sequelas.”

A alta incidência da varíola dos macacos (monkeypox) entre “homens que fazem sexo com homens” (HSH) e o pedido da Organização Mundial da Saúde (OMS) para que gays e bissexuais reduzam contatos e parceiros sexuais criaram um problema que a ciência e as autoridades tentaram evitar. Pacientes com a doença apontam para uma onda de comentários preconceituosos e homofóbicos, desinformação, paranoia e medo, ao mesmo tempo em que outra parcela da comunidade LGBT+ se nega a encarar os fatores de risco e acredita ser alvo da mesma perseguição motivada pela epidemia do HIV/Aids na década de 1980. 

Com 30 anos e vivendo com HIV, o influenciador e comunicólogo Lucas Raniel descobriu que estava com a varíola na segunda semana de julho, quando começou a ter febre e, em seguida, as feridas características da doença. Após o diagnóstico, ele começou a contar sua rotina e dividir detalhes do tratamento nas redes sociais, onde acumula mais de 70 mil seguidores. 

“Desde que comecei a falar sobre, a quantidade de mensagens é insana”, diz Raniel. Ele conta que é procurado tanto por pessoas com medo de terem se infectado e mandando fotos de possíveis lesões, “quanto gays morrendo de medo e achando que vão se infectar e morrer amanhã”. O preconceito também dá as caras, com frases como “tá vendo, quem mandou ser gay e sair transando com todo mundo”.

O comunicólogo Lucas Raniel, de 30 anos, mostra as marcas que restaram da varíola dos macacos; ele recebeu mensagens preconceituosas nas redes sociais. Foto: Taba Benedicto/Estadão

Os primeiros casos notificados na Europa foram em festas e saunas voltadas ao público gay, no início de maio. As comemorações do Orgulho LGBTI+ no mês seguinte e o fato de que essa comunidade tem uma “rede interligada” de contatos fizeram com que o vírus se espalhasse rapidamente entre “homens que fazem sexo com homens”.

“A comunidade LGBT+ acaba negligenciando essas questões porque já somos inflamados sobre muitas coisas. Quando nos entendemos como gays, já pensamos se o HIV vem nesse combo ou não”, afirma Raniel, que vê parte da comunidade tentando se esquivar dos avisos e riscos.  

DJ e modelo de 22 anos, Doug Mello diz que quando falou sobre seu diagnóstico nas redes sociais também recebeu mensagens de carinho, apoio e desejos de melhora, mas não só. “Fiquei abismado com a ignorância de muitos, que não procuram saber o que é e nem se informar. Teve uma parte que veio me atacar, dizendo que seria ‘a nova doença dos gays’. Fico apreensivo, porque podem achar que só pega por sexo”, conta. 

Dificuldades na comunicação

A ciência ainda não decifrou se a varíola dos macacos é transmitida pela penetração ou pelo sêmen, mas o comportamento similar ao de uma IST fez com que ela fosse relacionada a uma possível promiscuidade dos pacientes. O preconceito se agravou após Tedros Adhanom, diretor-geral da Organização Mundial da Saúde, pedir para que os “homens que fazem sexo com homens” diminuíssem contatos e parceiros sexuais. 

A fala foi criticada pela comunidade LGBT+, ainda que ele tenha esclarecido que o enfoque nos HSH era para prevenção e prioridade na vacinação, na tentativa de frear a doença.  "O estigma e a discriminação podem ser tão perigosos quanto qualquer vírus e alimentar o surto", disse Adhanom. 

“Nos preocupamos com esse enfoque (na comunidade HSH), em razão do que vivemos com a Aids, que deixou impacto muito negativo. Um dos atributos do estigma é essa rotulação, que afasta a população das buscas por tratamento”, aponta Anderson Reis, doutor em Enfermagem e professor da Universidade Federal da Bahia (UFBA), com foco na saúde masculina. 

“Tem o ponto correto de tornar visível que homens gays estão sendo afetados desproporcionalmente, e isso é bom para a comunidade estar alerta; mas o ponto ruim é que volta para a mesma questão do HIV”, afirma o pesquisador da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo Daniel Barros. “É o grande erro: a associação massiva de que gays são os únicos responsáveis por transmitir a doença."

“Se tivéssemos tomado uma ação rápido o suficiente e pensado que as vidas e a saúde de homens gays e bissexuais são importantes o suficiente para tirarmos vacinas do freezer e colocá-las nos nossos corpos, nem estaríamos nessa conversa”, disse Keletso Makofane, membro da Sociedade Internacional da Aids. 

Redução de riscos

Em São Paulo, já há festas de sexo que suspenderam as próximas datas até que haja vacina disponível (o governo prevê receber o 1º lote de aproximadamente 20 mil doses em setembro). A Brutus, que ocorre mensalmente na Casa da Luz, no centro, anunciou que a próxima edição do dia 13 será com “redução de riscos” e “posição política”. O dark room, ambiente escuro onde os frequentadores fazem sexo, estará fechado. A nudez também não será incentivada e as paredes estarão cobertas com informações sobre a varíola. Nas redes sociais, a organização pediu que quem se sentir mal, com febre ou tiver lesões não compareça.

“Precisamos trabalhar, é parte do nosso sustento. Ninguém na comunidade LGBT+ deve abdicar da vida por conta disso. É preciso se cuidar, se preservar, evitar contato, mas isso também não acontece só nas nossas festas”, aponta o produtor da Brutus Alexandre Bispo, de 48 anos. “Não podemos assumir que somos o problema desse contágio porque em breve vai estar entre todo mundo.” Ele dá quase como certa a queda no número de frequentadores. 

No Largo do Arouche, também na região central, o Hotel Chilli, que funciona como hospedagem curta para homens solteiros e oferece sauna, cinema, bar e pista de dança, com sexo liberado em todas essas áreas, o funcionamento continuará o mesmo. “Como opinião pessoal, acho que (a varíola) ainda não é uma coisa assustadora, morreu só uma pessoa. Não é como a Aids, como muitas pessoas comparam. Não existe medicação, não é fácil, mas também não é esse grande desespero”, opina o dono, Douglas Drummond, de 51 anos. 

Ele lembra que, diferentemente do início da pandemia de coronavírus, ainda não foram estabelecidos protocolos sanitários do poder público para espaços como o Hotel Chilli, saunas ou festas. “Não dá pra adivinhar o que eu preciso fazer. A partir do momento em que isso for indicado, não tem o que pensar. Saúde pública é saúde pública”, afirma.

Mesmo que aplicativos de relacionamento, saunas e festas estejam fervendo, muitos homens gays e bissexuais já adaptaram a rotina. “Mudei muita coisa, até a quantidade de encontros casuais que tenho. Estou com medo de ir a qualquer lugar porque desconheço bastante a doença e não vejo nenhuma mobilização em relação à vacina”, diz Natan (nome fictício), engenheiro de 27 anos e solteiro. 

Ele conta que um amigo próximo teve a doença e, ao acompanhar de perto a evolução dos sintomas, das feridas e da dor, decidiu que a doença pode não ser letal, mas ainda assim é perigosa. “Tenho medo das feridas, até porque não conheço só ele quem teve, e as coisas que vi não são nada agradáveis.”

Na manhã da quinta-feira, 4, o Estado de São Paulo anunciou um plano de enfrentamento contra a doença, com a criação de rede de hospitais, e a ampliação de testagem e sequenciamento das amostras coletadas durante as notificações. "Pode acontecer com todo mundo", disse o secretário estadual de Ciência, Pesquisa e Desenvolvimento em Saúde, David Uip, durante o anúncio das medidas. Uip ponderou que, até agora, há a prevalência da doença em determinados grupos, como homens que fazem sexo com outros homens, mas essa situação é "transitória". "Daqui a pouco, todas as pessoas vão estar passíveis de contaminação."

Também ontem, a Coordenadoria de IST/Aids da Secretaria Municipal de Saúde da capital se reuniu com mais de 40 produtores de festas e donos de saunas ou estabelecimentos do tipo para traçar um plano de comunicação conjunto, “sem gerar pânico”. 

Para alguns que passaram pela doença, ficam marcas. Raniel agora tem cicatrizes das feridas que teve nos dedos da mão e no peito, e conta que tem sido encarado em festas gays. “Falam ‘ali o rapaz da varíola’. Não ligo, porque quis falar e alertar as pessoas, mas acabo escutando.” 

Para Natan, “a doença pode não ser tão mortal, mas deixa uma cicatriz, inclusive no rosto, que pode nunca sair”. “Isso prejudica a nossa saúde mental e deixa sequelas.”

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