A taxa de mortalidade por câncer de mama — o tipo de câncer mais comum entre as mulheres brasileiras — aumentou 86,2% em 22 anos no Brasil, segundo levantamento da Umane, associação civil voltada ao apoio a iniciativas de saúde pública. Apesar desse aumento, vídeos de médicos que negam a existência da doença ou minimizam a importância da mamografia têm circulado nas redes sociais, causando preocupação entre entidades médicas e Conselhos Regionais de Medicina.
1) Mamografia não aumenta o risco de câncer de mama
Em um dos vídeos, um médico com mais de um milhão de seguidores no Instagram responde à pergunta de uma seguidora. Ela relata ter dois cistos nos seios e estar em acompanhamento, mas quer saber o que pode fazer para resolver o problema. Como resposta, o médico desencoraja a mulher a continuar realizando mamografias, que são o principal exame de rastreamento para o câncer de mama.
“Ficar fazendo mamografia? Uma mamografia gera uma radiação para a mama equivalente a 200 raios-X. Isso aumenta a incidência de câncer de mama, por excesso de mamografia”, afirma o médico, que possui registros para atuar em São Paulo e Minas Gerais, mas não possui especialização, seja em oncologia ou mastologia, registrada no Conselho Federal de Medicina (CFM).
De acordo com a mastologista Fabiana Makdissi, líder do Centro de Referência em Tumores da Mama do A.C. Camargo Cancer Center, a informação divulgada pelo médico é “totalmente errada”. Ela explica que a mamografia utiliza uma quantidade de radiação extremamente baixa, entre 0,1 e 0,4 milisieverts (mSv), medida considerada segura para a realização de exames médicos.
Para se ter ideia, uma pessoa recebe cerca de 3 mSv de radiação anualmente, no contato natural com o meio ambiente. Assim, uma dose de 0,1 a 0,4 mSv representa apenas uma pequena parte dessa exposição anual. “Estamos falando de um exame que oferece muito mais benefícios do que qualquer tipo de risco. Esse é o único exame capaz de reduzir em até 30% a mortalidade por câncer de mama, quando realizado regularmente”, destaca Fabiana.
2) Câncer de mama não é causado por “deficiência de iodo”
Além das inverdades sobre a mamografia, o mesmo médico afirma à seguidora que os dois cistos que ela possui provavelmente estão relacionados a uma “deficiência de iodo”, alegação que contraria as evidências científicas.
Segundo o mastologista Marcelo Bello, diretor do HC III — unidade referência do Instituto Nacional de Câncer (Inca) para o tratamento do câncer de mama —, a afirmação de que cistos e câncer de mama podem ser causados por deficiência de iodo é totalmente infundada.
“O câncer de mama não tem qualquer relação direta com o iodo, uma vez que a glândula mamária não produz nem depende desse elemento para a produção de leite. Essa teoria carece de fundamento e não deve ser levada em consideração”, destaca Bello.
Fabiana, por sua vez, enfatiza que o câncer de mama é uma doença multifatorial e não existe qualquer relação com uma substância única, como o iodo. “O principal fator de risco para o câncer de mama é o envelhecimento celular, que pode estar associado a fatores como obesidade, sedentarismo, tabagismo e consumo de álcool”, explica.
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3) Câncer de mama não é causado pela “desmineralização dos ossos”
Outra afirmação sem fundamento foi postada por uma médica que tem registro no Conselho Regional de Medicina do Pará, porém também não possui especialização em oncologia ou mastologia reconhecida pelo CFM. “Câncer de mama não existe. Esqueça Outubro Rosa. Esqueça a mamografia”, declara em um vídeo divulgado pelo Instagram.
“Por que eu afirmo que câncer de mama não existe? Porque o que acontece é uma inflamação nas mamas, causada pela concentração de cálcio nessa região. O cálcio se acumula nas mamas devido à desmineralização dos ossos, que ocorre com a diminuição de hormônios como testosterona, progesterona e estradiol”, acrescenta no vídeo.
Fabiana critica as afirmações. “Todas as falas dela são absurdas. Não existe essa desmineralização que ela menciona, e o cálcio é essencial para a estrutura óssea e a produção de leite”, ressalta. Ela também explica que hormônios como estrógeno e progesterona estão naturalmente presentes em maior quantidade nas mulheres, o que aumenta o risco de câncer de mama.
“Exatamente por nós, mulheres, termos esses hormônios naturalmente no nosso corpo, em maior escala do que têm os homens, que nosso risco para câncer de mama ao longo da vida é maior”, destaca a mastologista. “Por isso, a associação do câncer de mama com a queda desses hormônios é um absurdo. É o oposto do que diz a ciência. Inclusive, o bloqueio hormonal é parte do tratamento para muitas pacientes”, complementa a mastologista.
4) Tratamento com “modulação hormonal nano” não possui evidências científicas
Ainda no mesmo vídeo, assistido por milhares de pessoas e compartilhado em aplicativos de mensagens, a médica indica a realização de um tratamento chamado “modulação hormonal nano” — também desprovido de evidências científicas. O suposto tratamento envolve a reposição de hormônios como testosterona, progesterona e estradiol.
Segundo Fabiana, a sugestão é perigosa. Ela explica que, em mais de 80% dos casos, as mulheres diagnosticadas com câncer de mama apresentam tumores que são sensíveis a hormônios. Portanto, a administração de hormônios como estrogênio, progesterona e testosterona em pacientes com câncer de mama é uma contraindicação absoluta, pois eles podem estimular a divisão celular e agravar o quadro.
“Há muitas mulheres que, sim, precisam de reposição hormonal, mas reposição hormonal dentro dos critérios científicos”, destaca Fabiana. “Agora, quando se trata de mulheres que têm câncer de mama, a administração de qualquer hormônio não é indicada, seja progesterona, estradiol ou testosterona. Isso pode fazer o tumor aumentar. É muito grave”, alerta.
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O que dizem médicos e entidades?
Para Fabiana, conteúdos que negam a existência do câncer de mama ou desaconselham a mamografia “são um verdadeiro retrocesso, contradizendo o propósito da medicina de informar com base em evidências científicas sólidas”.
A mastologista defende que o papel do médico é cuidar e orientar com responsabilidade e humanidade, seja no hospital, no consultório ou nas redes sociais, e teme os efeitos de postagens como essas. “Esse tipo de desinformação abala a confiança na medicina, levando as pessoas a questionarem o trabalho de profissionais sérios que se dedicam a oferecer um cuidado responsável — o oposto do que observamos em profissionais como esses, que estão divulgando inverdades que abalam todo um processo de conscientização em relação ao câncer de mama.”
Para o vice-presidente da Sociedade Brasileira de Cancerologia, Luis Eduardo Werneck, a disseminação de informações falsas sobre o câncer de mama representa um risco significativo para pacientes em tratamento, que podem ser induzidas a descuidar ou até interromper suas terapias.
“O câncer de mama é uma doença que existe, e eu trato dela todos os dias”, ressalta Werneck. “A desinformação não apenas enfraquece nossas campanhas, que já têm uma abrangência limitada, mas também pode resultar em diagnósticos mais tardios, comprometendo a saúde de muitas pessoas que enfrentam a doença.”
O Conselho Regional de Medicina do Estado do Pará informou que está apurando a declaração da médica que afirmou que o “câncer de mama não existe”. Em nota, a entidade ressaltou que os procedimentos tramitam sob sigilo, conforme previsto no Código de Processo Ético-Profissional.
O vídeo do médico que desencoraja a realização de mamografias foi enviado ao Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo, que também confirmou estar investigando o caso e disse que as apurações ocorrem de maneira sigilosa.
O Inca também se manifestou em relação aos casos. “O câncer de mama é uma doença real, comprovada cientificamente, e é um dos tipos de câncer mais comuns entre mulheres no Brasil e no mundo. O diagnóstico e tratamento precoces são fundamentais para reduzir a mortalidade, assim como os exames de rastreamento, como a mamografia, e campanhas de conscientização, como o Outubro Rosa”, reforça em nota.
“A desinformação sobre a inexistência do câncer de mama não tem respaldo científico e prejudica a saúde pública, colocando vidas em risco ao desencorajar exames preventivos e tratamentos essenciais”, finaliza o Inca.