5 lições de uma vila de pescadores no Japão para reconstruir áreas após desastres


Estratégia global de enfrentamento a catástrofes ganhou força após Fukushima. Brasileira com PhD na Universidade de Tóquio destaca ações adotadas no país asiático

Por Juliana Domingos de Lima
Atualização:

Medidas emergenciais são a primeira resposta para salvar vidas e aliviar o sofrimento nas áreas atingidas por um desastre. Mas logo dão lugar à pergunta: como reconstituir os territórios devastados para que os lugares e as pessoas fiquem menos vulneráveis ao risco?

Na arquitetura e no planejamento urbano, o conceito de resiliência tem a ver com adotar soluções urbanas melhores a partir de um cenário de catástrofe. “É usar a destruição para implementar mudanças, por exemplo para reordenar onde se pode ou não construir e como fazer isso”, explicou Lara Leite Barbosa, professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, ao Estadão.

A expressão “Build back better”(construir de novo melhor, em tradução livre, abreviado pela sigla BBB) tem sido usada desde o início dos anos 2000 por órgãos governamentais e instituições como o Banco Mundial para sintetizar estratégias implementadas em diferentes lugares do mundo na recuperação de territórios e comunidades atingidos por desastres, tornando-os mais resilientes.

Alguns princípios dessa estratégia são melhorar o desenho das estruturas físicas, planejar o uso do solo para reduzir o risco, impulsionar a recuperação econômica e social e dar funções claras e coordenadas aos atores envolvidos.

Um dos países a implementar o BBB é o Japão, que precisou reconstruir grande parte da região de Tohoku, no nordeste da ilha, depois dos eventos de 2011.

Desastre triplo

Em 11 de março de 2011, o Japão enfrentou a maior catástrofe desde as bombas atômicas lançadas sobre Hiroshima e Nagasaki quando foi atingido por um terremoto de magnitude 9,1, por um tsunami de mais de dez metros e pelo desastre nuclear de Fukushima.

A tripla catástrofe provocou cerca de 20 mil mortes e uma enorme destruição de casas, infraestrutura, na agricultura e na indústria no país Foto: Fly_and_Dive - stock.adobe.com

A tripla catástrofe provocou cerca de 20 mil mortes e uma enorme destruição de casas, infraestrutura, na agricultura e na indústria no país. Cidades e vilarejos inteiros foram apagados pela água e outras áreas tiveram que ser evacuadas devido ao risco nuclear, deixando centenas de milhares de desalojados.

Ainda que o país asiático tenha uma realidade socioeconômica bastante diversa da brasileira, o caso da recuperação japonesa pós-2011 tem sido estudado por pesquisadores do mundo todo que atuam nas diferentes áreas de enfrentamento a desastres, e inspira ações em diferentes contextos.

“O Japão é certamente um exemplo no mundo em termos de gestão de risco e recuperação após desastre, trazendo resiliência e adaptação”, destacou Gean Paulo Michel, professor do Instituto de Pesquisas Hidráulicas da UFRGS.

Essa experiência deu origem ao Marco de Sendai para a Redução do Risco de Desastres, que leva o nome de uma das cidades japonesas afetadas e foi ratificado pelos Estados-membros das Nações Unidas em 2015.

Ele estabelece quatro prioridades para aumentar a resiliência e reduzir o risco de desastres dos países: compreender o risco, melhorar a governança para gerenciá-lo, investir na redução do risco e se preparar para fornecer uma resposta e recuperação eficazes quando o desastre ocorrer. O objetivo final delas é o “build back better”.

“Neste marco está escancarada a necessidade de não repetir erros do passado e reduzir as vulnerabilidades das populações no enfrentamento dos próximos desastres”, diz o professor da UFRGS.

5 ensinamentos de uma vila de pescadores no Japão

Quando o desastre de 2011 aconteceu, a arquiteta e pesquisadora capixaba Ivana Jalowitzki morava no Japão e decidiu acompanhar a regeneração urbana de uma área afetada. O trabalho de campo foi realizado junto a uma pequena comunidade de pescadores no vilarejo de Shibitachi e resultou em um doutorado em Regeneração Urbana Pós-Desastres pela Universidade de Tóquio.

Jalowitzki viu o BBB ser aplicado na prática nesse período e alguns pontos chamaram sua atenção. Ainda assim, afirma que o Japão “não é perfeito”. Mais de dez anos depois, muitos lugares ainda estão em recuperação, que foi mais rápida e eficaz nos grandes centros, com locais periféricos vivenciando mais os efeitos do desastre até hoje.

A pesquisadora acompanhou uma pequena comunidade de pescadores no vilarejo de Shibitachi Foto: Ivana Jalowitzki
  • Organização comunitária para saber o que fazer

Jalowitzki destaca que o Japão já tem uma cultura de gestão de risco de desastres, implementada desde a Segunda Guerra Mundial, e que a primeira coisa que a surpreendeu foi o fato de, passado o primeiro impacto da tragédia, as pessoas já saberem como atuar porque havia um plano de contingência da comunidade. “Eu esperava encontrar pessoas muito vitimizadas, mas as vi muito protagonistas”, diz.

  • Importância de mapear os danos

A pesquisadora vê como fundamental o levantamento dos danos causados a construções e objetos urbanos, feito quando a água já baixou e o solo está estável. Em uma caminhada pelo vilarejo, os moradores compartilharam perdas e puderam resgatar a memória e a identidade do local antes do desastre, um passo importante para a reconstrução.

Vilarejo foi atingido pelo tsunami de 2011 Foto: Ivana Jalowitzki

A equipe de pesquisa identificou ter havido um rebaixamento do solo por conta do impacto do terremoto e tsunami e realizou um redesenho topográfico para subsidiar o plano de recuperação com dados atualizados sobre o território.

  • Reconstruir melhor e em lugares mais seguros

Traçar a “linha do tsunami” foi fundamental para delimitar até onde o desastre atingiu e identificar terras mais seguras. “Não adianta a gente voltar para onde o desastre aconteceu. A gente precisa evoluir com a experiência e olhar o território de uma forma mais responsável”, diz.

  • Prioridade para estruturas essenciais

Sistemas principais, como o de mobilidade, foram restaurados com grande rapidez. Em determinadas regiões, o serviço e a infraestrutura de transporte foi restabelecido ao menos parcialmente logo nas primeiras semanas após o desastre. Os reparos continuaram até que as principais estradas e linhas de trem estivessem funcionando para levar socorro e suprimentos com maior facilidade.

  • Processo participativo e conexão social

Jalowitzki considera o envolvimento da comunidade o melhor caminho para a reconstrução e afirma que o processo participativo contribui até para otimizar os recursos públicos.

Jalowitzki considera o envolvimento da comunidade o melhor caminho para a reconstrução Foto: Ivana Jalowitzki

Ela identificou uma forte conexão social entre os moradores de Shibitachi, que fortaleceu as pessoas para atuar na reestruturação do território. “A conexão social é fundamental para o empoderamento comunitário e das pessoas em uma situação pós-desastre”, conclui. Uma das demandas feitas por eles, por exemplo, foi que a barreira de tsunami instalada para proteger a comunidade não fosse tão alta a ponto de bloquear a passagem dos ventos e a vista do mar.

Especificidades demandam soluções distintas

No Rio Grande do Sul, onde mais de 80% dos municípios foram impactados pelas chuvas, de acordo com dados da Defesa Civil estadual, a necessidade de reconstrução e recuperação é quase total. O governador do Eduardo Leite (PSDB) chegou a falar em “um Plano Marshall” para reerguer o Estado.

Na visão do consultor legislativo do Senado na área de desenvolvimento urbano Victor Carvalho Pinto, “o governo não deveria reconstruir sem antes planejar, mesmo que demore um pouco mais de tempo”. “Mas em geral não é o que acontece, porque a pressão para dar uma resposta imediata é muito grande e se faz obra antes do planejamento. Aí tem todo o ciclo vicioso que a gente já conhece.”

Cidades permanecem submersas dez dias após início das chuvas no Rio Grande do Sul Foto: WILTON JUNIOR/ESTADÃO

Para evitar esse ciclo, especialistas defendem a ideia de recuperar construindo melhor, como diz o slogan internacional. Se a edificação dessas áreas no passado não levou em conta o risco de eventos climáticos extremos na frequência e intensidade com que eles vêm ocorrendo, “(falar em reconstruir) dá a entender que vai se repetir o erro”, diz o professor do Instituto de Pesquisas Hidráulicas da UFRGS Fernando Dornelles.

Dornelles também chama atenção para o fato de que, no Estado, as especificidades de cada local vão demandar soluções diferentes, customizadas. “O que a gente adotar para a região do Vale do Taquari vai ser distinto do que a gente vai adotar para Porto Alegre”, diz.

Para o problema das inundações, há adaptações arquitetônicas e urbanísticas que podem ser feitas como aumentar as áreas verdes para absorver a água e construir “edificações anfíbias”, que são mais elevadas e incorporam a água como parte de seus projetos, explica a professora da FAU-USP Lara Leite Barbosa.

Mas, como ilustra o caso japonês, tão importante do que inovar no planejamento urbano são as medidas de prevenção. É o que defende o professor do Instituto de Pesquisas Hidráulicas da UFRGS Gean Paulo Michel: “As medidas não estruturais são as que geram maiores efeitos, as mais baratas e de maior duração. A ideia é que a temática de risco seja assunto cotidiano e de comum saber entre as pessoas”.

Medidas emergenciais são a primeira resposta para salvar vidas e aliviar o sofrimento nas áreas atingidas por um desastre. Mas logo dão lugar à pergunta: como reconstituir os territórios devastados para que os lugares e as pessoas fiquem menos vulneráveis ao risco?

Na arquitetura e no planejamento urbano, o conceito de resiliência tem a ver com adotar soluções urbanas melhores a partir de um cenário de catástrofe. “É usar a destruição para implementar mudanças, por exemplo para reordenar onde se pode ou não construir e como fazer isso”, explicou Lara Leite Barbosa, professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, ao Estadão.

A expressão “Build back better”(construir de novo melhor, em tradução livre, abreviado pela sigla BBB) tem sido usada desde o início dos anos 2000 por órgãos governamentais e instituições como o Banco Mundial para sintetizar estratégias implementadas em diferentes lugares do mundo na recuperação de territórios e comunidades atingidos por desastres, tornando-os mais resilientes.

Alguns princípios dessa estratégia são melhorar o desenho das estruturas físicas, planejar o uso do solo para reduzir o risco, impulsionar a recuperação econômica e social e dar funções claras e coordenadas aos atores envolvidos.

Um dos países a implementar o BBB é o Japão, que precisou reconstruir grande parte da região de Tohoku, no nordeste da ilha, depois dos eventos de 2011.

Desastre triplo

Em 11 de março de 2011, o Japão enfrentou a maior catástrofe desde as bombas atômicas lançadas sobre Hiroshima e Nagasaki quando foi atingido por um terremoto de magnitude 9,1, por um tsunami de mais de dez metros e pelo desastre nuclear de Fukushima.

A tripla catástrofe provocou cerca de 20 mil mortes e uma enorme destruição de casas, infraestrutura, na agricultura e na indústria no país Foto: Fly_and_Dive - stock.adobe.com

A tripla catástrofe provocou cerca de 20 mil mortes e uma enorme destruição de casas, infraestrutura, na agricultura e na indústria no país. Cidades e vilarejos inteiros foram apagados pela água e outras áreas tiveram que ser evacuadas devido ao risco nuclear, deixando centenas de milhares de desalojados.

Ainda que o país asiático tenha uma realidade socioeconômica bastante diversa da brasileira, o caso da recuperação japonesa pós-2011 tem sido estudado por pesquisadores do mundo todo que atuam nas diferentes áreas de enfrentamento a desastres, e inspira ações em diferentes contextos.

“O Japão é certamente um exemplo no mundo em termos de gestão de risco e recuperação após desastre, trazendo resiliência e adaptação”, destacou Gean Paulo Michel, professor do Instituto de Pesquisas Hidráulicas da UFRGS.

Essa experiência deu origem ao Marco de Sendai para a Redução do Risco de Desastres, que leva o nome de uma das cidades japonesas afetadas e foi ratificado pelos Estados-membros das Nações Unidas em 2015.

Ele estabelece quatro prioridades para aumentar a resiliência e reduzir o risco de desastres dos países: compreender o risco, melhorar a governança para gerenciá-lo, investir na redução do risco e se preparar para fornecer uma resposta e recuperação eficazes quando o desastre ocorrer. O objetivo final delas é o “build back better”.

“Neste marco está escancarada a necessidade de não repetir erros do passado e reduzir as vulnerabilidades das populações no enfrentamento dos próximos desastres”, diz o professor da UFRGS.

5 ensinamentos de uma vila de pescadores no Japão

Quando o desastre de 2011 aconteceu, a arquiteta e pesquisadora capixaba Ivana Jalowitzki morava no Japão e decidiu acompanhar a regeneração urbana de uma área afetada. O trabalho de campo foi realizado junto a uma pequena comunidade de pescadores no vilarejo de Shibitachi e resultou em um doutorado em Regeneração Urbana Pós-Desastres pela Universidade de Tóquio.

Jalowitzki viu o BBB ser aplicado na prática nesse período e alguns pontos chamaram sua atenção. Ainda assim, afirma que o Japão “não é perfeito”. Mais de dez anos depois, muitos lugares ainda estão em recuperação, que foi mais rápida e eficaz nos grandes centros, com locais periféricos vivenciando mais os efeitos do desastre até hoje.

A pesquisadora acompanhou uma pequena comunidade de pescadores no vilarejo de Shibitachi Foto: Ivana Jalowitzki
  • Organização comunitária para saber o que fazer

Jalowitzki destaca que o Japão já tem uma cultura de gestão de risco de desastres, implementada desde a Segunda Guerra Mundial, e que a primeira coisa que a surpreendeu foi o fato de, passado o primeiro impacto da tragédia, as pessoas já saberem como atuar porque havia um plano de contingência da comunidade. “Eu esperava encontrar pessoas muito vitimizadas, mas as vi muito protagonistas”, diz.

  • Importância de mapear os danos

A pesquisadora vê como fundamental o levantamento dos danos causados a construções e objetos urbanos, feito quando a água já baixou e o solo está estável. Em uma caminhada pelo vilarejo, os moradores compartilharam perdas e puderam resgatar a memória e a identidade do local antes do desastre, um passo importante para a reconstrução.

Vilarejo foi atingido pelo tsunami de 2011 Foto: Ivana Jalowitzki

A equipe de pesquisa identificou ter havido um rebaixamento do solo por conta do impacto do terremoto e tsunami e realizou um redesenho topográfico para subsidiar o plano de recuperação com dados atualizados sobre o território.

  • Reconstruir melhor e em lugares mais seguros

Traçar a “linha do tsunami” foi fundamental para delimitar até onde o desastre atingiu e identificar terras mais seguras. “Não adianta a gente voltar para onde o desastre aconteceu. A gente precisa evoluir com a experiência e olhar o território de uma forma mais responsável”, diz.

  • Prioridade para estruturas essenciais

Sistemas principais, como o de mobilidade, foram restaurados com grande rapidez. Em determinadas regiões, o serviço e a infraestrutura de transporte foi restabelecido ao menos parcialmente logo nas primeiras semanas após o desastre. Os reparos continuaram até que as principais estradas e linhas de trem estivessem funcionando para levar socorro e suprimentos com maior facilidade.

  • Processo participativo e conexão social

Jalowitzki considera o envolvimento da comunidade o melhor caminho para a reconstrução e afirma que o processo participativo contribui até para otimizar os recursos públicos.

Jalowitzki considera o envolvimento da comunidade o melhor caminho para a reconstrução Foto: Ivana Jalowitzki

Ela identificou uma forte conexão social entre os moradores de Shibitachi, que fortaleceu as pessoas para atuar na reestruturação do território. “A conexão social é fundamental para o empoderamento comunitário e das pessoas em uma situação pós-desastre”, conclui. Uma das demandas feitas por eles, por exemplo, foi que a barreira de tsunami instalada para proteger a comunidade não fosse tão alta a ponto de bloquear a passagem dos ventos e a vista do mar.

Especificidades demandam soluções distintas

No Rio Grande do Sul, onde mais de 80% dos municípios foram impactados pelas chuvas, de acordo com dados da Defesa Civil estadual, a necessidade de reconstrução e recuperação é quase total. O governador do Eduardo Leite (PSDB) chegou a falar em “um Plano Marshall” para reerguer o Estado.

Na visão do consultor legislativo do Senado na área de desenvolvimento urbano Victor Carvalho Pinto, “o governo não deveria reconstruir sem antes planejar, mesmo que demore um pouco mais de tempo”. “Mas em geral não é o que acontece, porque a pressão para dar uma resposta imediata é muito grande e se faz obra antes do planejamento. Aí tem todo o ciclo vicioso que a gente já conhece.”

Cidades permanecem submersas dez dias após início das chuvas no Rio Grande do Sul Foto: WILTON JUNIOR/ESTADÃO

Para evitar esse ciclo, especialistas defendem a ideia de recuperar construindo melhor, como diz o slogan internacional. Se a edificação dessas áreas no passado não levou em conta o risco de eventos climáticos extremos na frequência e intensidade com que eles vêm ocorrendo, “(falar em reconstruir) dá a entender que vai se repetir o erro”, diz o professor do Instituto de Pesquisas Hidráulicas da UFRGS Fernando Dornelles.

Dornelles também chama atenção para o fato de que, no Estado, as especificidades de cada local vão demandar soluções diferentes, customizadas. “O que a gente adotar para a região do Vale do Taquari vai ser distinto do que a gente vai adotar para Porto Alegre”, diz.

Para o problema das inundações, há adaptações arquitetônicas e urbanísticas que podem ser feitas como aumentar as áreas verdes para absorver a água e construir “edificações anfíbias”, que são mais elevadas e incorporam a água como parte de seus projetos, explica a professora da FAU-USP Lara Leite Barbosa.

Mas, como ilustra o caso japonês, tão importante do que inovar no planejamento urbano são as medidas de prevenção. É o que defende o professor do Instituto de Pesquisas Hidráulicas da UFRGS Gean Paulo Michel: “As medidas não estruturais são as que geram maiores efeitos, as mais baratas e de maior duração. A ideia é que a temática de risco seja assunto cotidiano e de comum saber entre as pessoas”.

Medidas emergenciais são a primeira resposta para salvar vidas e aliviar o sofrimento nas áreas atingidas por um desastre. Mas logo dão lugar à pergunta: como reconstituir os territórios devastados para que os lugares e as pessoas fiquem menos vulneráveis ao risco?

Na arquitetura e no planejamento urbano, o conceito de resiliência tem a ver com adotar soluções urbanas melhores a partir de um cenário de catástrofe. “É usar a destruição para implementar mudanças, por exemplo para reordenar onde se pode ou não construir e como fazer isso”, explicou Lara Leite Barbosa, professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, ao Estadão.

A expressão “Build back better”(construir de novo melhor, em tradução livre, abreviado pela sigla BBB) tem sido usada desde o início dos anos 2000 por órgãos governamentais e instituições como o Banco Mundial para sintetizar estratégias implementadas em diferentes lugares do mundo na recuperação de territórios e comunidades atingidos por desastres, tornando-os mais resilientes.

Alguns princípios dessa estratégia são melhorar o desenho das estruturas físicas, planejar o uso do solo para reduzir o risco, impulsionar a recuperação econômica e social e dar funções claras e coordenadas aos atores envolvidos.

Um dos países a implementar o BBB é o Japão, que precisou reconstruir grande parte da região de Tohoku, no nordeste da ilha, depois dos eventos de 2011.

Desastre triplo

Em 11 de março de 2011, o Japão enfrentou a maior catástrofe desde as bombas atômicas lançadas sobre Hiroshima e Nagasaki quando foi atingido por um terremoto de magnitude 9,1, por um tsunami de mais de dez metros e pelo desastre nuclear de Fukushima.

A tripla catástrofe provocou cerca de 20 mil mortes e uma enorme destruição de casas, infraestrutura, na agricultura e na indústria no país Foto: Fly_and_Dive - stock.adobe.com

A tripla catástrofe provocou cerca de 20 mil mortes e uma enorme destruição de casas, infraestrutura, na agricultura e na indústria no país. Cidades e vilarejos inteiros foram apagados pela água e outras áreas tiveram que ser evacuadas devido ao risco nuclear, deixando centenas de milhares de desalojados.

Ainda que o país asiático tenha uma realidade socioeconômica bastante diversa da brasileira, o caso da recuperação japonesa pós-2011 tem sido estudado por pesquisadores do mundo todo que atuam nas diferentes áreas de enfrentamento a desastres, e inspira ações em diferentes contextos.

“O Japão é certamente um exemplo no mundo em termos de gestão de risco e recuperação após desastre, trazendo resiliência e adaptação”, destacou Gean Paulo Michel, professor do Instituto de Pesquisas Hidráulicas da UFRGS.

Essa experiência deu origem ao Marco de Sendai para a Redução do Risco de Desastres, que leva o nome de uma das cidades japonesas afetadas e foi ratificado pelos Estados-membros das Nações Unidas em 2015.

Ele estabelece quatro prioridades para aumentar a resiliência e reduzir o risco de desastres dos países: compreender o risco, melhorar a governança para gerenciá-lo, investir na redução do risco e se preparar para fornecer uma resposta e recuperação eficazes quando o desastre ocorrer. O objetivo final delas é o “build back better”.

“Neste marco está escancarada a necessidade de não repetir erros do passado e reduzir as vulnerabilidades das populações no enfrentamento dos próximos desastres”, diz o professor da UFRGS.

5 ensinamentos de uma vila de pescadores no Japão

Quando o desastre de 2011 aconteceu, a arquiteta e pesquisadora capixaba Ivana Jalowitzki morava no Japão e decidiu acompanhar a regeneração urbana de uma área afetada. O trabalho de campo foi realizado junto a uma pequena comunidade de pescadores no vilarejo de Shibitachi e resultou em um doutorado em Regeneração Urbana Pós-Desastres pela Universidade de Tóquio.

Jalowitzki viu o BBB ser aplicado na prática nesse período e alguns pontos chamaram sua atenção. Ainda assim, afirma que o Japão “não é perfeito”. Mais de dez anos depois, muitos lugares ainda estão em recuperação, que foi mais rápida e eficaz nos grandes centros, com locais periféricos vivenciando mais os efeitos do desastre até hoje.

A pesquisadora acompanhou uma pequena comunidade de pescadores no vilarejo de Shibitachi Foto: Ivana Jalowitzki
  • Organização comunitária para saber o que fazer

Jalowitzki destaca que o Japão já tem uma cultura de gestão de risco de desastres, implementada desde a Segunda Guerra Mundial, e que a primeira coisa que a surpreendeu foi o fato de, passado o primeiro impacto da tragédia, as pessoas já saberem como atuar porque havia um plano de contingência da comunidade. “Eu esperava encontrar pessoas muito vitimizadas, mas as vi muito protagonistas”, diz.

  • Importância de mapear os danos

A pesquisadora vê como fundamental o levantamento dos danos causados a construções e objetos urbanos, feito quando a água já baixou e o solo está estável. Em uma caminhada pelo vilarejo, os moradores compartilharam perdas e puderam resgatar a memória e a identidade do local antes do desastre, um passo importante para a reconstrução.

Vilarejo foi atingido pelo tsunami de 2011 Foto: Ivana Jalowitzki

A equipe de pesquisa identificou ter havido um rebaixamento do solo por conta do impacto do terremoto e tsunami e realizou um redesenho topográfico para subsidiar o plano de recuperação com dados atualizados sobre o território.

  • Reconstruir melhor e em lugares mais seguros

Traçar a “linha do tsunami” foi fundamental para delimitar até onde o desastre atingiu e identificar terras mais seguras. “Não adianta a gente voltar para onde o desastre aconteceu. A gente precisa evoluir com a experiência e olhar o território de uma forma mais responsável”, diz.

  • Prioridade para estruturas essenciais

Sistemas principais, como o de mobilidade, foram restaurados com grande rapidez. Em determinadas regiões, o serviço e a infraestrutura de transporte foi restabelecido ao menos parcialmente logo nas primeiras semanas após o desastre. Os reparos continuaram até que as principais estradas e linhas de trem estivessem funcionando para levar socorro e suprimentos com maior facilidade.

  • Processo participativo e conexão social

Jalowitzki considera o envolvimento da comunidade o melhor caminho para a reconstrução e afirma que o processo participativo contribui até para otimizar os recursos públicos.

Jalowitzki considera o envolvimento da comunidade o melhor caminho para a reconstrução Foto: Ivana Jalowitzki

Ela identificou uma forte conexão social entre os moradores de Shibitachi, que fortaleceu as pessoas para atuar na reestruturação do território. “A conexão social é fundamental para o empoderamento comunitário e das pessoas em uma situação pós-desastre”, conclui. Uma das demandas feitas por eles, por exemplo, foi que a barreira de tsunami instalada para proteger a comunidade não fosse tão alta a ponto de bloquear a passagem dos ventos e a vista do mar.

Especificidades demandam soluções distintas

No Rio Grande do Sul, onde mais de 80% dos municípios foram impactados pelas chuvas, de acordo com dados da Defesa Civil estadual, a necessidade de reconstrução e recuperação é quase total. O governador do Eduardo Leite (PSDB) chegou a falar em “um Plano Marshall” para reerguer o Estado.

Na visão do consultor legislativo do Senado na área de desenvolvimento urbano Victor Carvalho Pinto, “o governo não deveria reconstruir sem antes planejar, mesmo que demore um pouco mais de tempo”. “Mas em geral não é o que acontece, porque a pressão para dar uma resposta imediata é muito grande e se faz obra antes do planejamento. Aí tem todo o ciclo vicioso que a gente já conhece.”

Cidades permanecem submersas dez dias após início das chuvas no Rio Grande do Sul Foto: WILTON JUNIOR/ESTADÃO

Para evitar esse ciclo, especialistas defendem a ideia de recuperar construindo melhor, como diz o slogan internacional. Se a edificação dessas áreas no passado não levou em conta o risco de eventos climáticos extremos na frequência e intensidade com que eles vêm ocorrendo, “(falar em reconstruir) dá a entender que vai se repetir o erro”, diz o professor do Instituto de Pesquisas Hidráulicas da UFRGS Fernando Dornelles.

Dornelles também chama atenção para o fato de que, no Estado, as especificidades de cada local vão demandar soluções diferentes, customizadas. “O que a gente adotar para a região do Vale do Taquari vai ser distinto do que a gente vai adotar para Porto Alegre”, diz.

Para o problema das inundações, há adaptações arquitetônicas e urbanísticas que podem ser feitas como aumentar as áreas verdes para absorver a água e construir “edificações anfíbias”, que são mais elevadas e incorporam a água como parte de seus projetos, explica a professora da FAU-USP Lara Leite Barbosa.

Mas, como ilustra o caso japonês, tão importante do que inovar no planejamento urbano são as medidas de prevenção. É o que defende o professor do Instituto de Pesquisas Hidráulicas da UFRGS Gean Paulo Michel: “As medidas não estruturais são as que geram maiores efeitos, as mais baratas e de maior duração. A ideia é que a temática de risco seja assunto cotidiano e de comum saber entre as pessoas”.

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