Após dez anos em vigor, a lei que criou o Código Florestal no País ainda patina em um de seus mecanismos mais básicos: o Cadastro Ambiental Rural (CAR). A sobreposição dos registros com Terras Indígenas é um dos resultados da falta de coordenação entre Estados e governo federal, diz relatório inédito da Climate Policy Initiative (CPI) e PUC-RJ. Autodeclaratório, o cadastro permite que proprietários tenham, por exemplo, acesso a financiamento mesmo antes de retificarem informações erradas no sistema. O CAR é um registro público eletrônico, incorporado pela lei que criou o Código, que auxilia Estados e municípios na gestão ambiental e econômica de propriedades rurais. Ao reunir informações de posse e ambientais, permite monitorar e combate ao desmate. É a partir do cadastro que imóveis rurais passam a se adequar e ser fiscalizados quanto ao cumprimento de obrigações previstas pela lei, como manter Áreas de Preservação Permanente (APP) e de Reserva Legal. A ferramenta também cria incentivos para que produtores rurais aproveitem áreas já abertas, sem necessidade de mais desmates. Uma vez que o cadastro é feito, cabe aos Estados analisarem as informações nele contidas e validá-lo. Na prática, aponta o relatório, a falta de coordenação com o governo federal e a demora em fazer avaliações levam a distorções como enormes quantidades de terra declaradas no sistema como privadas invadindo Terras Indígenas (TIs), quilombolas e Unidades de Conservação. “A lei não foi pensada com a (possibilidade) de sobreposição com Terras Indígenas. Quando o poder público se deu conta que o CAR estava sendo usado nessas áreas, os Estados passaram a tentar conter”, diz Cristina Leme Lopes, gerente de Pesquisa, Direito e Governança do Clima da CPI. Conforme o levantamento, há no País mais de 29 milhões de hectares registrados no CAR em sobreposição a áreas protegidas . Dados do Serviço Florestal Brasileiro mostram que são 6.775 cadastros sobrepostos a TIs já homologadas, e estimam de 8 mil a 10 mil cadastros sobrepostos às que ainda aguardam homologação. “Os Estados vêm avançando, mas há um gargalo adicional que se forma na etapa da análise das declarações”, afirma Joana Chivari, diretora associada de Direito e Governança do Clima da CPI. O estudo identificou que só o Pará tem estratégia específica para identificar sobreposições em TIs e fazer cancelamentos ou a suspensão dos cadastros enquanto não forem retificados. A maioria dos Estados, por sua vez, não regulamenta a sobreposição, alguns copiam ou remetem à lei federal. São Paulo, Mato Grosso e Maranhão têm lei específica para isso, diz o levantamento. O sistema federal, SICAR, reúne informações dos cadastros e é usado por parte dos Estados que não desenvolveram seus próprios sistemas. Nele há um filtro para detecção de sobreposições, mas seu uso ainda é opcional. Ou seja, “os Estados podem ‘desligar’ os filtros e escolher não detectar automaticamente quaisquer sobreposições em TIs”, diz a pesquisa. Outra dificuldade para vedar sobreposições, afirmam as pesquisadoras, foi uma portaria do Ministério da Agricultura e Pecuária, em 2021. Nela, a pasta acrescentou o status “suspenso” às possíveis avaliações das autodeclarações, mas manteve o status “pendente” para a análise do CAR em caso de sobreposição. “Isso deveria ser cancelado de imediato”, critica Roberta del Giudice, secretária executiva do Observatório do Código Florestal. Isso leva, diz, a problemas ainda maiores. “Temos pressão e violência em algumas dessas áreas porque a pessoa que criou o CAR tem a expectativa de validar esse cadastro.” A pesquisa faz recomendações aos governos federal e locais. Entre elas, que os Estados regulamentem, “de imediato, o cancelamento e/ou suspensão de inscrições sobrepostas a TIs, independentemente de regulamentação específica pelo poder público federal” e que União e Estados contem “com a participação ativa dos povos indígenas ao regulamentar o procedimento de cancelamento dos cadastros em TIs. “Já perdemos tempo demais, é emergencial a implementação”, diz Roberta. Procurado, o Ministério do Meio Ambiente não respondeu até o fechamento desta reportagem.
Já o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa) afirma que compete aos Estados a análise do CAR e ao Serviço Florestal Brasileiro (SFB) dar suporte e buscar meios para dar celeridade ao processo. Segundo a pasta,“a análise se apresenta como um momento de diálogo entre o órgão e os proprietários/possuidores de forma que com auxílio do ente competente no Estado, o detentor do imóvel consiga se legalizar ambientalmente”.
Em nota, a pasta afirma que por ser base georreferenciadas, e com inscrição simplificada para imóvel até quatro módulos fiscais, já foram identificadas sobreposições que devem ser sanadas durante a etapa de análise, conforme orientação do órgão responsável”.
O ministério também diz que o SFB desenvolveu o módulo da Análise Dinamizada como ferramenta à disposição dos Estados para avançar na conferência do CAR. Essa ferramenta, diz o Mapa, tem mais de cem cruzamentos automatizados com informações geográficas que permitem a verificação dos dados de cobertura do solo e hidrografia declarados e a revisão pelo produtor rural para identificar a regularidade ambiental. “Para os cadastros em consonância com a legislação, a Análise Dinamizada permite o reconhecimento de regularidade ambiental por parte do órgão público, bem como possibilita aos Estados identificar áreas sobrepostas”, completa a nota.