PALMAS - Em 1973, um dos pais da etnobotânica e estudioso da Amazônia, o norte-americano Richard Evans Schultes (1915 - 2001), coletou um exemplar de uma arvoreta, deu-lhe o nome de uma espécie que ele supunha tratar-se na época, e depositou a planta no herbário do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA).
Quase meio século depois, uma pesquisa do Programa de Pesquisa Ecológica de Longa Duração (PELD), com financiamento do CNPq e da Fapeam (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas) permitiu ao ecólogo Layon Oreste Demarchi e aos biólogos Maria Teresa Fernandez Piedade (INPA) e Lucas Cardoso Marinho (UFMA), identificarem aquela árvore como uma nova espécie nativa da Amazônia.
A descoberta se confirmou após coletas de flores e frutos, entre julho de 2017 e março de 2020, e comparações com outras amostras depositadas em vários herbários do Brasil e do exterior. Com o resultado, os pesquisadores corrigiram a classificação anterior, feita por outros pesquisadores, e a nova espécie ganhou o nome de Tovomita cornuta. O resultado está publicado em artigo na revista Acta Botanica Brasilica e ganhou repercussão nesta semana, após a divulgação da Agência Bori.
Pesquisadora da biodiversidade da Amazônia há mais de quatro décadas, Maria Teresa Fernandez Piedade alerta para a importância da descoberta em meio aos impactos humanos na região. “Somo gestores da maior biodiversidade do planeta, mas ainda estamos longe de conhecê-la em sua totalidade. A perda de habitats por ações humanas como incêndios, garimpo e outros vetores, se opõem aos trabalhos de busca e uso da floresta em pé. Focando nessa espécie nova, a Tovomita cornuta, a satisfação científica e ética da descoberta se misturam a um certo amargor ao saber que a nova espécie já ‘nasce’ ameaçada”.
Os pesquisadores a identificaram na capital Manaus e nos municípios vizinhos de Presidente Figueiredo e São Sebastião do Uatumã. “Encontramos poucas coletas, o que nos leva a pensar que a espécie é naturalmente rara”, ressalta ao Estadão, Layon Oreste Demarchi.
O ecólogo liderou a pesquisa durante seu doutorado em Botânica, pelo INPA, no qual investiga as áreas de campinarana (florestas de areias brancas). As campinaranas amazônicas, descreve o pesquisador, são ecossistemas com solos arenosos e extremamente pobres em nutrientes, com presença continua na bacia do Rio Negro e no sul de Roraima. No restante da Amazônia, aparecem de forma fragmentada, como ilhas de vegetação diferenciada e flora diferenciadas.
É o local exclusivo de ocorrência da Tomovita cornuta. A árvore cresce entre 3 e 8 metros de altura, em vegetação densa, com lençol freático raso que forma pequenas “poças” durante a estação chuvosa. A espécie não sobrevive em áreas abertas com luz solar direta, de acordo com o estudo, que lhe atribui o nome por uma característica peculiar.
“As principais características morfológicas que diferenciam a Tovomita cornuta de outras espécies do mesmo gênero, é o seu porte de arvoreta pequena, e a presença de pequenas protuberâncias semelhantes a cornos que a espécie produz em seus frutos, por isso seu nome”, atesta Demarchi.
A descoberta da espécie, na avaliação dos pesquisadores, é um passo a mais na busca do conhecimento e entendimento da biodiversidade brasileira, mas, pela condição de árvore rara e por ter sido encontrada em duas áreas com forte impacto de humanos, está ameaçada.
“Fazendo um paralelo um tanto quanto tortuoso, seria algo como encontrar uma espécie nova para o conhecimento, mas potencialmente ‘natimorta’ para a biodiversidade. São necessárias possíveis ações de preservação dos ambientes para que esse quadro seja revertido”, defende Maria Tereza, entusiasta de estudo dos ambientes e coleta de plantas e animais para identificação das espécies, por meio de pesquisas de longa duração, que incluem trabalho de campo, em herbários e coleções biológicas.
“A espécie se destaca por ser recém descrita e já correr risco de extinção, o que acende uma luz vermelha, e nos faz pensar em quantas outras espécies podem estar sendo extintas mesmo antes de serem identificadas e terem suas potencialidades conhecidas”, complementa Demarchi. O estudo aponta a nova árvore como “criticamente ameaçada", o grau mais elevado de risco de extinção.
De acordo com o estudo, duas localidades com a espécie estão nas Reservas de Desenvolvimento Sustentável (RDS) do Tupé e de Uatumã, mas outras duas estão fora de áreas protegidas. Uma delas é o distrito de Ponta Negra, em Manaus. Área urbana com alto valor de mercado local, segundo a pesquisa, sofreu impacto pela expansão urbana, associada ao desmatamento e perda de habitat.
A outra é o distrito do município de Presidente Figueiredo conhecido como Balbina, impactado pela construção de uma hidrelétrica de mesmo nome, na década de 1980, e resultou em grandes áreas inundadas com a formação do reservatório para a geração de energia. Tido como um dos maiores desastres ambientais da região amazônica, os pesquisadores assinalam que a obra, provavelmente, afetou populações da espécie.
Demarchi também reforça a importância de pesquisas ecológicas de longa duração como a mais indicada para elucidar padrões da biodiversidade, com destaque para o papel fundamental das instituições públicas de pesquisa, no conhecimento da biodiversidade da Amazônia. Ele alerta para o enfraquecimento dessas instituições, como o próprio INPA, ao longo dos últimos anos, tanto pela falta de investimentos quanto pelo esvaziamento do quadro de funcionários.