A água de cacimba, separada da lama após ser retirada de um açude, era a única a que tinham acesso a agricultora Geraldina Dantas e sua família, na comunidade de Granja Girassol, no município de Teixeira, no Sertão da Paraíba. “A gente adoecia bastante. Bastante, mesmo”, relembra. A situação começou a mudar em 2020, quando o Centro de Educação Popular e Formação Social (Cepfs) levou até lá a cisterna de “primeira água”, com capacidade de coletar e armazenar 16 mil litros de água de chuva e torná-la própria ao consumo humano.
“A felicidade foi imensa porque melhorou nossa qualidade de vida. A cisterna fica encostadinha de casa e atende tanto a minha família como aos meus vizinhos que ainda não têm cisterna”, comenta Geraldina.
Três anos depois, ela, que preside a Associação dos Pequenos Agricultores Rurais de Granja Girassol, recebeu outro projeto do Cepfs: a horta orgânica com economia de água. A iniciativa busca garantir a produção de alimentos saudáveis a partir da irrigação por gotejamento nas raízes das plantas. Com essa tecnologia, a agricultora pôde cultivar uma variedade maior de hortaliças, diminuindo as idas ao mercado.
A horta do Cepfs economiza cerca de 80% de água em relação ao cultivo tradicional, uma solução eficaz em um cenário de escassez hídrica e alimentar. No semiárido, a evaporação é até três vezes maior do que a quantidade de chuva que cai na região. São 200 mm a 800 mm ao ano, ou seja, até seis vezes menos do que a média de precipitação nacional.
Para completar, este ano, Geraldina foi beneficiada com uma cisterna de “segunda água”, com 52 mil litros, voltada à agricultura e ao consumo animal. “Agora eu posso ampliar o meu projeto produtivo para ter uma renda extra, vendendo alimentos para fora e doando a quem precisa.”
Convivência com o semiárido
Criado em 1985, o Cepfs se define como uma Organização Social (OS) sem fins lucrativos que busca promover a resiliência da agricultura familiar no semiárido da Paraíba. “Até 1993, trabalhávamos no aspecto formativo, tentando elevar a consciência das pessoas para buscarem uma melhor qualidade de vida numa região tão sofrida”, explica o fundador e coordenador executivo José Dias. “Mas, percebemos que era preciso elementos concretos que comprovassem a elas que é possível mudar a vida. A partir de 1994, após uma grande seca, entraram as tecnologias sociais para a convivência com o semiárido.”
Mais de 80 milhões de litros de água são armazenados por ano para produzir alimentos saudáveis a partir da implantação de tecnologias sociais do Cepfs, incluindo 1.500 cisternas e 471 hortas. A iniciativa atua em dez municípios e 116 comunidades paraibanas, onde mais de 120 mil pessoas já participaram dos processos formativos.
“O projeto de cisternas tem sido aplicado com êxito na região, com resultados positivos na saúde familiar e na diminuição da carga de trabalho da família na busca de água”, avalia a engenheira Joedla Lima e professora da Universidade Federal de Campina Grande (UFCG), onde coordena um grupo de pesquisa sobre sistemas produtivos de agricultores familiares no semiárido paraibano. Lima destaca que as cisternas de placas de concreto adotadas pelo Cepfs são uma alternativa local mais adequada às caixas d’água de plástico, material que, muitas vezes, não resiste ao calor da região.
Além de parceria com o governo federal e da ASA Brasil (Associação do Semiárido Brasileiro), o centro conta com apoios internacionais como da ONG norte-americana Brazil Foundation e da alemã Misereor. Caso vença o 12.º Prêmio Fundação Banco do Brasil de Tecnologia Social, do qual é finalista, o Cepfs poderá atender mais 40 famílias com hortas com economia de água. Este e os demais projetos acumulam reconhecimentos no País e fora dele como o certificado Dryland Champions da Convenção das Organizações das Nações Unidas (ONU) de Combate à Desertificação e prêmios da Agência Nacional das Águas (ANA).
Investimento multiplicado
Outra preocupação do Cepfs é aumentar a autonomia das famílias. Para isso, a entidade incentiva que as comunidades atendidas mantenham um fundo rotativo solidário. A ideia é que os beneficiários destinem, aos poucos e de forma voluntária, o valor correspondente ao apoio financeiro recebido no projeto a um fundo gerido pela própria comunidade. “Isso busca garantir sustentabilidade, seja na manutenção das tecnologias, seja na reaplicação da tecnologia a outras famílias, considerando as particularidades de cada local”, diz Dias.
A estimativa é de que mais de R$ 1 milhão tenha sido captado nos 38 fundos criados até o momento, beneficiando mais de mil famílias. Apenas em 2023, 516 famílias contribuíram com um total de R$180 mil.
Em Granja Girassol, a agricultora Geraldina já viu o fundo solidário ser utilizado para cercar terrenos, telar galinheiros e no plantio de palma, usada como ração animal durante a seca. O dinheiro também é aplicado em reformas de casas e de associações comunitárias, empréstimos para serviços médicos, festas de casamento e o que mais o grupo definir como prioridade para o bem-estar de seus membros.
“Esses gastos geram muito debate entre eles”, afirma Dias, citando o caso de uma mãe que pediu auxílio para colocar um retrato do filho, morto em um acidente de moto, na lápide dele e teve seu desejo atendido após uma longa discussão. “Com o tempo, os grupos passam a ver que a prioridade nasce da necessidade”, reflete. Ele acrescenta que, ao terem seus pedidos agraciados pelo fundo, membros da comunidade desenvolvem um sentimento maior de pertencimento à iniciativa, o que fortalece o projeto.
Uma das lições aprendidas em quase quatro décadas de Cepfs, aliás, é partir do que já existe na vida dos beneficiários, sem querer impor algo de fora. “O aprendizado deles tem que ser potencializado. Isso faz com que se sintam apoiados e faz a iniciativa dar certo.”
Segurança hídrica e alimentar
Apesar do sucesso do empreendimento, Dias admite que o Cepfs está longe de resolver o problema de insegurança hídrica e da fome no semiárido nordestino. “Ofertamos duas cisternas, uma horta, e todo um processo formativo para despertar as famílias para as possibilidades de se viver dignamente do semiárido, convivendo com as adversidades climáticas”, afirma. “Mas isso não significa que a situação está resolvida.”
Em suas formações, feitas concomitantemente à instalação das tecnologias, o projeto busca estimular as famílias a buscarem uma terceira fonte de água, como poços ou uma nova cisterna, cobrando do poder público a garantia da segurança hídrica na comunidade por meio de políticas públicas. “Tradicionalmente, as pessoas têm a ideia de votar e não cobrar. É um processo muito lento conseguir mobilizá-las, mas essa é a nossa missão”, diz.
De 2017 a 2022, a campanha “Abrace o Semiárido” arrecadou R$ 230 mil, permitindo a construção de 102 cisternas nesse intervalo. Para garantir segurança hídrica e alimentar na região, porém, é preciso que as esferas estadual e municipal do poder público, além da iniciativa privada, se somem aos esforços de escalar as soluções. É o que aponta Dias e especialistas na área, como Weruska Brasileiro, professora de Engenharia Sanitária e Ambiental da UEPB (Universidade Estadual da Paraíba).
“Nossas políticas públicas não priorizam ações de desenvolvimento sustentável, em especial no semiárido nordestino, que ainda garante o acesso à água nas comunidades rurais por meio de caminhões-pipa, uma política ultrapassada, ao invés de adotar exemplos bem sucedidos e viáveis como os do Cepfs”, diz Weruska.
Do semiárido para todo o Brasil
Segundo a engenheira, as tecnologias do centro se aplicam não apenas ao semiárido, mas a qualquer ambiente que queira mitigar os efeitos da mudança climática. “Já pensou se nossos legisladores criassem uma lei obrigando todas as edificações acima de três andares a terem suas próprias cisternas? Isso proporcionaria um menor risco de inundações, bem como reduziria o consumo de água tratada, poupando parte dos corpos hídricos utilizados para abastecimento humano.”
Para testar novas tecnologias de convivência com o semiárido, mas que também podem servir como adaptação à mudança climática, o Cepfs mantém uma área experimental no município de Matureia (PB). Entre os projetos testados ali está o de captação de água em estradas, que busca evitar o assoreamento nas rodovias rurais através do armazenamento, em cisternas, da água que escorre de terrenos inclinados até as vias.
Apresentado pelo centro em um artigo científico, o experimento inspirou pesquisadores do Paraná durante um simpósio em Juazeiro (BA). “Eles não sofrem com déficit de água como nós, mas essa solução chamou atenção como forma de evitar danos causados pelas enchentes que atingem as estradas por lá”, conta Dias.