Embora o avanço do crime organizado na Amazônia Legal passe principalmente pela atuação de organizações brasileiras, como o Primeiro Comando da Capital (PCC) e o Comando Vermelho (CV), a presença de grupos estrangeiros na região também chama a atenção de autoridades e de especialistas. De pelo menos 22 facções identificadas por lá, cinco surgiram em países vizinhos, segundo relatório divulgado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública na semana passada.
A maioria vem da Colômbia, com avanço por cidades próximas à fronteira do Amazonas, mas também há um grupo venezuelano, o Trem de Aragua, que tem se expandido por cidades de Roraima. Segundo pesquisadores, essas facções entram no Brasil principalmente por interesses financeiros ligados ao tráfico de cocaína. Depois de um tempo, acabam envolvidas com outros tipos de atividade, como venda de armas.
“Esses grupos (estrangeiros) não têm uma onda de rivalidade com C ou com B. A onda deles é comercializar a droga que entra no Brasil”, afirma Aiala Colares Couto, membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e professor da Universidade do Estado do Pará (UEPA).
Os grupos de países vizinhos, diz o pesquisador, usam a Bacia Amazônia para transportar drogas há pelo menos três décadas, mas a presença dessas organizações em território brasileiro, continua, se ampliou na medida em que a região passou a ser ainda mais estratégica para o mercado de cocaína.
Conforme o Relatório Mundial sobre Drogas 2023, publicado em agosto pelo Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC, na sigla em inglês), houve crescimento de 35% das plantações de coca nos principais países onde há cultivo (Colômbia, Peru e Bolívia) em 2021.
O documento apontou ainda que o narcotráfico impulsiona a ocorrência de crimes ambientais na Amazônia Legal, com a ocupação irregular de terras, extração de madeira e garimpo ilegal. A situação, alertam pesquisadores, tem relação direta com o avanço de facções por cidades da região.
Quais são as facções estrangeiras que atuam na Amazônia Legal?
- Frente Carolina Ramirez (Ex-Farc) - com atuação no Amazonas (principalmente no município de Japurá);
- Frente Acácio Medina (Ex-Farc) - com atuação no Amazonas (principalmente no município de São Gabriel da Cachoeira);
- Estado Maior Central (EMC) - com atuação no Amazonas (principalmente no município de Japurá);
- Exército de Libertação Nacional (ELN) - com atuação no Amazonas (principalmente no município de São Gabriel da Cachoeira);
- Trem de Aragua - com atuação em Roraima (sem município específico).
“O Brasil é uma área de trânsito e um mercado consumidor importante, que só fica atrás dos Estados Unidos. Isso acaba orientando o esquema de organização deles”, diz Couto. A fronteira entre Paraguai e Mato Grosso do Sul, hoje dominada pelo PCC, é considerada a principal rota de cocaína do País, mas a Amazônia também é uma importante área de disputa.
Conforme o relatório do Fórum, dos 772 municípios da Amazônia Legal (o que inclui todos os sete Estados do Norte, além de Mato Grosso e parte do Maranhão), há presença de facções em ao menos 178 deles. Vivem nessas cidades mais da metade dos cerca de 26 milhões de habitantes da região (57,9%).
Em paralelo, ao menos 80 municípios estão em situação de disputa territorial entre duas ou mais organizações criminosas. O cenário afeta quase um terço (31,12%) da população da Amazônia, o equivalente a quase 9 milhões de pessoas.
Hoje, mesmo com a presença de organizações estrangeiras entre as ao menos 22 facções em atuação na Amazônia Legal – como as frentes Carolina Ramirez e Acácio Medina, dissidências das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC) –, só o Comando Vermelho e o PCC estão em todos os Estados.
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Qual é a principal rota de cocaína na região da Amazônia Legal?
O Amazonas é considerado a principal porta de entrada da droga pela Amazônia, enquanto Pará e Amapá são vistos como locais de passagem, seja para o envio da droga a outros Estados, seja para a exportação para África, Ásia e Europa. Nesses destinos, um quilo de cocaína pode ser comprado por cerca de US$ 50 mil (quase R$ 250 mil), dez vezes mais do que em países vizinhos do Brasil.
Couto destaca que, interessado em fazer parte dessa dinâmica, o grupo venezuelano Trem de Aragua começou a dialogar com integrantes do PCC entre 2018 e 2019. Embora o Comando Vermelho seja considerado hegemônico no Norte, a organização criminosa paulista é vista por pesquisadores como a principal força de Roraima.
“Com o massacre de 2016 e 2017, o PCC conseguiu ganhar o presídio daqui e conseguiu ganhar Roraima”, afirma Rodrigo Chagas, professor da Universidade Federal de Roraima (UFRR) e pesquisador sênior do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. “Nas outras regiões, principalmente Amazonas e Pará, que são gigantescos, predomina o Comando Vermelho.”
Segundo ele, normalmente a presença na Amazônia de organizações criminosas de países vizinhos não envolve domínio de território. “É uma relação muito mais de chegar até a fronteira”, diz ele, que relembra que os grupos colombianos se reconfiguraram após o tratado de paz entre a Colômbia e as FARC, em 2016.
“É visível como o PCC traz uma dimensão ideológica para dominar o território. O Trem de Aragua tem um discurso muito forte também. Ao que parece, os grupos da Colômbia são bem mais utilitários, precisam de um canal para escoar a droga, sem sse importar para quem”, descreve o pesquisador.
Como surgiu o Trem de Aragua, facção venezuelana presente em Roraima?
Já a movimentação do Trem de Aragua chama a atenção de pesquisadores. “É uma facção relativamente nova – nasce em 2015, no Estado do Aragua – e toma por base uma prisão da Venezuela chamada Tocorón. Essa prisão virou uma coisa meio Pablo Escobar (em referência ao megatraficante colombiano, que morreu em 1993) com zoológico, discoteca e até piscina”, afirma Chagas.
Há dois meses, o governo venezuelano fez uma grande operação no presídio para recuperar o controle do local, mas o grupo segue forte em outros espaços.
Rodrigo Chagas, pesquisador
“A grande questão dessa facção é que ela acabou tomando conta de tudo que é atividade na Venezuela. Até de escolinha de beisebol, que é o esporte popular por lá, eles passaram a cobrar taxas. É uma coisa bem baixa, de dominação territorial”, afirma Chagas. Como paralelo no Brasil, ele cita a atuação das milícias no Rio de Janeiro.
Chagas destaca que muito do crescimento do grupo se deu por deterioração do Estado venezuelano, sob a ditadura de Nicolás Maduro. Como mostrou o Estadão, a escolha da Venezuela a favor da anexação de Essequibo, área rica em petróleo que corresponde a 70% do território da Guiana, ainda colocou um fator a mais nisso tudo: elevou a crise e o temor de um conflito militar entre as duas nações.
“Quando o Estado venezuelano não dá conta de uma série de processos, esses caras vão tomando o papel do Estado. Começam a regular a vida do território”, diz o pesquisador. “A falência econômica e política da Venezuela tem influência grande no crescimento tão rápido dessas facções.”
Outra particularidade, destaca o pesquisador, é que o grupo explora a dinâmica migratória característica da região. “Eles intervém para atuar como coiotes, que levam de um lugar para outro prometendo coisas, no tráfico de pessoas, e coagem venezuelanos a levar droga para eles”, diz Chagas.
O Trem de Aragua, segundo o pesquisador, costuma ter modus operandi violento, até com episódios de esquartejamento de criminosos rivais. Ao mesmo tempo, destaca que a atuação de brasileiros também é forte em Roraima, por isso é precipitado dizer que há algum tipo de domínio do grupo venezuelano por lá.
“Tem uma xenofobia grande em relação a venezuelanos em Roraima e uma tendência grande de jogar a culpa de toda a criminalidade atual na região, que cresceu muito, nas costas dos venezuelanos”, alerta Chagas.
Como mostrou o Estadão, a taxa de mortes violentas intencionais no Brasil no ano passado foi de 23,3 mortes para cada 100 mil habitantes, segundo dados reunidos pelo Fórum, em parceria com o Instituto Mãe Crioula. Nas cidades que compõem a Amazônia Legal, foi de 33,8, índice 45% superior à média nacional.
Governo diz que pretende investir R$ 2 bi em segurança da região
O Ministério da Justiça e Segurança Pública afirmou, em nota, que “tem ciência dos números e lamenta o crescimento do crime organizado nos últimos anos”.
Para enfrentar esse cenário, o ministério destaca a criação do Plano Amazônia, Segurança e Soberania (Amas), que pretende investir um total de R$ 2 bilhões na região, provenientes do Fundo Nacional de Segurança Pública e do Fundo Amazônia.
“Entre as estruturas previstas com parte do montante, estão 34 novas bases integradas (terrestres e fluviais) de segurança (PF, PRF e Forças Estaduais), implementação da Companhia de Operações Ambientais da Força Nacional de Segurança Pública e estruturação e aparelhamento do Centro de Cooperação Policial Internacional da Polícia Federal”, diz.
Conforme o ministério, a ideia, com a iniciativa, é ter maior presença física da força policial e garantir maior repressão aos crimes na região. “A Amazônia Legal ocupa 59% do território brasileiro e faz fronteira com sete países, o que torna a região singular, com desafios que envolvem logística e a soberania nacional do Brasil”, acrescenta a pasta.