Em uma viagem à Amazônia em 2008, o ornitólogo americano Philip Stouffer e um grupo de cientistas que o acompanhava notaram que algumas aves comuns nos anos 1990, quando esteve na floresta para pesquisar pela primeira vez, estavam mais difíceis de encontrar. O desaparecimento deu início a uma pesquisa em que concluíram que as espécies de uma região intocada da floresta estavam ameaçadas. Mais tarde, decidiram ir além para observar as condições de vida destas aves nos últimos 40 anos. Perceberam que elas estavam menores e com asas mais longas do que antes.
Os resultados da pesquisa indicam um efeito das mudanças climáticas nos pássaros da região mesmo em uma área distante de zonas urbanas, industriais e até mesmo de plantações. As 77 espécies analisadas tiveram alguma mudança, seja com a diminuição de tamanho e de peso ou na formação de asas mais longas. "Observamos que mesmo em áreas da floresta não tocadas por humanos os efeitos das mudanças climáticas estão presentes", disse Stouffer ao Estadão.
Mudanças na forma de animais, sejam aves ou espécies como répteis e roedores, já haviam sido identificadas anteriormente, mas a pesquisa de Stouffer evidencia o efeito do aquecimento global em todo o planeta, mesmo nos lugares mais isolados. "As aves que analisamos não saem da floresta, não são migratórias. Ou seja, ao contrário das anteriores, que podiam ter outros fatores, os resultados desta vez mostram claramente que os efeitos estão relacionados com a floresta", explicou.
A relação do tamanho e do peso das espécies e das suas asas com a mudança climática está no fato de que aves menores podem controlar a temperatura corporal com mais facilidade. Essa é uma regra geral: corpos menores dissipam calor mais rápido. Já as asas estão ligadas à energia que essas aves gastam durante o voo. Quanto maior as asas, mais facilidade de "planar" essas aves possuem, levando a uma redução de energia.
Segundo Stouffer, isso pode estar ligado a uma menor disponibilidade de alimentos e água em um clima que se tornou mais seco nas últimas décadas. Durante o período do estudo, a temperatura média da Amazônia aumentou 1,65ºC e a precipitação de chuvas diminuiu 15% na época de estiagem. Conforme isso foi acontecendo, as aves mudaram de tamanho e peso para regularem a temperatura mais facilmente e precisarem de menos alimentos e água, já que a energia que elas gastam diminuiu.
Entretanto, a mudança na forma não é o único efeito observável do aquecimento global em animais no território brasileiro. Pelo contrário, hoje essas alterações são vistas como uma resposta mais avançada das espécies às transformações do clima. As primeiras costumam ser mudanças comportamentais e de população, como migração, redução ou expansão dos seus hábitats. Nestes dois casos, a Amazônia e o Brasil, como um todo, têm outros exemplos além das aves.
Mudança populacional
A rápida elevação da temperatura do planeta afeta diversas espécies de múltiplas formas, mas são os ectotérmicos, como répteis, anfíbios e insetos, os mais impactados. Caracterizados por regularem a temperatura corporal conforme a temperatura ambiente, essas espécies têm pouco tempo para se adaptar à mudança do clima do planeta e sofrem graves impactos na sua população, seja com expansão ou a redução do número de indivíduos.
Uma das espécies que sofrem com a redução populacional é o lagarto Tropidurus torquatus, popularmente conhecido como calango, encontrado em regiões do Cerrado. Presente principalmente em áreas de bordas de floresta, mais úmidas, a população deste réptil tem caído nos últimos 12 anos diante da dificuldade adaptativa ao clima mais seco gerado pelas mudanças climáticas.
As características deste lagarto são semelhantes às de outra espécie, chamada Kentropyx calcarata e encontrada na Amazônia e no Cerrado. Uma pesquisa da especialista em anfíbios e répteis Fernanda Werneck, do Instituto Nacional de Pesquisa da Amazônia (Inpa), indica que esta tem um risco alto de ser extinta no futuro por ser adaptada ao clima de floresta fechada.
Em contrapartida, outra espécie de lagarto que ocupa a região da Amazônia, chamado Cnemidophorus lemniscatus, tem se expandido. Mais acostumado com o clima seco e de áreas mais abertas, esse lagarto se dispersa por mais áreas. "Apesar disso parecer positivo, causa um impacto em outras espécies e desequilibra o ecossistema", diz Fernanda.
Essas alterações mostram os processos de adaptação de ambas as espécies. Enquanto o Cnemidophorus lemniscatus se sente cada vez mais à vontade com o clima de áreas que estão mais quentes, por ser uma espécie acostumada a essa temperatura, o Kentropyx calcarata passa a ficar mais na toca, literalmente, para fugir de uma condição que ele não está adaptado. Isso altera, por exemplo, o ciclo de alimentação destes animais.
Do outro lado do Brasil, no litoral do Sudeste, um outro animal sofre processo semelhante para se adaptar a um oceano que passou a ser 0,9ºC mais quente do que há 37 anos. Uma pesquisa feita pela bióloga Tânia Márcia Costa, professora do Instituto de Biociências da Universidade Estadual Paulista (Unesp), identificou uma espécie de caranguejo chama-maré, o Leptuca cumulanta, que tem se expandido para o Sul, onde as temperaturas são mais frias.
Historicamente, este caranguejo tinha como limite de distribuição no litoral brasileiro o Estado do Rio de Janeiro. No entanto, desde 2010 ele é encontrado no litoral de São Paulo e, em apenas sete anos, a sua presença cresceu 20 vezes na nova área. O caranguejo passou a coexistir com outras espécies nativas e deu origem a novas interações, parte ainda desconhecida pelas pesquisadoras.
Entre as possibilidades, estão efeitos sobre o período reprodutivo ou a alteração da maturidade sexual – que faz com que os animais fiquem "adultos" mais rápido ou mais devagar. Mudanças sobre esses períodos de maturação são identificados, inclusive, em espécies de insetos como libélulas, borboletas, formigas e abelhas e também estão associadas à temperatura do planeta.
A princípio, as mudanças parecem inofensivas, mas pesquisadores afirmam que a velocidade em que isso ocorre dificulta o processo de adaptação das espécies e causa desequilíbrio no ecossistema. "Quando você altera o período reprodutivo, por exemplo, isso tem um efeito sobre as aves que migram para um determinado lugar para se alimentar de um 'boom' de insetos. Elas podem chegar lá e esse 'boom' não existir mais", afirmou o biólogo Hilton Japyassu, pesquisador e docente da Universidade Federal da Bahia (UFBA).
Variedade
Quando as mudanças ocorrem, as espécies iniciam uma corrida pela adaptação às novas condições. Esse processo é natural e observado há milhares e milhões de anos, mas, com a elevação rápida das temperaturas, a adaptação também precisa ser acelerada. Segundo os pesquisadores, quem sai na frente nesta competição são as espécies que possuem uma maior variedade genética entre suas populações naturais – ou seja, aquelas que em outras épocas conseguiram se adaptar às mudanças climáticas.
Mas, para ter seleção natural e evolução rápida, é preciso haver grandes populações. E o que tem sido observado é o declínio rápido do tamanho populacional de diversas espécies, além da fragmentação de hábitat por conta dos processos de desmate e urbanização. Com isso, animais da mesma espécie ficam separados, não interagem entre si e diminuem sua variação interna.
Segundo Fernanda Werneck, teorias recentes da biologia e dados obtidos por seu grupo de pesquisas indicam a existência de genes que sugerem que espécies passaram por uma adaptação climática em outros momentos. Isso significa que alguns indivíduos desta espécie são considerados climaticamente adaptados e que, na constante interação entre si, esses genes podem se espalhar e ser a solução para facilitar a sobrevivência em novas condições. "Mas se uma população reduz ou colapsa rapidamente, podemos perder justamente a variabilidade genética adaptativa importante para a sobrevivência e resgate evolutivo, dificultando a evolução e escape da extinção em cenários futuros", afirma ela.
Um exemplo de espécie com uma população pequena e com baixa variedade entre si são os macacos-prego-do-peito-amarelo. Historicamente, esses macacos ocuparam uma área de Mata Atlântica entre Sergipe e o sul da Bahia, mas com o desmatamento deste bioma eles passaram a ocupar uma área pequena e isolada do manguezal, mais próxima ao mar.
Nessa migração, os animais acabaram se adaptando ao que tinham a dispor: longe da água doce, passaram a se hidratar com a água dos cocos que encontram nas áreas próximas aos manguezais. "Eles aprenderam a quebrar cocos, de vários modos, para se hidratarem já que a água encontrada nos mangues é salobra", conta Japyassu, da UFBA.
Apesar da adaptação, essa espécie passou a ter uma população pequena e em áreas isoladas. A maior colônia hoje tem 250 indivíduos. Pesquisas indicam que até 2030 ela deve entrar em pré-extinção porque não há uma variabilidade fenotípica entre si.
"O que acontece é que em escalas de tempos naturais, que significam milhares de anos, esses processos de evolução acontecem de maneira equilibrada. Mas quando ocorre em décadas, temos um impacto numa escala de tempo sem precedentes, com um desequilíbrio enorme, extinção de muitas espécies e consequências que ainda não sabemos", explica Fernanda.
Humanos
Todo o desequilíbrio gerado pela mudança rápida de temperatura tem consequências principalmente para os animais, mas os pesquisadores afirmam que também seremos afetados de diferentes e desconhecidas formas. Aves, répteis, crustáceos, mamíferos, insetos e outras milhares de espécies da fauna e da flora constituem um equilíbrio em processos como polinização, dispersão de sementes, controle de pragas e diversos outros.
Para o americano Philip Stouffer, o que as pesquisas identificaram nos últimos anos é ínfimo para observar todos os processos que o planeta atravessa. Na Amazônia, por exemplo, não se sabe se as espécies de aves que perderam peso estão com menos disponibilidade de comida porque passaram a disputar o espaço com aves que antes voavam mais alto, mas que agora precisam descer para evitar temperaturas mais quentes. Ele chama a atenção, no entanto, para o fato de que já não é mais possível escapar às mudanças. "Esse exemplo que a gente viu no coração da Amazônia indica que qualquer coisa que você olha pela janela está respondendo às mudanças climáticas", destaca.
Segundo Fernanda Werneck, a saída pode estar na preservação ampla e no encontro destes indivíduos geneticamente adaptados. Ao traçar estratégias de conservação destes dentro da área de distribuição de espécies e de populações mais vulneráveis, a interação entre os animais possibilita o resgate evolutivo e pode facilitar a adaptação. Desde que o processo natural de adaptação tenha, claro, tempo para acontecer.