SÃO PAULO - Neste mês de agosto, a Amazônia teve uma quantidade de queimadas bem acima da média histórica para o mês. Foram 30.901 focos de incêndio ao longo do mês, ante uma média de 25.853 para o período entre 1998 e 2018. O número é quase o triplo do registrado em agosto do ano passado, que teve 10.421 focos (alta de 196%), e é também o mais alto desde agosto de 2010 - ano de seca histórica severa, que teve 45.018 focos. Setembro começou quente, com 980 focos no primeiro dia.
Análises feitas pela Nasa e pela Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam) indicam que os incêndios estão correlacionados com a alta de desmatamento no ano. Após o corte, pilhas de madeira são feitas para limpar a área. É floresta já derrubada, mas uma boa parte desse fogo acaba escapando e atinge a mata que permanece em pé. Unidades de conservação e terras indígenas estão entre as florestas atingidas pelo fogo.
A extensão desse impacto só deve ser conhecida quando a fumaça baixar e for possível ver melhor como a vegetação foi afetada, mas estudos sobre queimadas anteriores e experimentos controlados mostram que os efeitos podem ser devastadores.
“Ouvi algumas pessoas argumentando nos últimos dias que a floresta regenera, então não haveria problema. Mas a verdade é que a floresta não se regenera dessa maneira”, disse ao Estado a bióloga Erika Berenguer, pesquisadora da Universidade de Oxford, que estuda o impacto do fogo na biodiversidade e nos estoques de carbono na Amazônia. “A Amazônia não é um ecossistema acostumado com fogo periódicos. É úmida, não queima de modo natural com frequência, então, não evoluiu com incêndios, como ocorreu com o Cerrado, por exemplo. A floresta não tem um mecanismo de recuperação rápida, tanto em termos de biodiversidade quanto em estoque de carbono.”
Para queimar, explica a pesquisadora, em geral alguém tem de por fogo na floresta.
Segundo Jos Barlow, professor de Ciência da Conservação da Universidade de Lancaster, e Alexander C. Lees, professor de Biologia da Conservação na Universidade Metropolitana de Manchester, ambos com mais de uma década de pesquisas na Amazônia, em florestas tropicais não perturbadas, o fogo vai consumindo a floresta por baixo.
“As chamas avançam apenas de 200 a 300 metros por dia e raramente ultrapassam os 30 cm de altura, queimando apenas folhas secas e madeira caída”, explicam em artigo publicado nesta semana no site Ambiental Media, de divulgação científica. “Mesmo um incêndio de baixa intensidade pode matar a metade das árvores. Enquanto árvores pequenas são mais suscetíveis em um primeiro momento, as maiores geralmente morrem nos anos seguintes”, escrevem.
Erika afirma que esse processo de morte das árvores pode durar pelo menos cinco anos depois do fogo. “As que nascem depois são fininhas, vão levar centenas de anos para chegar ao tamanho daquelas que morreram. Além disso, vão vir primeiro as espécies pioneiras, que também tem menos capacidade de armazenar carbono”, diz.
“Mesmo passados 30 anos após o fogo, essa nova floresta ainda armazena 25% menos carbono do que uma não queimada”, explica ela, citando estudo publicado no ano passado na revista Philosophical Transactions B, que quantificou no longo prazo biomassa, mortalidade e produtividade de madeira de locais queimados.
Erika e Barlow estão entre os autores do estudo, que contou com 21 pesquisadores especialistas na Amazônia. “Incêndios em florestas tropicais podem reduzir significativamente a biomassa por décadas ao aumentar a taxa de mortalidade de todas as árvores”, escreve o grupo.
“Uma floresta sem distúrbios tem árvores gigantescas. Mas quando elas morrem, surgem clareiras, árvores finas, muito cipó. Vai virando um queijo suíço. Em vez da sombra constante, começa a entrar muito sol e vento dentro da floresta. A temperatura e a umidade mudam. Muitas espécies da fauna e da flora acabam não encontrando mais condições de ficar nesses locais”, complementa Erika. “Nesse cenário, a floresta fica mais seca, mais inflamável e, desse modo, mais vulnerável a novos eventos de fogo.”
Aí o impacto é ainda mais devastador.
“Quando as florestas sofrem incêndios recorrentes, as árvores mortas anteriormente viram combustível para uma verdadeira fogueira: uma área cheia de lenha seca sob um dossel aberto. A altura das chamas nessas florestas geralmente atinge as copas das árvores, causando a morte de quase todos os indivíduos remanescentes”, escrevem Barlow e Lees.
Floresta perturbada
Florestas que já sofreram outras perturbações, como a retirada seletiva de madeira ou os impactos de estarem no entorno de grandes desmatamentos também são mais vulneráveis ao fogo. Acredita-se que essas sejam algumas das que podem estar sendo afetadas agora pelos incêndios de agosto que escapam da “limpeza” feita nas áreas que foram desmatadas.
“Além do desmatamento, o fogo vai comendo a floresta pelas bordas cada vez mais”, afirma a bióloga.
As áreas verdes que restam no chamado arco do desmatamento - região que concentra os maiores índices de desmatamento da Amazônia, do sudeste do Pará em direção oeste, passando por Mato Grosso, Rondônia e Acre - são, desse modo, bastante sensíveis, mas extremamente importantes para a conservação da biodiversidade que resta ali.
“Este ano não está extremamente seco, então as florestas com grandes árvores, bem sombreadas, não devem estar queimando. Provavelmente o fogo deva estar atingindo aquelas mais próximas ao desmatamento, na fronteira entre agricultura e pecuária”, concordou em entrevista ao Estado o pesquisador Paulo Brando, do Centro de Pesquisa Woods Hole e do Ipam.
É o chamado efeito de borda, em que a porção da floresta exposta por estar “descoberta” acaba ficando mais seca e mais inflamável. “E aí o fogo tem efeito catastrófico”, diz Brando.
Ele observou isso em um experimento de longo prazo feito na fazenda Tanguro, do grupo Amaggi, em Mato Grosso. Lá, trechos de floresta vêm sendo queimados de modo controlado desde 2004 a fim de entender quanto a vegetação é resiliente ao fogo.
“Quando fizemos a primeira queima, em um ano não muito seco e em floresta preservada, três anos depois ela havia se recuperado muito bem. Depois, queimamos de novo e já notamos que perto da borda a recuperação não era tão boa. Nove anos depois e ainda há mortalidade de árvores e entrada de gramíneas, que dificultam a recuperação”, conta.
Nos anos que houve secas severas, como 2005 e 2010, houve um empobrecimento florestal profundo. Segundo Brando, mais de 50% das árvores morreram na fase de colapso. Na borda foi quase 100%. Uma tempestade de vento forte que ocorreu um tempo depois chegou a derrubar 2 mil árvores em meia hora de ventania.
Brando é um dos autores da nota técnica do Ipam que apontou para correlação das queimadas atuais com o desmatamento. Segundo a análise, as cidades com mais queimadas até 14 de agosto eram também as que mais tinham desmatado entre agosto do ano passado e julho deste ano.
“O período seco da Amazônia sempre tem mais queimadas (como de limpeza de pasto). Mas a diferença deste ano é que tem mais fogo de desmatamento em algumas regiões específicas. Imagine que o desmatamento pode ter subido 15% neste ano. Estamos falando de cerca de 1.000 km² a mais do que no ano passado. Não quer dizer que toda essa área queimou, mas boa parte pode ter queimado”, estima. “É incêndio de floresta que foi derrubada, que escapa e pega o que está em pé a partir das bordas secas. Ainda é cedo para dizer tudo o que pode estar sendo atingido, se está pegando floresta primária. E ainda temos mais algumas semanas de fogo por vir”, afirma o pesquisador.
Historicamente, setembro é o mês com mais queimadas na região.