Branca. Filha de um médico com uma professora. Estudei a maior parte de minha vida em colégios e universidade particulares. Aulas de música, línguas, esportes. Nunca precisei trabalhar, pois a prioridade eram os estudos e os livros. Para mim e para os meus dois irmãos. Nunca faltou nada em casa. Família estruturada, infância e adolescências sem perrengues. Saneamento básico, rua asfaltada, geladeira farta, roupas novas, material escolar sempre em dia. Uma privilegiada? Sim, muito. Só não fui mais porque nasci mulher e passei pelo o que a maioria já enfrentou. Vítima de assédio no trabalho, passadas de mão na rua e rotulada das mais diversas maneiras. Mas, cresci numa bolha, é verdade. Uma bolha ilusória que nos faz crer que dar certo na vida é estudar, acumular dinheiro e ter bens. Na escola onde estudei, poucos negros, mas eu só fui me dar conta de como isso era uma questão a ser combatida bem mais tarde. Diversidade era coisa rara.
Quando comecei a trabalhar, com um salário mísero, se faltava algum dinheiro para pagar as contas meus pais mandavam o complemento. Uma privilegiada? Sim, eu sou, agradeço e não renego, mas também só fui dar conta disso mais tarde, assim como me dei conta do machismo e da misoginia que nos cercam o tempo todo e que também era, digamos, normal.
Ao pisar na Amazônia pela primeira vez, em novembro de 2015, me dei conta da minha ignorância e mediocridade em relação ao país. Aos 35 anos, foi duro o choque. Mas, foi só então que passei a entender que é muito mais difícil para quem nasce na favela do que para mim, prosperar. Não é impossível, mas a meritocracia vale mais - e talvez somente - entre iguais. E eu não sou igual a quem vive num ambiente hostil, com a comida que falta, a roupa que falta, a escola que falta, a saúde que nunca chegou e nem chegará porque sempre continuarão a ser invisíveis aos governos e, principalmente, à sociedade. E isso não é uma questão de escolha. É contexto histórico. Eu afirmo por mim que mesmo com todas as oportunidades que tive e mesmo cercada de valores éticos e morais sólidos, por alguns momentos foi tênue a linha que separou o que a sociedade considera o que é dar certo de o que é dar errado.
Indígenas, quilombolas, ribeirinhos. Deles eu extraí o significado de luta, resistência, dignidade e generosidade e obtive ensinamentos que nenhuma apostila voltada para o vestibular foi capaz de sequer chegar perto. Em uma entrevista com uma mulher quilombola, no Pará, fiz a pergunta mais óbvia que uma jornalista pode fazer: O que é ser uma mulher negra no Brasil? E ela me respondeu que era ser abordada no supermercado por uma mulher branca perguntando qual o preço da faxina. Foi uma porrada no meu peito. Preconceito, racismo. Eu, branca, não sei o que é passar por isso só por causa da cor da minha pele. Mas Casa Grande & Senzala e Gilberto Freyre têm muito a dizer sobre isso. É história. É contexto.
Depois de anos rodando por esse Brasil, sinto que continuo a ser privilegiada, agora não apenas por tudo acima que já citei, mas sim por entender que o abismo social separa mundos e pessoas, valores e compreensões. Isso não me faz melhor do que ninguém, mas me faz melhor do que eu mesma já fui um dia, pois compreender o lugar em que ocupo nesse país desigual e desumano onde o rico cada vez fica mais rico mudou tudo no meu pequeno, mas mais do que nunca, vasto mundo.
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Eu na Floresta
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