Lino João de Oliveira Neves, professor do Departamento de Antropologia da Universidade Federal do Amazonas e doutor em Sociologia pela Universidade de Coimbra, acompanha de perto há muitos anos os indígenas brasileiros. Tem dezenas de trabalhos sobre o tema e conhece de perto a cultura deles. Nesta entrevista ao Estadão, ele explica como é feito o sistema de queimadas para preparar o roçado, mas reforça que essa prática não tem a ver com os incêndios que estão ocorrendo na Amazônia e Pantanal.
Existe uma cultura de plantio entre os indígenas que consiste em colocar fogo na mata?
A queimada é uma técnica tradicional indígena para a limpeza do terreno para fazer o roçado, geralmente para plantar mandioca, abóbora, mamão, banana e outras frutas. Eles fazem em um pequeno pedaço de terreno de cultivo, que depende do tamanho da aldeia, mas é no máximo um pouco menor que um campo de futebol. Esse terreno é usado por 5 ou 6 anos e depois é abandonado, para a terra se recuperar.
Como eles fazem para não provocar incêndios em grandes proporções na floresta?
Como provocam as queimadas em espaços pequenos, as técnicas de controle de fogo funcionam muito bem. Além de manejarem os galhos secos de árvores a serem queimados, afastando-os da floresta viva, eles apagam o fogo não desejado com galhos de árvores e jogando terra, evitando assim que o fogo se espalhe. Até por isso, nunca foi registrado, por qualquer monitoramento, do Inpe, por exemplo, queimadas de grandes proporções no interior das terras indígenas. Então essa queimada é uma técnica regular usada tradicionalmente por indígenas e caboclos que adotam as mesmas técnicas para preparo do terreno para cultivo em pequenas dimensões de terreno, com procedimentos muito controlados. Não existe registro que tenha ocasionado incêndios em grandes proporções.
Qual o sentido de colocar fogo numa área antes do plantio?
O fogo consome as folhas e galhos secos das árvores, deixando a área “limpa” para o plantio. E as cinzas da queimada servem para equilibrar o PH do solo, para que as espécies plantadas possam nascer. Então eles fazem uma derrubada da vegetação com três meses de antecedência, de abril para maio, quando começa a parar a chuva. O fogo então queima esse mato. E para fazer o roçado eles nunca derrubam grandes árvores.
O presidente Jair Bolsonaro disse nesta terça-feira em discurso na ONU que os incêndios têm sido provocados por índios e caboclos. Isso é verdade?
Não, não é verdade. O presidente Bolsonaro continua em sua cruzada para incriminar índios e caboclos, os mais prejudicados com a devastação das florestas. Como falei, eles fazem as queimadas em áreas muito pequenas. Essa situação dos incêndios na Amazônia é muito antiga. As séries históricas do Inpe mostram isso, principalmente de 15 anos para cá. O incêndio, que é diferente da queimada para preparo do solo para o cultivo, começou a ser usado como forma de desmatamento, para abertura de campo para soja e pasto. E em grandes extensões o fogo foge do controle. Então aquilo que era técnica controlada de limpeza de área para cultivo em pequeno espaço passou a ser feita para abrir novos campos para grandes lavouras de soja e para o pasto, principalmente no sul do Amazonas e no cerrado. Então não é para limpar a terra, mas para provocar um grande incêndio e fazer com que a terra perca a característica de floresta e possa ser usada para outros fins.
E no Pantanal, os índios têm essa cultura das queimadas?
Não mais. No Mato Grosso do Sul, por exemplo, essa técnica não é mais usada pelas populações indígenas. Aliás, vários povos indígenas de lá já não têm nem área grande para plantio, uma vez que foram expropriados de suas terras originais, ocupadas por grandes latifúndios.