As mudanças climáticas têm sido um grande desafio para as cidades e, principalmente depois do desastre no Rio Grande do Sul, municípios têm buscado soluções com inteligência artificial (IA) que ajudem a prever e evitar catástrofes.
Grandes metrópoles, como São Paulo e Rio de Janeiro, já têm iniciativas no setor. Santo André, vizinha à capital paulista, se inspirou em um trabalho de conclusão de curso (TCC) para criar uma estratégia com base nesse tipo de tecnologia.
O projeto era de três estudantes do Instituto de Tecnologia de Mauá – Felipe Antonio Silva de Andrade, Felipe Brandão Ippolito e Vinícius de Souza Pereira –, que em 2019 consultaram a Defesa Civil de Santo André em busca de dados para construir uma IA capaz de prever alagamentos.
Em junho do ano passado, a prefeitura decidiu contratar um serviço de IA com esta finalidade. “Santo André tem um banco de dados muito grande. Mas percebemos que a informação, se não trabalhada, não tem nada”, afirma Priscila Oliveira, diretora do departamento de Proteção e Defesa Civil da cidade.
Segundo Priscila, com a IA, a equipe da Defesa Civil municipal vai poder comparar e entender melhor “o que esses números dizem”. “Vai saber quantas ocorrências (de motivos variados) já tivemos em determinado local, qual a previsão meteorológica para as próximas horas e dias e nos dizer, a partir do que ensinamos para ela, o que pode acontecer se a previsão de chuva se concretizar”, diz.
Leia também
“Ela (a IA) vai olhar para o que já aconteceu no passado e dizer ‘se continuarmos neste mesmo caminho, essa área aqui de Santo André terá problema’”, afirma a diretora. A alimentação de dados será contínua, garantindo atualização em tempo real, algo essencial em um cenário que muda o tempo todo, como é o das mudanças climáticas.
Com o tempo, a prefeitura pretende expandir as funcionalidades da plataforma, para que ela passe a detectar também deslizamentos de terra, entre outros possíveis impactos negativos.
O investimento total previsto para os cinco anos iniciais de operação é de R$ 1,4 milhão. Os recursos foram liberados via Banco de Desenvolvimento da América Latina (CAF).
Como funciona uma IA focada em mudanças climáticas?
O processo de criação da IA de Santo André, que é personalizada a partir da base de dados e das necessidades do município, começou em junho de 2023, com o levantamento, a organização e a centralização dos dados de diferentes secretarias, da Defesa Civil, da empresa de meteorologia Climatempo e do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden), órgão do governo federal.
“Não existia um lugar centralizado com dados meteorológicos. Uma das primeiras fases do projeto foi estruturar um data lake (local para armazenar todos os dados), onde criamos um sistema automatizado (reunindo as informações de todos os diferentes bancos e inserindo na plataforma)“, diz Tiago Sanches da Silva, diretor executivo da Gitly, empresa responsável pelo projeto. Ele é ex-professor da Mauá, onde orientou o TCC que inspirou a tecnologia municipal.
A equipe, que conta com agentes da Defesa Civil municipal e da empresa contratada, fez modelagens com os dados disponíveis e testou diferentes métodos até chegar a um conjunto de possíveis comunicados à Defesa Civil municipal com base na análise automática dos dados.
A partir desses comunicados, os agentes poderão apurar melhor a situação e tomar decisões sobre ações preventivas, emissões de alerta de perigo, entre outras possíveis medidas.
A operação da plataforma começará em novembro de 2024, no início do próximo período de chuvas, em fase de teste. Inicialmente, serão apenas algumas bacias hidrográficas e bairros – aqueles com maior histórico de ocorrências graves – monitorados. Depois, será expandido para todas as bacias e bairros do município.
Segundo Silva, cada bacia hidrográfica ou bairro de Santo André demanda a criação de uma inteligência artificial única, pois os dados e condições são diferentes para cada um. Dados de deslizamentos também já estão sendo trabalhados e informativos sobre esse tipo de acidente devem ser incluídos pela IA.
- Já na cidade de São Paulo, desde de 2021, o Sistema Urano monitora quantidades de chuvas nas diferentes regiões da capital e atua no gerenciamento de serviços de zeladoria. Conforme a Prefeitura, por meio de inteligência artificial, os dados capturados por diversas bases climáticas são comparados com dados de serviços preventivos realizados por meio do Sistema de Gerenciamento de Zeladoria (SGZ).
- “A IA é utilizada no cruzamento de dados como temperatura, umidade relativa do ar, direção do vento e acumulação e intensidade das chuvas”, afirma a administração municipal.
Implementação
Segundo o presidente da Associação Nacional de Cidades Inteligentes, Tecnológicas e Inovadoras, Johann Dantas, o processo de implementação de uma inteligência artificial pode ser demorado. Mas, depois de desenvolvida a tecnologia, a tendência é de que todos os processos sejam ágeis.
“Quando se fala de qualquer modelo de crescimento, se fala em crescimento linear. Já a inteligência artificial segue o princípio da exponencialidade. Depois de instalada, o avanço é muito rápido”, afirma.
Leia também
Segundo Priscila, a infraestrutura tecnológica anterior ajudou no processo. No total, são 26 estações meteorológicas próprias e a prefeitura diz estar implementando mais de 78 fluviômetros – que fazem a medição da lâmina d’água em rios e inundações, além de 3 mil câmeras de monitoramento.
Sem as estações meteorológicas distribuídas por regiões da cidade não seria possível, por exemplo, prever com precisão o volume de chuva esperado e registrado em cada bairro e/ou bacia hidrográfica.
‘Não dá para o Brasil importar essas tecnologias’
Paulo Artaxo, especialista em inteligência artificial e mudanças climáticas, ressalta ainda que, principalmente em relação à previsão e à remediação de desastres climáticos, é essencial que a IA seja desenvolvida de modo personalizado. Também são necessários dados de qualidade, atualizados com frequência.
“O Brasil está muito atrasado nesse aspecto, por falta de investimentos nessa área. Não dá para o Brasil importar essas tecnologias. Tem de desenvolver a tecnologia aqui, porque o que foi feito nos Estados Unidos, por exemplo, não foi desenvolvido para as condições brasileiras“, diz Artaxo.
“Lá, eles lidam com furacões, outras condições e eventos climáticos. É diferente do que temos aqui (inclusive em termos de dados). A inteligência precisa ser diferente”, acrescenta ele, também professor da Universidade de São Paulo (USP).
Dantas reconhece a importância e necessidade de parcerias com universidades brasileiras para desenvolver soluções tecnológicas baseadas nos cenários e necessidades locais. “A parceria com a universidade é fundamental, até porque há um P&D (termo para o processo de desenvolvimento de produtos) forte ali”, diz.
“Também há uma parte de pesquisa acadêmica que não pode ser desprezada. Precisamos nos lembrar que tudo que está acontecendo (em relação à crise climática) é porque desprezamos o que o meio acadêmico e os pesquisadores vinham falando que aconteceria”, complementa ele, também CEO da Prodam-SP, a empresa de tecnologia parceira da Prefeitura de São Paulo.
Corrida tecnológica pelo País
Ainda de acordo com Dantas, o Brasil vive uma “corrida tecnológica” quando o assunto é inteligência artificial. Principalmente depois das grandes inundações no Rio Grande do Sul, municípios e Estados começaram a se preocupar mais com medidas que auxiliem na detecção de possíveis tragédias. E essa tarefa não é possível sem tecnologia.
Artaxo concorda. “A inteligência artificial tem muito a contribuir nas áreas ambiental e das mudanças climáticas, principalmente ajudando a compilar a gigantesca quantidade de informações, como as de satélites de observações de superfície. É uma quantidade de dados impossível de ser processada por uma única pessoa”, destaca.
Outros exemplos
Santos, no litoral paulista, também está finalizando a contratação de uma inteligência artificial para análise de imagens de satélite. O objetivo também será prever períodos de chuva intensa e se precaver dos riscos de deslizamentos de encostas.
“Ao todo, os mapas e análises incluem 16 diferentes parâmetros para previsão de riscos de deslizamento de encostas, tais como susceptibilidade do solo, densidade populacional e nível de encharcamento do terreno”, diz a prefeitura de Santos.
“As imagens serão geradas a cada 30 minutos, com uma resolução de 10 metros, captadas a partir de milhares de satélites em órbita do planeta, permitindo, por exemplo, criar um ranking das áreas mais críticas, otimizando as ações de prevenção e enfrentamento”, acrescenta a gestão da cidade litorânea.
No Rio de Janeiro, projetos de georreferenciamento também têm sido testados para mapear áreas de risco geológico, especialmente nas comunidades que existem em morros e encostas. E, em São Paulo, o Sistema Urano, assim que detecta um alagamento, já abre uma ordem de serviço para garantir o pronto atendimento necessário, com envio de equipes e equipamentos, segundo a Prefeitura.
“Em média, 40 minutos depois de temporais, as principais vias da capital têm sua rotina devolvida a partir desse processo. A ferramenta também monitora a situação dos piscinões e pôlderes (porção de terrenos baixos) em tempo real, 24h por dia”, diz a gestão paulistana.
“O sistema também auxilia nos trabalhos de engenharia executados pela secretaria (municipal das Subprefeituras) ao fornecer dados para balizar futuros projetos, como ações em córregos ou construção de pôlderes.”
Além disso, a Secretaria do Verde e do Meio Ambiente de São Paulo utiliza a inteligência artificial para auxiliar na fiscalização ambiental. A ferramenta emite alertas semanais de desmatamento, conforme a pasta, a partir de imagens de satélite. “Nos Parques Anhanguera e Linear Córrego do Bispo, a IA integra um sistema de prevenção de incêndios programado para identificar fumaça e níveis de calor”, diz.