Doze anos depois do desastre nuclear, a usina de Fukushima, no Japão, começa a lançar nos próximos dias 1,3 mil tonelada de água radioativa tratada no oceano – um plano que vem sendo contestado por muitos japoneses, mas que é considerado seguro por especialistas internacionais.
Em 11 de março de 2011, um terremoto seguido de um tsunami destruiu a usina de Fukushima. No desastre que se seguiu, três reatores derreteram e contaminaram a água de resfriamento das estruturas, que, desde então, vem vazando continuamente.
A água do vazamento vem sendo coletada, filtrada e guardada em tanques, que devem atingir sua capacidade máxima no início do ano que vem. O governo japonês e a operadora da usina, a Tokyo Eletric Power Company (Tepco), enfrentam dificuldades para gerenciar o gigantesco volume de água contaminada acumulada ao longo de 12 anos.
Segundo as autoridades, a água precisa ser removida para que a usina seja desativada. Além disso, há risco de vazamento dos tanques.
Foram anos de coleta de amostras, pesquisa e modelagem, mas, no mês passado, a Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA), da ONU, aprovou o plano de descarte de água no oceano. A Autoridade Japonesa de Regulação Nuclear também aprovou a proposta, indicando que a Tepco tem autoridade para começar o descarte imediatamente.
O plano consiste em tratar a água contaminada, diluí-la num volume de água do mar até cem vezes maior e, só então, lançá-la no Oceano Pacífico, por meio de um túnel submarino de um quilômetro de comprimento. Segundo eles, o plano tem um nível de segurança superior ao preconizado pelas instituições internacionais.
“Nosso plano é científico e seguro e é muito importante que isso seja comunicado de forma firme”, afirmou Tomohiko Mayuzumi, representante da Tepco, em entrevista à agência Associated Press (AP). “Mas algumas pessoas vêm demonstrando preocupação, então o estabelecimento da data do início do descarte será uma decisão política, do governo.”
“Sempre que surgem as palavras nuclear e radiação as pessoas surtam”, afirmou a física nuclear Débora Menezes, diretora do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e integrante da Academia Brasileira de Ciência (ABC).
“Desde a Segunda Guerra Mundial, sempre que se fala em nuclear, a primeira coisa que vem à cabeça das pessoas é a bomba, os efeitos da radiação, o lixo atômico. Isso é desinformação. Não é porque algo é radioativo que é cancerígeno. A radiação está por toda parte, nosso corpo emite radiação, a banana é radioativa, se formos levar tudo isso ao extremo, a gente não vive.”
A radioatividade da água tratada é tão baixa que, quando ela chegar ao oceano, será rapidamente dispersada e se tornará indetectável, segundo o professor de química ambiental Katsumi Shozugawa, da Universidade de Tóquio, em entrevista à revista Wired.
O relatório da AIEA, encaminhado diretamente ao primeiro-ministro Fumio Kishida, concluiu que o método anunciado para o descarte da água está de acordo com os parâmetros internacionais e que o impacto ambiental e na saúde humana seria insignificante. O diretor-geral da AIEA, Rafael Grossi, garantiu que a radioatividade da água será praticamente indetectável.
De forma geral, os cientistas concordam que o impacto ambiental seria indetectável, mas alguns lembram que os dados sobre os efeitos a longo prazo do impacto na vida marinha e no ambiente são escassos.
O professor Katsumi Shozugawa, que vem fazendo medições de radioatividade em amostras de água, peixe e plantas nas proximidades da usina de Fukushima desde o desastre, afirma que o trabalho de 12 anos de análise de amostras revela baixo volume de radioatividade proveniente dos vazamentos nos lençóis freáticos e no porto próximo à usina.
A Tepco diz que não há novos vazamentos e atribuiu os níveis de Césio algumas vezes detectados em peixes capturados no porto à contaminação de sedimentos pelos vazamentos iniciais e à drenagem de água de chuva.
Comunidade pesqueira teme descarte
O desastre de 2011 atingiu duramente a comunidade pesqueira e o turismo. A economia local ainda está se recuperando. O governo já alocou até agora cerca de 80 bilhões de yens (em torno de R$ 2,7 bilhões) para ajudar a indústria pesqueira a se reerguer e para combater danos à reputação da região. Mesmo assim, o volume diário pescado atualmente em Fukushima ainda é um quinto do registrado antes de 2011.
As organizações pesqueiras japonesas se opõem ao descarte no oceano porque acreditam que ele terá impacto na reputação do pescado local, no momento em que a atividade começa a se recuperar. Coreia do Sul e China, por exemplo, já demonstraram preocupação a respeito do pescado importado do Japão, transformando a questão num problema diplomático.
Moradores temem que o descarte da água possa prejudicar ainda mais os seus negócios. “Sem um oceano saudável, eu não consigo ganhar a vida”, afirmou, em entrevista à agência de notícias AP, Yukinaga Suzuki, de 70 anos, gerente de uma pousada da praia de Usuiso, a cerca de 50 quilômetros de distância da usina.
Suzuki encaminhou um requerimento ao governo pedindo que adie o plano até meados de agosto, quando termina o período em que os japoneses costumam ir à praia.
“Se você me perguntar o que eu acho do lançamento da água, eu sou contra. Mas não há nada que eu possa fazer para impedir o governo de seguir com o seu plano”, disse. “Agora, lançar a água enquanto as pessoas estão nadando me parece totalmente errado, mesmo que não haja nenhum dano.”
Suzuki não está totalmente convencido pelas campanhas feitas pelo governo, que só ressaltam a segurança do plano. “Não sabemos se é realmente seguro”, afirmou. “Só vamos conseguir dizer isso muito tempo depois.”
A praia de Usuiso tinha mais de 12 pousadas antes do tsunami de 2011 que provocou o desastre nuclear na usina de Fukushima. Atualmente, apenas a pousada de Suzuki segue em funcionamento.
“Eu sirvo peixe fresco aos meus hóspedes, que vêm para cá para descansar”, afirmou. “O oceano é a principal fonte do meu negócio.”
Katsumasa Okawa, que gerencia uma peixaria em Iwaki, diz que os tanques com água contaminada armazenada o perturbam mais do que um possível lançamento de água tratada no oceano.
“Um vazamento acidental nesses tanques pode ser a última pá de cal.... Vai causar dano de verdade, não apenas dano à reputação”, disse, em entrevista à AP, Okawa. “O descarte da água tratada é inevitável; é estranho ter que viver perto da usina danificada por anos.”
Tratamento da água
A água contaminada estocada contém uma mistura de elementos químicos instáveis, chamados de radioisótopos, que emitem radiação. Para manter esses componentes minimamente radioativos, a Tepco instalou uma tecnologia para tratar a água antes da estocagem. A técnica consiste em passar a água contaminada por uma série de câmeras com materiais capazes de absorver os radioisótopos.
Entretanto, o método não é 100% eficaz. Resquícios de alguns dos radioisótopos, como o Césio 137 e o Estrôncio 90, por exemplo, ainda são encontrados na água estocada. Há ainda alguns isótopos que a tecnologia simplesmente não consegue remover, como o Carbono 12 e o Trítio. Ainda assim, segundo o professor de ciência ambiental da Universidade de Portsmouth, Jim Smith, a água é extremamente segura porque as concentrações de radioisótopos são muito baixas.
“Eu não estou preocupado”, afirmou Smith. “No pior cenário, se tudo desse errado, seria ainda menos grave do que os efeitos do aquecimento global no Pacífico.”
Antes do descarte, a água estocada será novamente tratada, múltiplas vezes se necessário, e diluída mais de cem vezes o que deixará a concentração de Trítio abaixo de 0.0000000015 TBq por litro – um nível equivalente a 1/40 do padrão de segurança japonês.
“Essa é a explicação de por que a homeopatia não funciona”, compara Débora Menezes. “Você dilui tanto que só sobra água.”
Após o descarte, o oceano seguirá sendo monitorado. A pesquisadora Núria Casacuberta Arola, da Universidade Pública de Zurique, na Suíça, é uma das cientistas internacionais que vão monitorar os resultados.
“Nós temos acesso a um navio que vai à costa de Fukushima todo ano, algumas vezes, duas vezes por ano”, afirmou Núria.
A pesquisadora e seus colegas regularmente coletam amostras da água do mar perto da usina em diferentes profundidades. Os cientistas coletam também amostras de sedimentos do leito do mar.
O grupo acredita que, nos próximos meses, será capaz de dizer se o descarte da água tratada no Pacífico vai causar algum tipo de contaminação radioativa. Se houver um aumento significativo dos níveis de radiação, será um claro sinal de que alguma coisa deu muito errado.