Medidas de gestão de risco são as mais baratas, duradouras e efetivas, mas ‘não dão voto’


Para Gean Paulo Michel, do Instituto de Pesquisas Hidráulicas da UFRGS, país ainda não desenvolveu ‘cultura de prevenção’ para evitar desastres

Por Juliana Domingos de Lima
Foto: Acervo pessoal
Entrevista comGean Paulo Michelprofessor do Instituto de Pesquisas Hidráulicas da UFRGS

A ideia do Brasil como um País menos suscetível a desastres, por estar fora das zonas de maior incidência de fenômenos como terremotos, furacões ou erupções vulcânicas, tem ficado para trás.

Entre 2013 e 2022, 93% dos municípios brasileiros foram atingidos por desastres, principalmente tempestades, inundações e enxurradas que levaram ao registro de estado de emergência ou calamidade pública, de acordo com um estudo da Confederação Nacional de Municípios (CNM).

Esses eventos afetaram diretamente mais de 4,2 milhões de pessoas, que tiveram de deixar suas casas, e danificaram mais de 2,2 milhões de moradias em todo o País nesses dez anos.

Os números não incluem os quatro eventos que atingiram o Rio Grande do Sul em menos de um ano – em junho, setembro e novembro de 2023 e maio de 2024, ainda em curso, considerado o maior desastre do Estado.

Com projeções que indicam um aumento expressivo de inundações e outros fenômenos extremos nas próximas décadas, sobretudo no Sul e Sudeste, o professor do Instituto de Pesquisas Hidráulicas da UFRGS Gean Paulo Michel avalia que a gestão de risco de desastres no Brasil ainda é mais reativa do que preventiva.

Viaduto fica cercado pela água em Porto Alegre Foto: Andre Penner/AP

Ao Estadão, ele afirma que obras estruturais precisarão levar em conta o aumento na magnitude e frequência dos eventos climáticos extremos, mas aponta as medidas não estruturais como as mais importantes para evitar catástrofes como a do Rio Grande do Sul.

Leia a entrevista completa abaixo.

Quando falamos de construir resiliência para reduzir o impacto de desastres relacionados às chuvas, do que exatamente estamos falando?

A ideia é que as cidades sejam resilientes do ponto de vista dos desastres e tenham maior capacidade de enfrentamento destes eventos extremos. Isso passa por diferentes tipos de medidas, que podemos enquadrar em estruturais e não estruturais. As medidas mais importantes são realmente as não estruturais para criar uma cultura de prevenção de risco: ter educação voltada para a redução de desastres, núcleos comunitários de Defesa Civil (NUPDECs), mapeamento das áreas propensas a estes eventos e sistemas de alerta para estes desastres.

Do ponto de vista estrutural, como os eventos parecem estar se tornando maiores e mais frequentes, as obras precisam se adequar a essa realidade. Um exemplo concreto seria a definição da altura de uma ponte, que, a partir do projeto de engenharia, é estabelecida para que a ponte não seja atingida por um evento com um determinado tempo de retorno que em geral é de cerca de 100 anos. Ou seja, estatisticamente falando, haveria a cada ano apenas 1% de chance de um evento superar a altura dessa ponte.

Com as mudanças climáticas, a tendência é que essa chance aumente, e as estruturas estejam mais expostas aos processos físicos como as inundações, por exemplo. Então, daqui pra frente precisaremos considerar esse aumento na magnitude e frequência dos eventos nos projetos de engenharia, ou seja, a situação não é mais estacionária.

Água do Guaíba invadiu Porto Alegre e atingiu diversos bairros Foto: Carlos Fabal/AFP

Mas perceba que, em Porto Alegre, o problema não foi esse. O sistema de proteção contra cheias do município foi projetado para um evento com tempo de retorno muito alto, e o topo do sistema está na cota 6 metros. Esta enchente alcançou a cota de 5,35 metros aproximadamente, ou seja, não superou o evento para o qual o sistema de proteção foi projetado. Então qual foi o problema? Nenhum sistema funciona sem a manutenção adequada, a qual não ocorreu no sistema de Porto Alegre.

Na sociohidrologia, tem um fenômeno que chamamos de “efeito dique”. Ele ocorre quando uma estrutura cria a sensação de segurança e, consequentemente, a comunidade que está atrás dela não cria nenhum outro mecanismo de enfrentamento do problema, no caso a inundação, que o dique supostamente está segurando... foi exatamente o que ocorreu em Porto Alegre. Esse “efeito dique” foi muito relatado na literatura associada aos problemas da inundação da cidade de Viena pelo Rio Danúbio.

Temos algum bom exemplo de cidade ou território no Brasil que tenha implementado uma grande recuperação após um desastre climático, incorporando os princípios de resiliência e adaptação?

No meu ver, infelizmente esses casos inexistem no Brasil. O Brasil nunca desenvolveu uma cultura de prevenção, mesmo com desastres bastante significativos assolando a população. No Brasil, a gestão de risco de desastre é ainda muito reativa, ou seja, atua fortemente na resposta, como um bombeiro apagando o fogo.

Não concordo em usar o termo “desastre climático” para se referir ao que vem acontecendo no Rio Grande do Sul, por dois motivos. O primeiro é que do ponto de vista conceitual, segundo a Cobrade (Classificação e Codificação Brasileira de Desastres), os desastres que ocorreram lá são enquadrados como desastres hidrológicos (inundações e alagamentos) e geológicos (os movimentos de massa). O segundo é que quando usamos a ideia de desastre climático, vem associado a isso a premissa de que a culpa é da mudança climática e surge a impressão de que nada poderia ser feito na escala de um estado ou município para prevenir ou mitigar o desastre.

Eventos extremos como os que ocorreram no RS até podem ter tido influência das mudanças climáticas, porém outros eventos muito similares já ocorreram no passado e certamente ocorrerão, talvez com maior frequência, no futuro. Ou seja, o desastre poderia ter sido evitado caso houvesse uma gestão de risco de desastres adequada. Obviamente que as mudanças climáticas são uma realidade e vão nos impor situações cada vez mais difíceis, mas isso não é justificativa para não termos a devida capacidade de enfrentamento destas situações.

Inundação atingiu o Aeroporto Salgado Filho, em Porto Alegre Foto: Wesley Santos/Reuters

Como seria essa gestão adequada do risco?

Tudo começa com os governos levando a sério a Defesa Civil (DC) local. A DC tem uma frase célebre que é: “Não existe risco zero”. Essa frase é sensacional porque sempre nos remete à ideia de que temos que estar prevenidos e preparados para um evento que possa ocorrer. Veja que isso é diferente de ser paranoico... isso é ser consciente.

Neste contexto, as nossas comunidades precisam saber evitar situações de risco, locais que apresentam maior exposição ao perigo precisam saber reduzir suas vulnerabilidades, podendo fazer isso através de organização social, criação de núcleos comunitários de Defesa Civil, treinamentos, etc. Nossos municípios precisam ter planos de contingência, que apresentem os riscos existentes nos municípios, como funciona o sistema de alerta, em que situações soará o alarme, como se deve realizar a evacuação, quem é responsável por cada atividade, onde estão os abrigos e quais são as rotas, o que significa que estaremos organizados e treinados para quando um evento extremo acontecer.

As crianças precisam aprender sobre risco nas escolas, realizar simulados, evacuação. A ideia é que a temática de risco seja assunto cotidiano e de comum saber entre as pessoas. E o melhor, as medidas não estruturais são as que geram maiores efeitos, as mais baratas e de maior duração. Mas elas não dão votos.

Quais os principais pontos da recuperação e o planejamento que precisa ser feito nas cidades gaúchas e em outras cidades brasileiras?

Eu diria que as prioridades de recuperação passam por:

  • Fortalecer uma cultura de gestão de risco e prevenção na nossa população, através de iniciativas que visam ao empoderamento das populações acerca da dinâmica dos perigos existentes e como reduzir a sua vulnerabilidade e exposição, como os projetos Cidades Resilientes, Defesa Civil na Escola, o incentivo à criação de núcleos comunitários de Defesa Civil (NUPDECs) e ao desenvolvimento de projetos de Ciência Cidadã. Medidas simples como pintar nos postes da cidade a altura do nível que a água alcançou em determinada inundação podem gerar um estado de percepção que naturalmente leva a ações de prevenção por parte da população;
  • Fortalecer as estruturas de Defesa Civil e órgãos associados, com recursos humanos capazes de propor soluções. A maioria das secretarias de Defesa Civil municipais no Brasil não conta com profissionais concursados que trabalham continuamente com esta temática. É comum que a cada troca de governo a equipe seja renovada e muitas vezes profissionais sem experiência nesta temática são indicados. Essa falta de continuidade demonstra a grande fragilidade das estruturas de DC municipal e a dificuldade que se tem em avançar na cultura de gestão de risco. A Defesa Civil precisa ser levada mais a sério nestas prefeituras e profissionais qualificados precisam ocupar essas posições, continuamente. Nos municípios de maior porte, onde as DCs já estão mais estruturadas, o enfoque precisa ser o de prevenção e não o de resposta. As deliberações da DC precisam ser levadas a sério no governo municipal: quando determinada área é considerada como área de risco pela DC, o município tem que incorporar tais considerações no plano diretor;
  • Investir em monitoramento de variáveis climáticas, meteorológicas e hidrológicas, para que tenhamos melhor capacidade de previsão;
  • Por último, realmente por último, instalar e aprimorar estruturas físicas para redução de desastres (diques, muros de contenção, etc.), somente onde for imprescindível.

Governos dizem adotar medidas

Ao Estadão, a prefeitura de Porto Alegre informou ter investido junto com o Departamento Municipal de Água e Esgotos (Dmae) R$ 592 milhões em obras relacionadas à prevenção de cheias ou que amenizam situações de alagamentos na cidade desde o início do mandato de Sebastião Melo, em 2021.

Em 2023, disse ter investido R$ 108,8 milhões em obras de macrodrenagem na capital para melhoria na infraestrutura para manejo de águas pluviais, no sistema de proteção contra a cheia, na manutenção do sistema de drenagem pluvial e dragagem e desassoreamento de arroios, entre outros.

Sobre o Plano de Contingências de Proteção e Defesa Civil de Porto Alegre e o Plano de Ações Emergenciais de Proteção e Defesa Civil em Áreas de Muito Alto Risco, aprovados em 2022, a administração municipal afirmou ser “a primeira vez que a capital tem um projeto que determina ações emergenciais para caso de desastres”, mas não deu detalhes sobre a implementação dos planos e sobre por que não foram capazes de reduzir o impacto das chuvas.

Em relação à Defesa Civil municipal, informou que a estrutura de servidores foi reforçada com a contratação de 32 profissionais, que eram apenas dez no início da gestão atual do Executivo. Declarou que a partir de 2022 o órgão recebeu mais de R$ 2,3 milhões em equipamentos como veículos, roupas de neoprene e bote inflável.

Por fim, realizou em parceria com o Serviço Geológico do Brasil a primeira atualização desde 2013 de um estudo das áreas de risco da cidade, que mapeou 142 áreas vulneráveis nas quais vivem 20.884 famílias.

A ideia do Brasil como um País menos suscetível a desastres, por estar fora das zonas de maior incidência de fenômenos como terremotos, furacões ou erupções vulcânicas, tem ficado para trás.

Entre 2013 e 2022, 93% dos municípios brasileiros foram atingidos por desastres, principalmente tempestades, inundações e enxurradas que levaram ao registro de estado de emergência ou calamidade pública, de acordo com um estudo da Confederação Nacional de Municípios (CNM).

Esses eventos afetaram diretamente mais de 4,2 milhões de pessoas, que tiveram de deixar suas casas, e danificaram mais de 2,2 milhões de moradias em todo o País nesses dez anos.

Os números não incluem os quatro eventos que atingiram o Rio Grande do Sul em menos de um ano – em junho, setembro e novembro de 2023 e maio de 2024, ainda em curso, considerado o maior desastre do Estado.

Com projeções que indicam um aumento expressivo de inundações e outros fenômenos extremos nas próximas décadas, sobretudo no Sul e Sudeste, o professor do Instituto de Pesquisas Hidráulicas da UFRGS Gean Paulo Michel avalia que a gestão de risco de desastres no Brasil ainda é mais reativa do que preventiva.

Viaduto fica cercado pela água em Porto Alegre Foto: Andre Penner/AP

Ao Estadão, ele afirma que obras estruturais precisarão levar em conta o aumento na magnitude e frequência dos eventos climáticos extremos, mas aponta as medidas não estruturais como as mais importantes para evitar catástrofes como a do Rio Grande do Sul.

Leia a entrevista completa abaixo.

Quando falamos de construir resiliência para reduzir o impacto de desastres relacionados às chuvas, do que exatamente estamos falando?

A ideia é que as cidades sejam resilientes do ponto de vista dos desastres e tenham maior capacidade de enfrentamento destes eventos extremos. Isso passa por diferentes tipos de medidas, que podemos enquadrar em estruturais e não estruturais. As medidas mais importantes são realmente as não estruturais para criar uma cultura de prevenção de risco: ter educação voltada para a redução de desastres, núcleos comunitários de Defesa Civil (NUPDECs), mapeamento das áreas propensas a estes eventos e sistemas de alerta para estes desastres.

Do ponto de vista estrutural, como os eventos parecem estar se tornando maiores e mais frequentes, as obras precisam se adequar a essa realidade. Um exemplo concreto seria a definição da altura de uma ponte, que, a partir do projeto de engenharia, é estabelecida para que a ponte não seja atingida por um evento com um determinado tempo de retorno que em geral é de cerca de 100 anos. Ou seja, estatisticamente falando, haveria a cada ano apenas 1% de chance de um evento superar a altura dessa ponte.

Com as mudanças climáticas, a tendência é que essa chance aumente, e as estruturas estejam mais expostas aos processos físicos como as inundações, por exemplo. Então, daqui pra frente precisaremos considerar esse aumento na magnitude e frequência dos eventos nos projetos de engenharia, ou seja, a situação não é mais estacionária.

Água do Guaíba invadiu Porto Alegre e atingiu diversos bairros Foto: Carlos Fabal/AFP

Mas perceba que, em Porto Alegre, o problema não foi esse. O sistema de proteção contra cheias do município foi projetado para um evento com tempo de retorno muito alto, e o topo do sistema está na cota 6 metros. Esta enchente alcançou a cota de 5,35 metros aproximadamente, ou seja, não superou o evento para o qual o sistema de proteção foi projetado. Então qual foi o problema? Nenhum sistema funciona sem a manutenção adequada, a qual não ocorreu no sistema de Porto Alegre.

Na sociohidrologia, tem um fenômeno que chamamos de “efeito dique”. Ele ocorre quando uma estrutura cria a sensação de segurança e, consequentemente, a comunidade que está atrás dela não cria nenhum outro mecanismo de enfrentamento do problema, no caso a inundação, que o dique supostamente está segurando... foi exatamente o que ocorreu em Porto Alegre. Esse “efeito dique” foi muito relatado na literatura associada aos problemas da inundação da cidade de Viena pelo Rio Danúbio.

Temos algum bom exemplo de cidade ou território no Brasil que tenha implementado uma grande recuperação após um desastre climático, incorporando os princípios de resiliência e adaptação?

No meu ver, infelizmente esses casos inexistem no Brasil. O Brasil nunca desenvolveu uma cultura de prevenção, mesmo com desastres bastante significativos assolando a população. No Brasil, a gestão de risco de desastre é ainda muito reativa, ou seja, atua fortemente na resposta, como um bombeiro apagando o fogo.

Não concordo em usar o termo “desastre climático” para se referir ao que vem acontecendo no Rio Grande do Sul, por dois motivos. O primeiro é que do ponto de vista conceitual, segundo a Cobrade (Classificação e Codificação Brasileira de Desastres), os desastres que ocorreram lá são enquadrados como desastres hidrológicos (inundações e alagamentos) e geológicos (os movimentos de massa). O segundo é que quando usamos a ideia de desastre climático, vem associado a isso a premissa de que a culpa é da mudança climática e surge a impressão de que nada poderia ser feito na escala de um estado ou município para prevenir ou mitigar o desastre.

Eventos extremos como os que ocorreram no RS até podem ter tido influência das mudanças climáticas, porém outros eventos muito similares já ocorreram no passado e certamente ocorrerão, talvez com maior frequência, no futuro. Ou seja, o desastre poderia ter sido evitado caso houvesse uma gestão de risco de desastres adequada. Obviamente que as mudanças climáticas são uma realidade e vão nos impor situações cada vez mais difíceis, mas isso não é justificativa para não termos a devida capacidade de enfrentamento destas situações.

Inundação atingiu o Aeroporto Salgado Filho, em Porto Alegre Foto: Wesley Santos/Reuters

Como seria essa gestão adequada do risco?

Tudo começa com os governos levando a sério a Defesa Civil (DC) local. A DC tem uma frase célebre que é: “Não existe risco zero”. Essa frase é sensacional porque sempre nos remete à ideia de que temos que estar prevenidos e preparados para um evento que possa ocorrer. Veja que isso é diferente de ser paranoico... isso é ser consciente.

Neste contexto, as nossas comunidades precisam saber evitar situações de risco, locais que apresentam maior exposição ao perigo precisam saber reduzir suas vulnerabilidades, podendo fazer isso através de organização social, criação de núcleos comunitários de Defesa Civil, treinamentos, etc. Nossos municípios precisam ter planos de contingência, que apresentem os riscos existentes nos municípios, como funciona o sistema de alerta, em que situações soará o alarme, como se deve realizar a evacuação, quem é responsável por cada atividade, onde estão os abrigos e quais são as rotas, o que significa que estaremos organizados e treinados para quando um evento extremo acontecer.

As crianças precisam aprender sobre risco nas escolas, realizar simulados, evacuação. A ideia é que a temática de risco seja assunto cotidiano e de comum saber entre as pessoas. E o melhor, as medidas não estruturais são as que geram maiores efeitos, as mais baratas e de maior duração. Mas elas não dão votos.

Quais os principais pontos da recuperação e o planejamento que precisa ser feito nas cidades gaúchas e em outras cidades brasileiras?

Eu diria que as prioridades de recuperação passam por:

  • Fortalecer uma cultura de gestão de risco e prevenção na nossa população, através de iniciativas que visam ao empoderamento das populações acerca da dinâmica dos perigos existentes e como reduzir a sua vulnerabilidade e exposição, como os projetos Cidades Resilientes, Defesa Civil na Escola, o incentivo à criação de núcleos comunitários de Defesa Civil (NUPDECs) e ao desenvolvimento de projetos de Ciência Cidadã. Medidas simples como pintar nos postes da cidade a altura do nível que a água alcançou em determinada inundação podem gerar um estado de percepção que naturalmente leva a ações de prevenção por parte da população;
  • Fortalecer as estruturas de Defesa Civil e órgãos associados, com recursos humanos capazes de propor soluções. A maioria das secretarias de Defesa Civil municipais no Brasil não conta com profissionais concursados que trabalham continuamente com esta temática. É comum que a cada troca de governo a equipe seja renovada e muitas vezes profissionais sem experiência nesta temática são indicados. Essa falta de continuidade demonstra a grande fragilidade das estruturas de DC municipal e a dificuldade que se tem em avançar na cultura de gestão de risco. A Defesa Civil precisa ser levada mais a sério nestas prefeituras e profissionais qualificados precisam ocupar essas posições, continuamente. Nos municípios de maior porte, onde as DCs já estão mais estruturadas, o enfoque precisa ser o de prevenção e não o de resposta. As deliberações da DC precisam ser levadas a sério no governo municipal: quando determinada área é considerada como área de risco pela DC, o município tem que incorporar tais considerações no plano diretor;
  • Investir em monitoramento de variáveis climáticas, meteorológicas e hidrológicas, para que tenhamos melhor capacidade de previsão;
  • Por último, realmente por último, instalar e aprimorar estruturas físicas para redução de desastres (diques, muros de contenção, etc.), somente onde for imprescindível.

Governos dizem adotar medidas

Ao Estadão, a prefeitura de Porto Alegre informou ter investido junto com o Departamento Municipal de Água e Esgotos (Dmae) R$ 592 milhões em obras relacionadas à prevenção de cheias ou que amenizam situações de alagamentos na cidade desde o início do mandato de Sebastião Melo, em 2021.

Em 2023, disse ter investido R$ 108,8 milhões em obras de macrodrenagem na capital para melhoria na infraestrutura para manejo de águas pluviais, no sistema de proteção contra a cheia, na manutenção do sistema de drenagem pluvial e dragagem e desassoreamento de arroios, entre outros.

Sobre o Plano de Contingências de Proteção e Defesa Civil de Porto Alegre e o Plano de Ações Emergenciais de Proteção e Defesa Civil em Áreas de Muito Alto Risco, aprovados em 2022, a administração municipal afirmou ser “a primeira vez que a capital tem um projeto que determina ações emergenciais para caso de desastres”, mas não deu detalhes sobre a implementação dos planos e sobre por que não foram capazes de reduzir o impacto das chuvas.

Em relação à Defesa Civil municipal, informou que a estrutura de servidores foi reforçada com a contratação de 32 profissionais, que eram apenas dez no início da gestão atual do Executivo. Declarou que a partir de 2022 o órgão recebeu mais de R$ 2,3 milhões em equipamentos como veículos, roupas de neoprene e bote inflável.

Por fim, realizou em parceria com o Serviço Geológico do Brasil a primeira atualização desde 2013 de um estudo das áreas de risco da cidade, que mapeou 142 áreas vulneráveis nas quais vivem 20.884 famílias.

A ideia do Brasil como um País menos suscetível a desastres, por estar fora das zonas de maior incidência de fenômenos como terremotos, furacões ou erupções vulcânicas, tem ficado para trás.

Entre 2013 e 2022, 93% dos municípios brasileiros foram atingidos por desastres, principalmente tempestades, inundações e enxurradas que levaram ao registro de estado de emergência ou calamidade pública, de acordo com um estudo da Confederação Nacional de Municípios (CNM).

Esses eventos afetaram diretamente mais de 4,2 milhões de pessoas, que tiveram de deixar suas casas, e danificaram mais de 2,2 milhões de moradias em todo o País nesses dez anos.

Os números não incluem os quatro eventos que atingiram o Rio Grande do Sul em menos de um ano – em junho, setembro e novembro de 2023 e maio de 2024, ainda em curso, considerado o maior desastre do Estado.

Com projeções que indicam um aumento expressivo de inundações e outros fenômenos extremos nas próximas décadas, sobretudo no Sul e Sudeste, o professor do Instituto de Pesquisas Hidráulicas da UFRGS Gean Paulo Michel avalia que a gestão de risco de desastres no Brasil ainda é mais reativa do que preventiva.

Viaduto fica cercado pela água em Porto Alegre Foto: Andre Penner/AP

Ao Estadão, ele afirma que obras estruturais precisarão levar em conta o aumento na magnitude e frequência dos eventos climáticos extremos, mas aponta as medidas não estruturais como as mais importantes para evitar catástrofes como a do Rio Grande do Sul.

Leia a entrevista completa abaixo.

Quando falamos de construir resiliência para reduzir o impacto de desastres relacionados às chuvas, do que exatamente estamos falando?

A ideia é que as cidades sejam resilientes do ponto de vista dos desastres e tenham maior capacidade de enfrentamento destes eventos extremos. Isso passa por diferentes tipos de medidas, que podemos enquadrar em estruturais e não estruturais. As medidas mais importantes são realmente as não estruturais para criar uma cultura de prevenção de risco: ter educação voltada para a redução de desastres, núcleos comunitários de Defesa Civil (NUPDECs), mapeamento das áreas propensas a estes eventos e sistemas de alerta para estes desastres.

Do ponto de vista estrutural, como os eventos parecem estar se tornando maiores e mais frequentes, as obras precisam se adequar a essa realidade. Um exemplo concreto seria a definição da altura de uma ponte, que, a partir do projeto de engenharia, é estabelecida para que a ponte não seja atingida por um evento com um determinado tempo de retorno que em geral é de cerca de 100 anos. Ou seja, estatisticamente falando, haveria a cada ano apenas 1% de chance de um evento superar a altura dessa ponte.

Com as mudanças climáticas, a tendência é que essa chance aumente, e as estruturas estejam mais expostas aos processos físicos como as inundações, por exemplo. Então, daqui pra frente precisaremos considerar esse aumento na magnitude e frequência dos eventos nos projetos de engenharia, ou seja, a situação não é mais estacionária.

Água do Guaíba invadiu Porto Alegre e atingiu diversos bairros Foto: Carlos Fabal/AFP

Mas perceba que, em Porto Alegre, o problema não foi esse. O sistema de proteção contra cheias do município foi projetado para um evento com tempo de retorno muito alto, e o topo do sistema está na cota 6 metros. Esta enchente alcançou a cota de 5,35 metros aproximadamente, ou seja, não superou o evento para o qual o sistema de proteção foi projetado. Então qual foi o problema? Nenhum sistema funciona sem a manutenção adequada, a qual não ocorreu no sistema de Porto Alegre.

Na sociohidrologia, tem um fenômeno que chamamos de “efeito dique”. Ele ocorre quando uma estrutura cria a sensação de segurança e, consequentemente, a comunidade que está atrás dela não cria nenhum outro mecanismo de enfrentamento do problema, no caso a inundação, que o dique supostamente está segurando... foi exatamente o que ocorreu em Porto Alegre. Esse “efeito dique” foi muito relatado na literatura associada aos problemas da inundação da cidade de Viena pelo Rio Danúbio.

Temos algum bom exemplo de cidade ou território no Brasil que tenha implementado uma grande recuperação após um desastre climático, incorporando os princípios de resiliência e adaptação?

No meu ver, infelizmente esses casos inexistem no Brasil. O Brasil nunca desenvolveu uma cultura de prevenção, mesmo com desastres bastante significativos assolando a população. No Brasil, a gestão de risco de desastre é ainda muito reativa, ou seja, atua fortemente na resposta, como um bombeiro apagando o fogo.

Não concordo em usar o termo “desastre climático” para se referir ao que vem acontecendo no Rio Grande do Sul, por dois motivos. O primeiro é que do ponto de vista conceitual, segundo a Cobrade (Classificação e Codificação Brasileira de Desastres), os desastres que ocorreram lá são enquadrados como desastres hidrológicos (inundações e alagamentos) e geológicos (os movimentos de massa). O segundo é que quando usamos a ideia de desastre climático, vem associado a isso a premissa de que a culpa é da mudança climática e surge a impressão de que nada poderia ser feito na escala de um estado ou município para prevenir ou mitigar o desastre.

Eventos extremos como os que ocorreram no RS até podem ter tido influência das mudanças climáticas, porém outros eventos muito similares já ocorreram no passado e certamente ocorrerão, talvez com maior frequência, no futuro. Ou seja, o desastre poderia ter sido evitado caso houvesse uma gestão de risco de desastres adequada. Obviamente que as mudanças climáticas são uma realidade e vão nos impor situações cada vez mais difíceis, mas isso não é justificativa para não termos a devida capacidade de enfrentamento destas situações.

Inundação atingiu o Aeroporto Salgado Filho, em Porto Alegre Foto: Wesley Santos/Reuters

Como seria essa gestão adequada do risco?

Tudo começa com os governos levando a sério a Defesa Civil (DC) local. A DC tem uma frase célebre que é: “Não existe risco zero”. Essa frase é sensacional porque sempre nos remete à ideia de que temos que estar prevenidos e preparados para um evento que possa ocorrer. Veja que isso é diferente de ser paranoico... isso é ser consciente.

Neste contexto, as nossas comunidades precisam saber evitar situações de risco, locais que apresentam maior exposição ao perigo precisam saber reduzir suas vulnerabilidades, podendo fazer isso através de organização social, criação de núcleos comunitários de Defesa Civil, treinamentos, etc. Nossos municípios precisam ter planos de contingência, que apresentem os riscos existentes nos municípios, como funciona o sistema de alerta, em que situações soará o alarme, como se deve realizar a evacuação, quem é responsável por cada atividade, onde estão os abrigos e quais são as rotas, o que significa que estaremos organizados e treinados para quando um evento extremo acontecer.

As crianças precisam aprender sobre risco nas escolas, realizar simulados, evacuação. A ideia é que a temática de risco seja assunto cotidiano e de comum saber entre as pessoas. E o melhor, as medidas não estruturais são as que geram maiores efeitos, as mais baratas e de maior duração. Mas elas não dão votos.

Quais os principais pontos da recuperação e o planejamento que precisa ser feito nas cidades gaúchas e em outras cidades brasileiras?

Eu diria que as prioridades de recuperação passam por:

  • Fortalecer uma cultura de gestão de risco e prevenção na nossa população, através de iniciativas que visam ao empoderamento das populações acerca da dinâmica dos perigos existentes e como reduzir a sua vulnerabilidade e exposição, como os projetos Cidades Resilientes, Defesa Civil na Escola, o incentivo à criação de núcleos comunitários de Defesa Civil (NUPDECs) e ao desenvolvimento de projetos de Ciência Cidadã. Medidas simples como pintar nos postes da cidade a altura do nível que a água alcançou em determinada inundação podem gerar um estado de percepção que naturalmente leva a ações de prevenção por parte da população;
  • Fortalecer as estruturas de Defesa Civil e órgãos associados, com recursos humanos capazes de propor soluções. A maioria das secretarias de Defesa Civil municipais no Brasil não conta com profissionais concursados que trabalham continuamente com esta temática. É comum que a cada troca de governo a equipe seja renovada e muitas vezes profissionais sem experiência nesta temática são indicados. Essa falta de continuidade demonstra a grande fragilidade das estruturas de DC municipal e a dificuldade que se tem em avançar na cultura de gestão de risco. A Defesa Civil precisa ser levada mais a sério nestas prefeituras e profissionais qualificados precisam ocupar essas posições, continuamente. Nos municípios de maior porte, onde as DCs já estão mais estruturadas, o enfoque precisa ser o de prevenção e não o de resposta. As deliberações da DC precisam ser levadas a sério no governo municipal: quando determinada área é considerada como área de risco pela DC, o município tem que incorporar tais considerações no plano diretor;
  • Investir em monitoramento de variáveis climáticas, meteorológicas e hidrológicas, para que tenhamos melhor capacidade de previsão;
  • Por último, realmente por último, instalar e aprimorar estruturas físicas para redução de desastres (diques, muros de contenção, etc.), somente onde for imprescindível.

Governos dizem adotar medidas

Ao Estadão, a prefeitura de Porto Alegre informou ter investido junto com o Departamento Municipal de Água e Esgotos (Dmae) R$ 592 milhões em obras relacionadas à prevenção de cheias ou que amenizam situações de alagamentos na cidade desde o início do mandato de Sebastião Melo, em 2021.

Em 2023, disse ter investido R$ 108,8 milhões em obras de macrodrenagem na capital para melhoria na infraestrutura para manejo de águas pluviais, no sistema de proteção contra a cheia, na manutenção do sistema de drenagem pluvial e dragagem e desassoreamento de arroios, entre outros.

Sobre o Plano de Contingências de Proteção e Defesa Civil de Porto Alegre e o Plano de Ações Emergenciais de Proteção e Defesa Civil em Áreas de Muito Alto Risco, aprovados em 2022, a administração municipal afirmou ser “a primeira vez que a capital tem um projeto que determina ações emergenciais para caso de desastres”, mas não deu detalhes sobre a implementação dos planos e sobre por que não foram capazes de reduzir o impacto das chuvas.

Em relação à Defesa Civil municipal, informou que a estrutura de servidores foi reforçada com a contratação de 32 profissionais, que eram apenas dez no início da gestão atual do Executivo. Declarou que a partir de 2022 o órgão recebeu mais de R$ 2,3 milhões em equipamentos como veículos, roupas de neoprene e bote inflável.

Por fim, realizou em parceria com o Serviço Geológico do Brasil a primeira atualização desde 2013 de um estudo das áreas de risco da cidade, que mapeou 142 áreas vulneráveis nas quais vivem 20.884 famílias.

A ideia do Brasil como um País menos suscetível a desastres, por estar fora das zonas de maior incidência de fenômenos como terremotos, furacões ou erupções vulcânicas, tem ficado para trás.

Entre 2013 e 2022, 93% dos municípios brasileiros foram atingidos por desastres, principalmente tempestades, inundações e enxurradas que levaram ao registro de estado de emergência ou calamidade pública, de acordo com um estudo da Confederação Nacional de Municípios (CNM).

Esses eventos afetaram diretamente mais de 4,2 milhões de pessoas, que tiveram de deixar suas casas, e danificaram mais de 2,2 milhões de moradias em todo o País nesses dez anos.

Os números não incluem os quatro eventos que atingiram o Rio Grande do Sul em menos de um ano – em junho, setembro e novembro de 2023 e maio de 2024, ainda em curso, considerado o maior desastre do Estado.

Com projeções que indicam um aumento expressivo de inundações e outros fenômenos extremos nas próximas décadas, sobretudo no Sul e Sudeste, o professor do Instituto de Pesquisas Hidráulicas da UFRGS Gean Paulo Michel avalia que a gestão de risco de desastres no Brasil ainda é mais reativa do que preventiva.

Viaduto fica cercado pela água em Porto Alegre Foto: Andre Penner/AP

Ao Estadão, ele afirma que obras estruturais precisarão levar em conta o aumento na magnitude e frequência dos eventos climáticos extremos, mas aponta as medidas não estruturais como as mais importantes para evitar catástrofes como a do Rio Grande do Sul.

Leia a entrevista completa abaixo.

Quando falamos de construir resiliência para reduzir o impacto de desastres relacionados às chuvas, do que exatamente estamos falando?

A ideia é que as cidades sejam resilientes do ponto de vista dos desastres e tenham maior capacidade de enfrentamento destes eventos extremos. Isso passa por diferentes tipos de medidas, que podemos enquadrar em estruturais e não estruturais. As medidas mais importantes são realmente as não estruturais para criar uma cultura de prevenção de risco: ter educação voltada para a redução de desastres, núcleos comunitários de Defesa Civil (NUPDECs), mapeamento das áreas propensas a estes eventos e sistemas de alerta para estes desastres.

Do ponto de vista estrutural, como os eventos parecem estar se tornando maiores e mais frequentes, as obras precisam se adequar a essa realidade. Um exemplo concreto seria a definição da altura de uma ponte, que, a partir do projeto de engenharia, é estabelecida para que a ponte não seja atingida por um evento com um determinado tempo de retorno que em geral é de cerca de 100 anos. Ou seja, estatisticamente falando, haveria a cada ano apenas 1% de chance de um evento superar a altura dessa ponte.

Com as mudanças climáticas, a tendência é que essa chance aumente, e as estruturas estejam mais expostas aos processos físicos como as inundações, por exemplo. Então, daqui pra frente precisaremos considerar esse aumento na magnitude e frequência dos eventos nos projetos de engenharia, ou seja, a situação não é mais estacionária.

Água do Guaíba invadiu Porto Alegre e atingiu diversos bairros Foto: Carlos Fabal/AFP

Mas perceba que, em Porto Alegre, o problema não foi esse. O sistema de proteção contra cheias do município foi projetado para um evento com tempo de retorno muito alto, e o topo do sistema está na cota 6 metros. Esta enchente alcançou a cota de 5,35 metros aproximadamente, ou seja, não superou o evento para o qual o sistema de proteção foi projetado. Então qual foi o problema? Nenhum sistema funciona sem a manutenção adequada, a qual não ocorreu no sistema de Porto Alegre.

Na sociohidrologia, tem um fenômeno que chamamos de “efeito dique”. Ele ocorre quando uma estrutura cria a sensação de segurança e, consequentemente, a comunidade que está atrás dela não cria nenhum outro mecanismo de enfrentamento do problema, no caso a inundação, que o dique supostamente está segurando... foi exatamente o que ocorreu em Porto Alegre. Esse “efeito dique” foi muito relatado na literatura associada aos problemas da inundação da cidade de Viena pelo Rio Danúbio.

Temos algum bom exemplo de cidade ou território no Brasil que tenha implementado uma grande recuperação após um desastre climático, incorporando os princípios de resiliência e adaptação?

No meu ver, infelizmente esses casos inexistem no Brasil. O Brasil nunca desenvolveu uma cultura de prevenção, mesmo com desastres bastante significativos assolando a população. No Brasil, a gestão de risco de desastre é ainda muito reativa, ou seja, atua fortemente na resposta, como um bombeiro apagando o fogo.

Não concordo em usar o termo “desastre climático” para se referir ao que vem acontecendo no Rio Grande do Sul, por dois motivos. O primeiro é que do ponto de vista conceitual, segundo a Cobrade (Classificação e Codificação Brasileira de Desastres), os desastres que ocorreram lá são enquadrados como desastres hidrológicos (inundações e alagamentos) e geológicos (os movimentos de massa). O segundo é que quando usamos a ideia de desastre climático, vem associado a isso a premissa de que a culpa é da mudança climática e surge a impressão de que nada poderia ser feito na escala de um estado ou município para prevenir ou mitigar o desastre.

Eventos extremos como os que ocorreram no RS até podem ter tido influência das mudanças climáticas, porém outros eventos muito similares já ocorreram no passado e certamente ocorrerão, talvez com maior frequência, no futuro. Ou seja, o desastre poderia ter sido evitado caso houvesse uma gestão de risco de desastres adequada. Obviamente que as mudanças climáticas são uma realidade e vão nos impor situações cada vez mais difíceis, mas isso não é justificativa para não termos a devida capacidade de enfrentamento destas situações.

Inundação atingiu o Aeroporto Salgado Filho, em Porto Alegre Foto: Wesley Santos/Reuters

Como seria essa gestão adequada do risco?

Tudo começa com os governos levando a sério a Defesa Civil (DC) local. A DC tem uma frase célebre que é: “Não existe risco zero”. Essa frase é sensacional porque sempre nos remete à ideia de que temos que estar prevenidos e preparados para um evento que possa ocorrer. Veja que isso é diferente de ser paranoico... isso é ser consciente.

Neste contexto, as nossas comunidades precisam saber evitar situações de risco, locais que apresentam maior exposição ao perigo precisam saber reduzir suas vulnerabilidades, podendo fazer isso através de organização social, criação de núcleos comunitários de Defesa Civil, treinamentos, etc. Nossos municípios precisam ter planos de contingência, que apresentem os riscos existentes nos municípios, como funciona o sistema de alerta, em que situações soará o alarme, como se deve realizar a evacuação, quem é responsável por cada atividade, onde estão os abrigos e quais são as rotas, o que significa que estaremos organizados e treinados para quando um evento extremo acontecer.

As crianças precisam aprender sobre risco nas escolas, realizar simulados, evacuação. A ideia é que a temática de risco seja assunto cotidiano e de comum saber entre as pessoas. E o melhor, as medidas não estruturais são as que geram maiores efeitos, as mais baratas e de maior duração. Mas elas não dão votos.

Quais os principais pontos da recuperação e o planejamento que precisa ser feito nas cidades gaúchas e em outras cidades brasileiras?

Eu diria que as prioridades de recuperação passam por:

  • Fortalecer uma cultura de gestão de risco e prevenção na nossa população, através de iniciativas que visam ao empoderamento das populações acerca da dinâmica dos perigos existentes e como reduzir a sua vulnerabilidade e exposição, como os projetos Cidades Resilientes, Defesa Civil na Escola, o incentivo à criação de núcleos comunitários de Defesa Civil (NUPDECs) e ao desenvolvimento de projetos de Ciência Cidadã. Medidas simples como pintar nos postes da cidade a altura do nível que a água alcançou em determinada inundação podem gerar um estado de percepção que naturalmente leva a ações de prevenção por parte da população;
  • Fortalecer as estruturas de Defesa Civil e órgãos associados, com recursos humanos capazes de propor soluções. A maioria das secretarias de Defesa Civil municipais no Brasil não conta com profissionais concursados que trabalham continuamente com esta temática. É comum que a cada troca de governo a equipe seja renovada e muitas vezes profissionais sem experiência nesta temática são indicados. Essa falta de continuidade demonstra a grande fragilidade das estruturas de DC municipal e a dificuldade que se tem em avançar na cultura de gestão de risco. A Defesa Civil precisa ser levada mais a sério nestas prefeituras e profissionais qualificados precisam ocupar essas posições, continuamente. Nos municípios de maior porte, onde as DCs já estão mais estruturadas, o enfoque precisa ser o de prevenção e não o de resposta. As deliberações da DC precisam ser levadas a sério no governo municipal: quando determinada área é considerada como área de risco pela DC, o município tem que incorporar tais considerações no plano diretor;
  • Investir em monitoramento de variáveis climáticas, meteorológicas e hidrológicas, para que tenhamos melhor capacidade de previsão;
  • Por último, realmente por último, instalar e aprimorar estruturas físicas para redução de desastres (diques, muros de contenção, etc.), somente onde for imprescindível.

Governos dizem adotar medidas

Ao Estadão, a prefeitura de Porto Alegre informou ter investido junto com o Departamento Municipal de Água e Esgotos (Dmae) R$ 592 milhões em obras relacionadas à prevenção de cheias ou que amenizam situações de alagamentos na cidade desde o início do mandato de Sebastião Melo, em 2021.

Em 2023, disse ter investido R$ 108,8 milhões em obras de macrodrenagem na capital para melhoria na infraestrutura para manejo de águas pluviais, no sistema de proteção contra a cheia, na manutenção do sistema de drenagem pluvial e dragagem e desassoreamento de arroios, entre outros.

Sobre o Plano de Contingências de Proteção e Defesa Civil de Porto Alegre e o Plano de Ações Emergenciais de Proteção e Defesa Civil em Áreas de Muito Alto Risco, aprovados em 2022, a administração municipal afirmou ser “a primeira vez que a capital tem um projeto que determina ações emergenciais para caso de desastres”, mas não deu detalhes sobre a implementação dos planos e sobre por que não foram capazes de reduzir o impacto das chuvas.

Em relação à Defesa Civil municipal, informou que a estrutura de servidores foi reforçada com a contratação de 32 profissionais, que eram apenas dez no início da gestão atual do Executivo. Declarou que a partir de 2022 o órgão recebeu mais de R$ 2,3 milhões em equipamentos como veículos, roupas de neoprene e bote inflável.

Por fim, realizou em parceria com o Serviço Geológico do Brasil a primeira atualização desde 2013 de um estudo das áreas de risco da cidade, que mapeou 142 áreas vulneráveis nas quais vivem 20.884 famílias.

A ideia do Brasil como um País menos suscetível a desastres, por estar fora das zonas de maior incidência de fenômenos como terremotos, furacões ou erupções vulcânicas, tem ficado para trás.

Entre 2013 e 2022, 93% dos municípios brasileiros foram atingidos por desastres, principalmente tempestades, inundações e enxurradas que levaram ao registro de estado de emergência ou calamidade pública, de acordo com um estudo da Confederação Nacional de Municípios (CNM).

Esses eventos afetaram diretamente mais de 4,2 milhões de pessoas, que tiveram de deixar suas casas, e danificaram mais de 2,2 milhões de moradias em todo o País nesses dez anos.

Os números não incluem os quatro eventos que atingiram o Rio Grande do Sul em menos de um ano – em junho, setembro e novembro de 2023 e maio de 2024, ainda em curso, considerado o maior desastre do Estado.

Com projeções que indicam um aumento expressivo de inundações e outros fenômenos extremos nas próximas décadas, sobretudo no Sul e Sudeste, o professor do Instituto de Pesquisas Hidráulicas da UFRGS Gean Paulo Michel avalia que a gestão de risco de desastres no Brasil ainda é mais reativa do que preventiva.

Viaduto fica cercado pela água em Porto Alegre Foto: Andre Penner/AP

Ao Estadão, ele afirma que obras estruturais precisarão levar em conta o aumento na magnitude e frequência dos eventos climáticos extremos, mas aponta as medidas não estruturais como as mais importantes para evitar catástrofes como a do Rio Grande do Sul.

Leia a entrevista completa abaixo.

Quando falamos de construir resiliência para reduzir o impacto de desastres relacionados às chuvas, do que exatamente estamos falando?

A ideia é que as cidades sejam resilientes do ponto de vista dos desastres e tenham maior capacidade de enfrentamento destes eventos extremos. Isso passa por diferentes tipos de medidas, que podemos enquadrar em estruturais e não estruturais. As medidas mais importantes são realmente as não estruturais para criar uma cultura de prevenção de risco: ter educação voltada para a redução de desastres, núcleos comunitários de Defesa Civil (NUPDECs), mapeamento das áreas propensas a estes eventos e sistemas de alerta para estes desastres.

Do ponto de vista estrutural, como os eventos parecem estar se tornando maiores e mais frequentes, as obras precisam se adequar a essa realidade. Um exemplo concreto seria a definição da altura de uma ponte, que, a partir do projeto de engenharia, é estabelecida para que a ponte não seja atingida por um evento com um determinado tempo de retorno que em geral é de cerca de 100 anos. Ou seja, estatisticamente falando, haveria a cada ano apenas 1% de chance de um evento superar a altura dessa ponte.

Com as mudanças climáticas, a tendência é que essa chance aumente, e as estruturas estejam mais expostas aos processos físicos como as inundações, por exemplo. Então, daqui pra frente precisaremos considerar esse aumento na magnitude e frequência dos eventos nos projetos de engenharia, ou seja, a situação não é mais estacionária.

Água do Guaíba invadiu Porto Alegre e atingiu diversos bairros Foto: Carlos Fabal/AFP

Mas perceba que, em Porto Alegre, o problema não foi esse. O sistema de proteção contra cheias do município foi projetado para um evento com tempo de retorno muito alto, e o topo do sistema está na cota 6 metros. Esta enchente alcançou a cota de 5,35 metros aproximadamente, ou seja, não superou o evento para o qual o sistema de proteção foi projetado. Então qual foi o problema? Nenhum sistema funciona sem a manutenção adequada, a qual não ocorreu no sistema de Porto Alegre.

Na sociohidrologia, tem um fenômeno que chamamos de “efeito dique”. Ele ocorre quando uma estrutura cria a sensação de segurança e, consequentemente, a comunidade que está atrás dela não cria nenhum outro mecanismo de enfrentamento do problema, no caso a inundação, que o dique supostamente está segurando... foi exatamente o que ocorreu em Porto Alegre. Esse “efeito dique” foi muito relatado na literatura associada aos problemas da inundação da cidade de Viena pelo Rio Danúbio.

Temos algum bom exemplo de cidade ou território no Brasil que tenha implementado uma grande recuperação após um desastre climático, incorporando os princípios de resiliência e adaptação?

No meu ver, infelizmente esses casos inexistem no Brasil. O Brasil nunca desenvolveu uma cultura de prevenção, mesmo com desastres bastante significativos assolando a população. No Brasil, a gestão de risco de desastre é ainda muito reativa, ou seja, atua fortemente na resposta, como um bombeiro apagando o fogo.

Não concordo em usar o termo “desastre climático” para se referir ao que vem acontecendo no Rio Grande do Sul, por dois motivos. O primeiro é que do ponto de vista conceitual, segundo a Cobrade (Classificação e Codificação Brasileira de Desastres), os desastres que ocorreram lá são enquadrados como desastres hidrológicos (inundações e alagamentos) e geológicos (os movimentos de massa). O segundo é que quando usamos a ideia de desastre climático, vem associado a isso a premissa de que a culpa é da mudança climática e surge a impressão de que nada poderia ser feito na escala de um estado ou município para prevenir ou mitigar o desastre.

Eventos extremos como os que ocorreram no RS até podem ter tido influência das mudanças climáticas, porém outros eventos muito similares já ocorreram no passado e certamente ocorrerão, talvez com maior frequência, no futuro. Ou seja, o desastre poderia ter sido evitado caso houvesse uma gestão de risco de desastres adequada. Obviamente que as mudanças climáticas são uma realidade e vão nos impor situações cada vez mais difíceis, mas isso não é justificativa para não termos a devida capacidade de enfrentamento destas situações.

Inundação atingiu o Aeroporto Salgado Filho, em Porto Alegre Foto: Wesley Santos/Reuters

Como seria essa gestão adequada do risco?

Tudo começa com os governos levando a sério a Defesa Civil (DC) local. A DC tem uma frase célebre que é: “Não existe risco zero”. Essa frase é sensacional porque sempre nos remete à ideia de que temos que estar prevenidos e preparados para um evento que possa ocorrer. Veja que isso é diferente de ser paranoico... isso é ser consciente.

Neste contexto, as nossas comunidades precisam saber evitar situações de risco, locais que apresentam maior exposição ao perigo precisam saber reduzir suas vulnerabilidades, podendo fazer isso através de organização social, criação de núcleos comunitários de Defesa Civil, treinamentos, etc. Nossos municípios precisam ter planos de contingência, que apresentem os riscos existentes nos municípios, como funciona o sistema de alerta, em que situações soará o alarme, como se deve realizar a evacuação, quem é responsável por cada atividade, onde estão os abrigos e quais são as rotas, o que significa que estaremos organizados e treinados para quando um evento extremo acontecer.

As crianças precisam aprender sobre risco nas escolas, realizar simulados, evacuação. A ideia é que a temática de risco seja assunto cotidiano e de comum saber entre as pessoas. E o melhor, as medidas não estruturais são as que geram maiores efeitos, as mais baratas e de maior duração. Mas elas não dão votos.

Quais os principais pontos da recuperação e o planejamento que precisa ser feito nas cidades gaúchas e em outras cidades brasileiras?

Eu diria que as prioridades de recuperação passam por:

  • Fortalecer uma cultura de gestão de risco e prevenção na nossa população, através de iniciativas que visam ao empoderamento das populações acerca da dinâmica dos perigos existentes e como reduzir a sua vulnerabilidade e exposição, como os projetos Cidades Resilientes, Defesa Civil na Escola, o incentivo à criação de núcleos comunitários de Defesa Civil (NUPDECs) e ao desenvolvimento de projetos de Ciência Cidadã. Medidas simples como pintar nos postes da cidade a altura do nível que a água alcançou em determinada inundação podem gerar um estado de percepção que naturalmente leva a ações de prevenção por parte da população;
  • Fortalecer as estruturas de Defesa Civil e órgãos associados, com recursos humanos capazes de propor soluções. A maioria das secretarias de Defesa Civil municipais no Brasil não conta com profissionais concursados que trabalham continuamente com esta temática. É comum que a cada troca de governo a equipe seja renovada e muitas vezes profissionais sem experiência nesta temática são indicados. Essa falta de continuidade demonstra a grande fragilidade das estruturas de DC municipal e a dificuldade que se tem em avançar na cultura de gestão de risco. A Defesa Civil precisa ser levada mais a sério nestas prefeituras e profissionais qualificados precisam ocupar essas posições, continuamente. Nos municípios de maior porte, onde as DCs já estão mais estruturadas, o enfoque precisa ser o de prevenção e não o de resposta. As deliberações da DC precisam ser levadas a sério no governo municipal: quando determinada área é considerada como área de risco pela DC, o município tem que incorporar tais considerações no plano diretor;
  • Investir em monitoramento de variáveis climáticas, meteorológicas e hidrológicas, para que tenhamos melhor capacidade de previsão;
  • Por último, realmente por último, instalar e aprimorar estruturas físicas para redução de desastres (diques, muros de contenção, etc.), somente onde for imprescindível.

Governos dizem adotar medidas

Ao Estadão, a prefeitura de Porto Alegre informou ter investido junto com o Departamento Municipal de Água e Esgotos (Dmae) R$ 592 milhões em obras relacionadas à prevenção de cheias ou que amenizam situações de alagamentos na cidade desde o início do mandato de Sebastião Melo, em 2021.

Em 2023, disse ter investido R$ 108,8 milhões em obras de macrodrenagem na capital para melhoria na infraestrutura para manejo de águas pluviais, no sistema de proteção contra a cheia, na manutenção do sistema de drenagem pluvial e dragagem e desassoreamento de arroios, entre outros.

Sobre o Plano de Contingências de Proteção e Defesa Civil de Porto Alegre e o Plano de Ações Emergenciais de Proteção e Defesa Civil em Áreas de Muito Alto Risco, aprovados em 2022, a administração municipal afirmou ser “a primeira vez que a capital tem um projeto que determina ações emergenciais para caso de desastres”, mas não deu detalhes sobre a implementação dos planos e sobre por que não foram capazes de reduzir o impacto das chuvas.

Em relação à Defesa Civil municipal, informou que a estrutura de servidores foi reforçada com a contratação de 32 profissionais, que eram apenas dez no início da gestão atual do Executivo. Declarou que a partir de 2022 o órgão recebeu mais de R$ 2,3 milhões em equipamentos como veículos, roupas de neoprene e bote inflável.

Por fim, realizou em parceria com o Serviço Geológico do Brasil a primeira atualização desde 2013 de um estudo das áreas de risco da cidade, que mapeou 142 áreas vulneráveis nas quais vivem 20.884 famílias.

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