SÃO PAULO - A suposta falta de um sistema de monitoramento em tempo real do desmatamento da Amazônia foi justificado pelo Ministério do Meio Ambiente como o motivo para o aumento de 30% da perda da floresta no ano passado e foi o argumento usado para a contratação de serviços privados que possam fornecer esse tipo de informação.
Conforme o Estado divulgou nesta quarta-feira, 3, a pasta publicou um edital com valor previsto de R$ 78,5 milhões para contratar serviços de monitoramento por satélite e geoprocessamento semelhantes aos hoje já prestados pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). (Atualização às 13h14: o pregão foi suspenso por oito dias.)
O secretário executivo do ministério, Marcelo Cruz, afirmou que o objetivo não é substituir o Prodes, sistema que fornece a taxa oficial anual de perda da Amazônia há quase 30 anos. “Mas eu preciso que minhas equipes de fiscalização identifiquem o polígono correto que temos de atacar para inibir o desmatamento com comando e controle”, disse.
Segundo ele, a alta observada no ano passado foi um “susto”. “O desmatamento estava aumentando desenfreadamente e a gente não tinha nenhuma sinalização de quem quer que seja. A gente não tinha como dar suporte para a fiscalização”, disse.
Ele alega que outro sistema do Inpe, o Deter, criado justamente para fornecer alertas em tempo real para guiar a fiscalização, “não está resolvendo”. O instrumento é rápido, mas “míope”, e de fato não enxerga quando há muitas nuvens. Mas foi com ele, que existe desde 2004, que o governo conseguiu em anos anteriores obter informações a partir dos alertas que permitiram agir e reduzir o desmatamento. A queda de 2004 a 2012 foi de 83%. A partir de 2014, a taxa voltou a subir.
Mais recentemente, para tentar reduzir algumas deficiências, o Inpe desenvolveu o Deter-B, um pouco mais preciso, e trabalhava no desenvolvimento do Deter-C. Outro projeto em desenvolvimento, previsto para agosto, é um Prodes mensal, com a precisão do Prodes anual, mas com a vantagem de trazer dados sobre o que está ocorrendo no solo de modo mais rápido.
Segundo o diretor executivo do MMA, o modelo de contratação previsto no edital não obriga que se use os serviços. “Se o Inpe desenvolver isso, paramos de demandar aqui. Mas não dá para esperar todo esse desenvolvimento. A responsabilidade institucional pelo combate ao desmatamento não é do Inpe, mas do MMA.”
Questionado pela reportagem se, em vez da falta de dados, o problema da alta do desmatamento não teria sido a redução do orçamento do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) nos últimos anos e a diminuição das equipes de fiscalização, Cruz respondeu: “Acho que é um conjunto. Houve efetivamente corte orçamentário, não foram feitos concursos públicos, teve a própria questão do impeachment, que incentiva determinadas práticas. Mas essa sistemática (do Inpe) não evoluiu na velocidade necessária. Quando se perde recursos humanos, tem de ganhar em inteligência e no planejamento. O Inpe está desenvolvendo alternativas. Nós buscamos o que já funciona”.
Ele defende que uma combinação de satélites ópticos com radares poderia resolver o problema. “Nossa expectativa é que se a gente conseguir identificar com mais precisão esses pontos e a gente tiver condição orçamentária para fazer as equipes de fiscalização ir ao ponto correto, a expectativa é reduzir 20% o desmatamento.”
Para um especialista em combate ao desmatamento ligado ao governo que falou ao Estado em condição de anonimato, não é isso que vai resolver o problema. “De fato existem alguns fatores limitantes, como as nuvens, mas hoje o Ibama não dá conta de lidar com os dados que o Inpe envia quase todos os dias para fins de fiscalização. Não tem força para tal”, relatou.
“O combate ao desmatamento não precisa de mais informações. Todos sabemos onde ele está. O problema é a falta de capacidade do ministério de atacar problemas que são mais estruturais. Enquanto estão querendo mais dados, o governo está reduzindo um monte de unidades de conservação. As ações federais são contrárias a uma visão de combate ao desmatamento”, complementou.
Inpe. O diretor do Inpe, Ricardo Galvão, disse que participou de diversas reuniões com o Ibama e o MMA e nunca foi feita nenhuma crítica ao trabalho do Inpe. Ele explicou que os dados brutos do Deter são repassados diariamente ao Ibama, mas que esses dados precisam ser analisados corretamente para identificar os desmatamentos com precisão.
Segundo um acordo de cooperação técnica firmado no fim do ano passado, o Inpe fornece uma interpretação semanal dos dados, mas o Ibama também realiza análises próprias. “Tem havido muitas discordâncias sobre isso”, disse Galvão. “Uma coisa é dado, outra coisa é interpretação. Se o Ibama usou os dados erradamente, não é culpa do Inpe.”
O pesquisador Gilberto Camara, ex-diretor do Inpe e especialista em monitoramento ambiental, complementou: "O sistema do Deter gera dados confiáveis de forma rápida. Afirmações de que é ineficiente não têm base científica sólida."
Segundo ele, o edital duplica não só o Prodes como outros serviços já prestados ou em fase de desenvolvimento no Inpe. Entre eles, o programa de monitoramento do desmatamento no Cerrado, financiado pelo Banco Mundial, no valor de US$ 9,5 milhões.
Segundo Camara, a licitação do MMA “rompe com a ordem estabelecida” por leis e decretos federais, que atribuem ao Inpe a competência para monitorar o desmatamento em todos os biomas brasileiros. Cerca de 25% do edital, segundo ele, é redundante com o trabalho do Inpe – enquanto que o restante se refere, principalmente, a serviços básicos de tecnologia da informação.
“Estranhamos que o MMA, sem consulta aos órgãos técnicos, lance um edital de tal abrangência e que desrespeita as atribuições que vem sendo dadas ao Inpe pelo governo federal”, disse o coordenador do Programa Amazônia do Inpe, Dalton Valeriano. “Grande parte do que está sendo solicitado nesse edital poderia ser fornecido pelo Inpe, sem problemas”, disse Galvão. Incluindo, segundo ele, a interpretação de imagens de radar e monitoramento de manchas de óleo no mar.
Empresa mais cotada nega similaridade com Prodes
A empresa mais cotada para vencer a concorrência, segundo fontes ouvidas pelo Estado, é a HEX Tecnologias Geoespaciais, com sede em Brasília, que já presta serviços a várias agências e autarquias federais, incluindo o próprio Ibama, a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) e a Eletrobrás.
Segundo Marcelo Cruz, diretor executivo do Ministério do Meio Ambiente, no entanto, a empresa entrou nesta quarta-feira, 3, com um pedido de impugnação do edital em relação à "composição do preço global". O pregoeiro oficial deve tomar uma decisão até esta quinta. Cruz negou possíveis favorecimentos. "Se eles fizeram o pedido, é porque a proposta não deve ser tão boa para eles".
Procurado no início da tarde de quarta pela reportagem, o diretor da HEX, Leonardo Barros, confirmou que a empresa tinha interesse no edital e estava trabalhando intensamente numa proposta. Ele disse que o prazo do edital era realmente curto, mas "não fora do padrão para o governo federal". "Não me recordo de ter participado de outro pregão que não tivesse esse estresse", disse.
A licitação foi aberta em 20 de abril e o pregão será realizado hoje, 4 de maio. Considerando os feriados de Tiradentes e do Dia do Trabalho, foram apenas 8 dias úteis - que é mínimo exigido por lei. O documento com as especificações técnicas e legais do contrato tem 162 páginas.
Barros discorda da opinião de pesquisadores do Inpe, de que o edital reproduz serviços de monitoramento ambiental já prestados pelo instituto - incluindo o sistema Prodes, responsável por mapear e quantificar as taxas anuais de desmatamento na Amazônia.
Não vejo que o edital concorre em absoluto com o Prodes", disse, citando o uso de imagens de radar como um dos diferenciais. "São parâmetros e especificações, tanto de imagens quanto da geração de informações, diferentes do Prodes. Não poderiam sequer ser comparadas."
Barros destacou ainda que o escopo do edital é bem mais amplo do que o Prodes, abrangendo vários serviços além do monitoramento de desmatamento, como a detecção de manchas de óleo no oceano. Ele negou que a HEX seja a única capacitada a concorrer pelo contrato. "Temos concorrentes", disse. "Claro que não vão aparecer 20 empresas. Em qualquer processo dessa natureza é normal que apareçam poucas concorrentes. É um nicho."
"Existem algumas empresas com condição de participar do processo", disse o diretor de negócios da Tecnomapas, Anilton Novais, que até ontem estava avaliando a proposta do edital. Ele disse que o prazo de 8 dias "não é normal, mas atende a legislação". "Para que houvesse uma melhoria da competitividade acho que o ideal seria um prazo maior."