BELÉM – A alta de crimes contra povos quilombolas e indígenas na Amazônia Legal tem feito algumas dessas comunidades recorrerem a tecnologias, como GPS e até drones, para proteger seus territórios. Como mostrou o Estadão, somente no Pará, a violência contra esses povos quadruplicou em dois anos. Foram 232 registros no ano passado, segundo levantamento da Rede de Observatórios da Segurança.
“Algumas comunidades estão instalando câmeras de segurança, drone e outras colocaram até cerca. São os métodos alternativos que essas comunidades estão criando para poder se proteger”, disse Aiala Colares Couto, pesquisador da Universidade do Estado do Pará (UEPA) e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP).
As medidas, segundo ele, têm sido adotadas para tentar blindar os territórios diante de um avanço do crime organizado, que se aproveitou da “presença precária do Estado” nesses espaços. “Como são territórios que estão sendo invadidos constantemente, isso coloca principalmente as lideranças e as pessoas que convivem diretamente na comunidade em uma situação de risco”, afirmou.
Atualmente, o Comando Vermelho (CV) é dominante na região Norte, mas o Primeiro Comando da Capital (PCC) tem se aliado a facções menores, como Comando Classe A e o Revolucionários do Amazonas (RDA), para tentar aumentar a presença nessa rota. As comunidades quilombolas e indígenas são usadas como esconderijo diante de operações policiais e também como pontos estratégicos para passar a droga.
“Quando o governo aperta o cerco aqui em Belém, dentro dos grandes bairros onde tem esse tráfico pesado, eles vão todos para as pequenas cidades. Quando chegam nelas, vão para a área rural e acabam entrando na vulnerabilidade da comunidade. E vão ficando lá”, disse Raimundo Hilário, coordenador-executivo da ONG Malungu e liderança de uma comunidade quilombola em Salvaterra (PA).
Segundo ele, o avanço da violência nas comunidades tradicionais tem gerado uma rotina de tensão entre os povos tradicionais. Em resposta a isso, muitos passaram a adotar medidas de segurança extras nos últimos anos, em uma espécie, como ele próprio chama, de “liberdade forjada”. O medo entre os moradores é constante.
“A gente orienta que as pessoas andem em grupo, de cinco pessoas para cima. Não dá para sair com dois, não dá para sair só, porque eles já demonstraram um poder muito grande de fogo”, disse Hilário. “Para o quilombola sair de dentro do território ele tem que dizer para onde vai, o que vai fazer, que horas volta, por que você vai. Isso é humilhante.”
No território quilombola de Abacatal, em Ananindeua (PA), uma portaria foi instalada anos atrás na tentativa de aumentar a segurança das cerca de 600 pessoas que vivem por lá. Moradores se revezam para ficar de sentinela no local. A medida, replicada por outras comunidades da região, envolve anotar os nomes de visitantes e até placas de carro.
“Achamos que seria importante tanto para aumentar nossa segurança por aqui, quanto para evitar a exploração indevida das plantações aqui dentro”, disse Yaô Turi Omonibo, uma das lideranças da comunidade. Segundo ela, outra tática é manter uma comunicação ativa em grupos de WhatsApp. “Qualquer movimentação estranha, avisamos por lá.”
‘A gente tem de se colocar como barreira de defesa dos nossos territórios’
Medidas como essa também são observadas em outros locais da Amazônia Legal. Liderança indígena em comunidade do Amapá e coordenador-executivo da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), Kleber Karipuna afirma que vários povos começaram a trabalhar de forma mais ativa na tentativa de proteger suas comunidades nos últimos anos e denunciar invasões de forma mais ágil.
Os grupos buscam implementar até tecnologias para incrementar as chamadas “andanças”, espécies de rondas pelos territórios. “Tem uso de equipamentos como drones, para fazer monitoramento aéreo; GPS, para tirar coordenadas; câmeras fotográficas. Muitos hoje estão atuando até com aquela câmera de sensor na mata”, disse Karipuna. “Estão começando a se instrumentalizar melhor para realizar esse trabalho.”
Segundo Marciely Tupari, liderança de uma comunidade em Rondônia e integrante da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), os grupos também recorrem a aplicativos para denunciar ações suspeitas. Um exemplo é o Alerta Clima Indígena, do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam). “A gente tem de se colocar como barreira de defesa dos nossos territórios para que o domínio do tráfico não avance ainda mais”, disse.
Apuração do Ministério Público do Estado do Pará (MPPA) aponta que, sozinho, o Comando Vermelho hoje tem cerca de 11 mil faccionados no Estado, segundo balanço divulgado em junho. A cada doze meses, cerca de mil novos integrantes entram no braço da organização no Pará. Nos dois últimos anos, 137 suspeitos foram denunciados pelo órgão por organização criminosa – o grupo é considerado a principal facção na Região Norte.
Autoridades focam em desintrusão de terras e desarticulação de facções
Com a criação do Ministério dos Povos Indígenas, o governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT) montou um comitê interministerial de Desintrusão de Terras Indígenas, que reúne órgãos da administração pública federal e da sociedade civil organizada para realizar a retirada de invasores das comunidades tradicionais. No fim do primeiro semestre, integrantes do grupo começaram a se reunir para pensar ações no Vale do Javari, no Amazonas – o prazo para apresentar as medidas é de 180 dias.
Em nota, o ministério disse que esse trabalho já identificou a situação de emergência tanto na terra indígena Yanomami, quanto na região dos Munduruku, devido ao garimpo ilegal. “Nossa atuação tem sido efetivar as desintrusões, coibir novas invasões e punir os infratores que invadem terras indígenas”, afirma. No fim de junho, o órgão concluiu a desintrusão do território indígena Alto Rio Guamá, no sudoeste do Pará, atendendo a uma decisão judicial.
Sobre a proteção de lideranças indígenas, a pasta afirma que tem dialogado com o Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania para a inclusão de lideranças no Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos, Comunicadores e Ambientalistas (PPDDH). “O MPI já trabalha com o comitê gestor desse programa para adequar o atendimento às lideranças indígenas que estão sob ameaça, além de articular escoltas policiais em situações específicas de lideranças que não podem circular sem apoio policial.”
Em evento do Fórum Brasileiro de Segurança Pública realizado no fim de junho, o chefe da Secretaria de Inteligência e Análise Criminal da Polícia Civil do Pará, delegado André Costa, disse que 53 pessoas são acompanhadas rotineiramente em programa de proteção do Estado. “A gente faz o acompanhamento não só somente de pessoas ligadas a ameaças do extrativismo vegetal, mas de indígenas e também da população quilombola”, disse. Outros 55 casos estavam em análise.
O Comando Militar do Norte (CMN) do Exército Brasileiro disse, em nota, que realiza operações em coordenação com as agências e órgãos de segurança pública. “Destacam-se as Operações Verde Brasil e Samaúma, cujo foco das atividades é o combate a crimes ambientais, como desmatamento e garimpo ilegal”, afirmou. “Especificamente nas terras indigenas, o Comando Militar do Norte tem cooperado no combate a ilícito, realizando ações na faixa de fronteira.”
Também em nota, a Polícia Federal afirmou que conduziu 14 operações especiais de repressão qualificada em terras indígenas neste ano, resultando em R$ 1,9 milhão em bens apreendidos, além de 26 prisões em flagrante. “Além disso, foram cumpridos 13 mandados de prisão preventiva, quatro mandados de prisão temporária e 82 mandados de busca e apreensão”, disse. O órgão também afirmou contribuir com operações de desintrusão e com operações para desestruturar “logística, administrativa e financeiramente organizações criminosas especializadas em crimes de mineração ilegal e outros delitos”.
*Repórter viajou a Belém a convite do Fórum Brasileiro de Segurança Pública