Entre atualizações divulgadas praticamente de hora em hora pela MetSul durante a enchente histórica que assola o Estado do Rio Grande do Sul, chama atenção um “desabafo” publicado na conta da empresa gaúcha de meteorologia no X, antigo Twitter, na quarta-feira, 8. “Ninguém tem prazer em informar desastres e muito menos prevê-los”, diz a mensagem.
O texto, que já ultrapassou as 30 mil curtidas, responde a ataques dirigidos contra a MetSul na rede social, que a acusam de ser alarmista e assustar a população.
“Por vezes chega alguma mensagem desaforada, até de alguns colegas de profissão dizendo que a gente usa palavras muito fortes nos alertas, que a população está em pânico”, diz ao Estadão Estael Sias, diretora da MetSul. “Se a gente não for incisivo e claro, objetivo, e dar a real gravidade das situações, as pessoas não reagem”.
Apesar de ser uma empresa privada, a MetSul tradicionalmente divulga boletins e alertas meteorológicos em seu site e nas redes sociais. O conteúdo atinge cerca de dois milhões de pessoas, segundo a diretora, e conquistou seguidores fiéis que confiam há anos nas informações.
Como está funcionando a operação da MetSul
Hoje Sias comanda a MetSul com os sócios Luiz Fernando Nachtigall e Alexandre Aguiar. O professor Eugenio Hackbart, fundador da empresa, morreu em 2020.
Com as inundações que atingem praticamente todos os municípios do Estado e já afetaram mais de 1,7 milhão de pessoas, segundo dados da Defesa Civil da noite de quinta-feira, 9, causando 107 mortes até o momento, a equipe da MetSul está dividida entre Porto Alegre e o litoral e tem tentado manter a rotina de trabalho, que ficou mais longa com os pedidos de ajuda, demandas de entrevista e de dados por parte dos municípios em estado de emergência.
O trabalho segue mesmo com os meteorologistas fora de suas casas desde a semana passada – eles também foram severamente impactados pelo desastre.
Grande parte dos profissionais são residentes na Grande Porto Alegre. Sias e Nachtigall moram em Canoas, município que tem cerca de 60% do território debaixo d’água e mais de 150 mil desalojados.
“Nós estamos sem saber o que vamos encontrar quando a gente retornar. A gente continua tentando manter a operação da empresa, com site e canais atualizados. Eu tinha um mini estúdio em casa que foi inundado, então tenho gravado alguns vídeos com o que eu tenho, só notebook e celular”, conta.
A meteorologista relata ao Estadão ter saído de casa com apenas três mudas de roupa, esperando poder retornar na sexta-feira, 3. Mas um alerta de interdição dos acessos a Porto Alegre a deixou temerosa de ficar separada dos filhos e ela decidiu permanecer na capital gaúcha, onde está instalada provisoriamente na casa de amigos com os filhos e os dois cachorros.
“A gente está emocionalmente abalado e tendo que continuar prevendo, alertando e trazendo mais notícias ruins, tendo que explicar para a população que isso vai se prolongar ainda por muito tempo. É muito angustiante trabalhar nessas condições, mas eu não vejo outra forma”, diz Estael.
Além do emocional, a equipe também enfrenta o desafio técnico de trabalhar com dados que não domina totalmente depois que se ultrapassou a referência da enchente histórica que atingiu Porto Alegre em 1941, até então o marco de pior cenário para o Estado. Com isso, apesar das acusações de exagero nos alertas, eles têm buscado ser ainda mais cuidadosos nas atualizações e análises para lidar com um cenário que “é extraordinário e muito complexo”.
Estael se formou na Universidade Federal de Pelotas (UFPel, fez mestrado na Universidade de São Paulo (USP) na área de tempestades e trabalhou por quase sete anos na Defesa Civil de São Paulo “adquirindo experiência no monitoramento e alerta de tempo severo e amplo conhecimento do Sistema Defesa Civil”, como informa o site da empresa de meteorologia. Desde 2012 é sócia-proprietária da MetSul.
A MetSul na maior tragédia do RS
As primeiras previsões para as chuvas fortes que atingiram o Estado a partir de 27 de abril foram publicadas no site da MetSul três dias antes, na quarta-feira, 24.
Em 28 de abril, a empresa divulgou um alerta indicando grave risco de enchentes no Sul por chuva excessiva a extrema. “Cenas de 2023 de cidades alagadas vão se repetir”, publicou em sua conta no X. Nos canais do governo do Rio Grande do Sul, o alerta de inundação veio somente no dia seguinte, em um vídeo protagonizado pelo governador Eduardo Leite.
Desde então, a empresa tem seguido com atualizações diárias da previsão meteorológica para o Rio Grande do Sul, sobre as enchentes e níveis dos rios.
O primeiro aviso da MetSul às autoridades do Estado sobre o ano de “super El Niño”, marcado por vários eventos climáticos extremos, foi feito ainda em junho de 2023, quando Sias falou para prefeitos e secretários em um evento da Federação das Associações de Municípios do Rio Grande do Sul (Famurs).
“Eu fiz um alerta que os municípios teriam situações muito complicadas e que contratassem metrologistas e reforçassem suas Defesas Civis”, afirma.
O primeiro dos quatro desastres recentes que atingiram o Estado aconteceu cerca de uma semana depois da fala de Estael no congresso da Famurs. Ela explica que a dimensão e a intensidade do evento climático só pode ser prevista com precisão a curto prazo.
“A gente trabalha em terreno desconhecido e só quem faz erra e acerta. Certamente a gente vai errar alguns prognósticos. Assim eu espero, e que não seja na gravidade que a gente está enxergando, por exemplo, para a zona sul (do Estado) Mas a gente está trabalhando pelas pessoas, para poder proteger, pensar preventivamente”, diz Sias.
Para ela, os meteorologistas ainda lidam com a descrença e com reações de indignação quando o evento se mostra menos grave do que anunciado, sintomas da falta de uma cultura de prevenção no país que leva à dificuldade em evacuar as áreas de risco.
Única a prever tragédia em São Sebastião
Embora a empresa gaúcha concentre majoritariamente sua atuação e previsões no Estado de origem, onde estão quase todos os seus clientes, ela foi a única a anunciar que o volume da chuva no litoral norte de São Paulo durante o carnaval de 2023 seria superior a 600 milímetros (o equivalente a 101 mil piscinas em um dia). A maior parte dos institutos de meteorologia alertavam para uma precipitação de 200 mm, que já é considerada extrema.
A chuva que caiu em São Sebastião entre 18 e 19 de fevereiro foi a maior já registrada em 24 horas na história do Brasil.
A diretora da MetSul conta que o medo de errar pode ser um obstáculo para que meteorologistas alertem para eventos extremos, que fogem de qualquer parâmetro.
“Não é fácil saber que uma cidade inteira vai ser evacuada por um alerta que tu fez, por mais que tu tenha conhecimento técnico, que esteja vendo os dados. Não é chute, mas nos exige muita coragem. Se tu erra num feriadão, tu é condenado e lembrado pra sempre. É um carimbo de fracasso nas tuas costas”.