WASHINGTON POST - Quando fortes chuvas atingiram o sul do Brasil, Moisés Alexandre Heck de Carvalho se preparou para enchentes na altura do peito, como as que o País havia visto em 2020. Mas as águas subiram tanto que o homem de 43 anos pegou sua TV e fugiu para o telhado. Passou duas noites lá em cima, esperando ajuda.
No início do mês, do outro lado do globo, as ruas sinuosas de Hong Kong se transformaram em corredeiras. Wise Hui, estudante de 20 anos, disse que as chuvas ligadas a um tufão vieram mais repentinamente do que ela jamais tinha visto.
E também ocorreu uma torrente de chuvas sobre o nordeste da Líbia na segunda-feira, deixando 5,3 mil mortos e milhares de desaparecidos depois daquela que talvez tenha sido a mais feroz de uma onda de inundações recentes que devastaram comunidades em países que vão do Japão à Grécia e aos Estados Unidos.
O calor recorde deste verão ajuda a explicar a intensidade e a persistência das inundações, dizem os cientistas, um fenômeno que os modelos climáticos há muito previram que ocorreria com o aumento das temperaturas.
No entanto, “estou um pouco chocado com a quantidade de inundações este ano”, disse Michael Bosilovich, cientista do Centro de Voo Espacial da Nasa que se concentra no ciclo da água na Terra.
Em cada caso, os fatores que levaram às catástrofes variaram: um padrão meteorológico estagnado permitiu que tempestades estacionassem sobre Espanha, Grécia, Turquia e Bulgária. No sul da China, a cauda do tufão Haikui colidiu com as monções. Na Líbia, até 40 centímetros de chuva em paisagens desérticas sobrecarregaram reservatórios e represas.
Mas o notável calor do planeta – especialmente dos oceanos, a maioria dos quais vários graus mais quente do que o normal há meses – serviu de pano de fundo para todas as inundações.
É muito cedo para saber até que ponto o aquecimento global, causado pelo uso de combustíveis fósseis pelos seres humanos, contribuiu para qualquer dilúvio. Mas os cientistas afirmam que não há dúvida de que a água mais quente é mais propensa à evaporação e que o ar mais quente pode transportar mais vapor de água, fatores que podem produzir chuvas e tempestades mais intensas.
“Enquanto as temperaturas médias continuarem a subir, isso vai continuar”, disse Gerald Meehl, cientista sênior do Centro Nacional de Pesquisa Atmosférica.
Uma onda de inundações em todo o planeta
No final do que já foi um verão de extremos, as inundações atingiram o hemisfério norte com notável intensidade nos últimos dias.
Em todo o Brasil, inundações mortais já haviam atingido pelo menos oito estados este ano, antes das mais recentes inundações no Rio Grande do Sul. As inundações causadas por quase 30 centímetros de chuva causada por um ciclone tropical mataram pelo menos 46 pessoas e deslocaram mais de 25 mil.
Heck de Carvalho e outros sobreviventes enfrentam uma recuperação incerta. “Estamos traumatizados”, disse ele. “Não posso ficar num lugar assim. Não sei quanto tempo vamos ficar neste abrigo, porque estamos sobrevivendo de doações. Quero sair daqui.”
Em partes da ilha japonesa de Honshu, chuvas recordes provenientes da tempestade tropical Yun-yeung mataram pelo menos três pessoas e provocaram cerca de 200 deslizamentos de terra, de acordo com o site FloodList.com.
E, em Hong Kong, as autoridades disseram que a chuva caiu a taxas de até 15 centímetros por hora – a mais intensa desde que os registos começaram, em 1884. A cidade ficou paralisada durante 16 horas. Algumas das piores inundações ocorreram ao norte de Hong Kong, perto da fronteira com a China continental, onde os agricultores locais perderam centenas de porcos nas torrentes.
Mesmo com fechamento de estradas e avisos antecipados, mais de 150 feridos e pelo menos duas mortes foram registados no auge da tempestade, disse a Autoridade Hospitalar de Hong Kong.
“Nunca pensei que os níveis da água pudessem chegar tão alto”, disse Hui. “O clima ficou muito mais extremo”.
Em todo o Mediterrâneo, um padrão climático estagnado e mares quentes contribuíram para inundações desde Espanha até à Grécia, Bulgária e Turquia. Essas inundações se desenvolveram em ambos os lados de uma teimosa cúpula de calor de alta pressão estacionada sobre o norte e centro da Europa, um padrão que tem sido a marca registrada dos verões recentes e que contribuiu para outras grandes inundações, inclusive em toda a Alemanha em 2021, disse Hayley Fowler, professor da Universidade de Newcastle.
Os sistemas de baixa pressão que se desenvolveram e permaneceram em torno da cúpula de calor mataram pelo menos três pessoas na Espanha, informou a Reuters, e 15 pessoas na Grécia, Bulgária e Turquia, segundo a Associated Press.
À medida que se deslocava da Grécia para sul, essa umidade ganhou força sobre o Mediterrâneo, tornando-se a tempestade que inundou a Líbia.
A tempestade despejou até 40 centímetros de chuva em seis horas em um terreno que normalmente apresenta menos de 2 centímetros de precipitação em setembro. Ela fluiu violentamente por represas e cachoeiras até Derna, cidade litorânea com cerca de 100 mil habitantes.
“Dizem que quase um quarto [de Derna] desapareceu por causa do furacão”, disse Tamer Ramadan, da Federação Internacional das Sociedades da Cruz Vermelha e do Crescente Vermelho, referindo-se a relatos de trabalhadores humanitários. “Eles nos dizem que dá para ver cadáveres nas ruas, em todos os lugares”.
Um dia depois, grandes inundações atingiram Massachusetts e Rhode Island, despejando até 23 centímetros na região de Leominster, Massachusetts, e causando “danos catastróficos”, disseram as autoridades. Nenhuma vítima foi registrada.
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Uma receita para chuvas excepcionais
Embora todo o hemisfério norte tenha atingido a temperatura mais quente do ano em julho, muitas massas de água ainda estão atingindo suas temperaturas máximas ou próximas a isso, porque a água demora mais tempo para esquentar. As temperaturas médias globais da superfície do mar, excluindo as regiões polares, têm oscilado em níveis recordes há seis semanas, de acordo com dados de satélite da Administração Oceânica e Atmosférica Nacional mapeados pelo Reanalisador Climático da Universidade do Maine.
As temperaturas médias globais, tanto em terra quanto no mar, estão se aproximando das mais quentes já registadas na Terra – e talvez até estabeleçam um novo recorde, superando 2016.
É uma receita para tempestades excepcionais, disseram os cientistas. Cerca de 80% da umidade que alimenta as tempestades vem dos oceanos e de outras grandes massas de água, disse Meehl. E, a cada grau de aquecimento, o ar pode reter cerca de 4% mais vapor de água.
Isso não quer dizer que as condições não produziriam chuvas torrenciais sem as tendências de aquecimento, disse Kenneth Kunkel, professor pesquisador da Universidade Estadual da Carolina do Norte. As tempestades e ciclones de verão sempre contiveram grandes quantidades de umidade e ainda exigem as condições certas para se desenvolverem.
Mas, dado o clima atual, “estão acontecendo num contexto mais rico em vapor de água”, disse ele.
No passado, já se provou que o aquecimento estava alimentando precipitações mais severas. Um estudo publicado em março concluiu que, desde 2002, os extremos de precipitação têm se correlacionado estreitamente com o aumento das temperaturas. Embora o ar mais quente possa produzir chuvas mais fortes, também pode sugar mais umidade da terra.
O estudo descobriu que os casos de condições extremamente úmidas ou secas ficaram cerca de 33% mais comuns durante os anos mais quentes, de 2008 a 2021.
“À medida que o planeta continua esquentando, parece mais provável que tenhamos mais destes eventos extremos de chuva e seca em todo o mundo”, disse Matthew Rodell, principal autor do estudo e vice-diretor de ciências da hidrosfera, biosfera e geofísica na Nasa.
O padrão climático El Niño ameaça produzir mais extremos de precipitação à medida que se aproxima do pico esperado neste inverno, com intensidade que poderia rivalizar com o El Niño histórico de 1997 e 1998. O fenômeno é conhecido por trazer condições tempestuosas para o sul dos Estados Unidos e seca no sudeste asiático e no sul da África.
Isto, juntamente com o calor global sem precedentes, pode significar que as condições continuarão propícias a fortes precipitações no ano que vem.
“Podemos esperar – não quero dizer o inesperado – mas podemos esperar que algumas áreas recebam algo altamente incomum e recorde praticamente todos os anos”, disse Kunkel.
Dan Stillman e Sarah Dadouch contribuíram para esta reportagem./ TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU