O Brasil volta a registrar altas temperaturas em razão de uma nova onda de calor. Em São Paulo, por exemplo, os termômetros podem chegar a 36ºC; em regiões como Mato Grosso, a previsão é de que as máximas atinjam 40ºC. O evento climático extremo fez o Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet) emitir alertas de “perigo” e “grande perigo” para regiões do Sudeste, Sul e Centro-Oeste.
Para Renata Libonati, professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), a nova onda de calor deve ser encarada com preocupação, sobretudo pelos gestores públicos. Pesquisadora de bioclimatologia, área da meteorologia que estuda a interação do clima com os seres vivos, Renata alerta para o potencial mortal do calor, que supera em letalidade, segundo ela, outros desastres causados por eventos extremos, como enchentes e deslizamentos.
As mortes associadas às ondas de calor são calculadas a partir de uma estatística que leva em conta o histórico de óbitos em determinada região, em um dia, nos últimos 20 anos e o valor real de óbitos que ocorreram naquela mesma data com a presença da onda de calor. Quando as mortes observadas forem maiores que as esperadas, indica excesso de óbitos.
”Entre as causas das mortes em excesso, estão doenças cardiovasculares, relacionadas aos aparelhos circulatório, respiratório, genito-urinário. Em geral, são pessoas que já apresentam comorbidade e as comorbidades são agravadas durante esses eventos. Por isso, têm a causa de morte associadas às ondas de calor”, diz ela.
Renata, que também coordena o Laboratório de Aplicações de Satélites Ambientais (Lasa), explica o motivo de definir as ondas de calor como “desastre natural negligenciado” no Brasil. E mostra como os impactos desse evento, que fica mais frequente e mais intenso com a crise climática, afetam a saúde humana e a economia.
Ela sugere caminhos de como as cidades podem tornar o impacto das altas temperaturas menos agressivo aos seus moradores, sobretudo os mais vulneráveis: pretos, pardos e pessoas de baixa escolaridade. São eles os que mais morrem em decorrência do calor.
“As ondas de calor não são democráticas”, afirma. “Uma das ações para mitigar os efeitos das mudanças climáticas e nos adaptarmos a isso é diminuir a desigualdade.”
Confira os principais trechos da entrevista.
Você costuma dizer que as ondas de calor devem ser tratadas como desastres naturais negligenciados. Por que esta definição?
Ondas de calor, aqui no Brasil, têm sido tratadas de forma negligenciada, são desastres negligenciados. Observamos que as ondas de calor têm um impacto mortal, de mortalidade mesmo, muito superior quando comparadas com outros tipos de desastres que, aparentemente, estamos mais acostumados a lidar, como deslizamentos, cheias, chuvas fortes.
A gente fez uma conta, a partir de um estudo com as principais 14 regiões metropolitanas brasileiras, que entre 2000 e 2020 foram contabilizadas cerca de 50 mil mortes associadas às ondas de calor, apenas nestas regiões. E esse número é 20 vezes maior do que o número de pessoas que morreram por deslizamentos no Brasil todo, no mesmo período.
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Então, apesar de as ondas terem um impacto na saúde pública, através de mortes e aumento de internações, esse impacto é algo invisível, não perceptível, no sentido de que ele não tem um impacto visual de destruição. Apesar de as pessoas morrerem por conta de ondas de calor, não se percebe que essas mortes são associadas às ondas de calor; e, nesse sentido, a gente tem um desastre que mata muito mais que outros, mas não é tratado como desastre por não serem identificadas a esses eventos.
A Europa começou a ter essa percepção de ondas de calor como desastre fatal a partir de ondas de calor que aconteceram na França, em 2003. Foi uma onda de calor gravíssima, que matou entre 20 mil e 40 mil pessoas. E, a partir daí, os países europeus começaram a tratar esse evento como desastre, desenvolvendo protocolos para lidar com a situação.
Hoje, 20 anos depois, a gente vê que as ondas de calor continuam, porque estamos em um contexto de aquecimento global e esses eventos passaram a ser mais intensos e mais frequentes, mas matam menos pessoas na Europa do que matou em 2003. Porque (lá) já existem protocolos que são aplicados.
No Brasil, a gente não tem isso. A gente tem a percepção de que estamos acostumados com o calor por ser de um país tropical, e não existem protocolos rigorosos, consistentes e constantes de enfrentamento e de mitigação para esse tipo de desastre. Por isso eu falo que, aqui no Brasil, as ondas de calor são desastres negligenciados.
O que é estresse térmico e quais os efeitos orgânicos que as ondas de calor provocam no nosso corpo?
O estresse térmico não está relacionado apenas com a temperatura, mas também com umidade relativa do ar, incidência de radiação solar, a velocidade do vento, entre outras variáveis.
Então, em geral, o estresse térmico são condições ambientais relacionadas com essas variáveis que fazem com que o corpo humano passe a ter uma sensação desconfortável e várias consequências, como desidratação, confusão mental, cansaço. E as ondas de calor, obviamente, fazem parte de eventos que exacerbam esses estresse térmico.
Como essa onda de calor pode contribuir para esse desconforto térmico e para esse estresse térmico e desencadear para uma morte?
Podemos falar disso em termos fisiológicos, mas acho mais interessante discutir a questão de que esse estresse térmico e essas ondas de calor não são democráticas. Elas não atingem todo mundo de forma igual. Muito pelo contrário.
Existem grupos mais vulneráveis aos efeitos desses eventos; grupos que são conhecidos globalmente como mais vulneráveis, até pela própria fisiologia. Os idosos apresentam uma condição de não só ter uma deterioração do sistema termorregulador, mas também são pessoas que têm várias comorbidades adquiridas e que são acentuadas durante esses episódios prolongados de estresse térmico.
Renata Libonatti, professora do Departamento de Meteorologia da UFRJ
Isso é o que a gente sabe o que acontece em termos fisiológicos, de que os idosos são os mais vulneráveis. As mulheres, em geral, também são mais vulneráveis do que os homens. Crianças muito pequenas também. Mulheres grávidas (são vulneráveis), porque a saúde perinatal também é muito impactada durante a onda de calor. Adultos ou pessoas que tenham comorbidades, que não sejam idosos, mas que tenham uma doença pré-existente, ou são sedentárias, também são vulneráveis.
Porém, quando eu chamo atenção sobre essa falta de democracia durante esses eventos, eu não estou falando apenas da parte fisiológica. Eu chamo atenção também para os aspectos socioeconômicos. Com esse estudo com as 14 regiões metropolitanas mais populosas, a gente verificou no Brasil que as ondas de calor tendem a ter os maiores efeitos em grupos muito específicos, com maior vulnerabilidade social...
Isso está relacionado com o conceito de justiça climática?
Certamente. Nesse estudo, nós verificamos dois indicadores socioeconômicos. O primeiro é a escolaridade. Então, em todas as regiões metropolitanas que nós observamos e que analisamos nos últimos 20 anos, o resultado que tivemos foi que pessoas com baixa escolaridade são pessoas que morrem mais em decorrência do calor.
O que isso significa? São pessoas que têm grau de instrução mais baixo; que não têm acesso a serviços de saúde de qualidade; muitas vezes moram em lares que não têm condições de pagar por um aparelho de ar condicionado ou pessoas que trabalham a céu aberto. Então, essa parte do grau de instrução tem um peso muito grande nessa vulnerabilidade.
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E o segundo indicador socioeconômico que nós trabalhamos foi a diferença entre brancos, pretos e pardos. E o que o estudo demonstrou, novamente, é que os pretos e pardos são também a parte da população que morre mais em decorrência dessas ondas de calor. Isso não tem relação com a fisiologia do branco ou do negro. Muito pelo contrário. Isso só tem a ver com as desigualdades sociais que esses grupos enfrentam.
As mudanças climáticas vão fazer com que esses eventos extremos, que antes aconteciam de forma muito pouco frequente, aconteçam com muito mais frequência e de forma muito mais duradoura. Então, as mudanças climáticas vão aumentar significativamente as desigualdades sociais no Brasil. Uma das ações para mitigar os efeitos das mudanças climáticas e nos adaptarmos a isso no País é diminuir a desigualdade social.
Se os eventos climáticos extremos estão acontecendo com mais frequência hoje, a tendência então é que eles se tornem ainda mais comuns no futuro?
Exatamente. Os modelos climáticos indicam que em um planeta cada vez mais quente, a frequência desses eventos aumenta muito. Eu quando eu falo “aumentar”, é bom salientar que a frequência e a intensidade desses eventos não vão aumentar linearmente com o aumento da temperatura média global. Mas, vão aumentar de forma exponencial.
Falando em valores mais concretos, em um contexto sem aquecimento global, esses eventos climáticos extremos aconteciam uma vez a cada 10 anos.
Quando eu tenho o aumento da temperatura global em 1ºC, a probabilidade desse evento acontecer aumenta em três vezes; se eu tenho aumento de 1,5ºC na temperatura média global, que é onde estamos chegando (a Organização Meteorológica Mundial diz em 1,45ºC), aumenta em quatro vezes; se eu tiver um aumento de temperatura média em 4ºC, o número de eventos extremos de calor vai aumentar em nove vezes.
A mudança climática vai fazer um aumento cada vez maior das chances desses eventos ocorrerem. A gente precisa estar preparado e adaptado para viver nessas condições.
Você diz que estamos vivendo sob índices de estresse térmico acima do suportável e recomendado. Qual é este índice recomendado, e o quanto acima estamos tendo que suportar?
Desde a Revolução Industrial, a gente vê esse aumento da temperatura média do planeta, e vários locais do mundo seguem esse aumento de temperatura, o que significa que existe uma parcela grande da população que já vem, desde então, sentindo esses efeitos em termos de estresse térmico anualmente.
Isso (esse índice) varia de local para local, mas uma conta que foi feita com projeções climáticas considera que no ano de 2030 nós vamos ter cerca de 27 milhões de pessoas expostas a condições de estresse térmico. E destes 27 milhões, 12 milhões vão estar localizados em regiões em desenvolvimento, de baixa condição socioeconômica. E esse valor, em 2090, vai subir para 41 milhões de pessoas expostas ao estresse térmico.
Renata Libonatti, professora do Departamento de Meteorologia da UFRJ
Então, é uma situação que, embora não seja levada a sério em alguns locais, como no Brasil, é preciso ficar atento porque a gente precisa se adaptar a essas condições; adaptar as nossas cidades, adaptar os nossos sistemas de saúde; vários setores da economia.
A gente fala dos impactos na saúde, no número de mortes, mas a gente conhece uma gama de efeitos de calor em vários setores-chaves da nossa economia...
Eu ia mesmo tocar neste ponto. De que modo tudo isso vai emparedar o Brasil, do ponto de vista econômico?
Eu posso citar alguns. Por exemplo, a onda de calor tem impacto direto no setor energético de várias formas. Vai ter impacto na produção de energia, na distribuição de energia porque os atuais sistemas não suportam temperaturas muito elevadas, então, vai ter problemas também de transmissão. E, obviamente, vai ter um impacto muito grande na demanda de energia, isto é, mais pessoas precisando se refrigerar.
Na agricultura, obviamente, há vários tipos de cultura que são perdidas em eventos prolongados de ondas de calor; nós temos a maior ocorrência de incêndio florestais durante a ocorrência dessas ondas e isso vai ter um impacto no ecossistema, vai ter um impacto na qualidade do ar. E eu destaco que esse impacto na qualidade do ar não afeta só os locais onde os incêndios acontecem, mas essa poluição é transportada para os grandes centros urbanos.
Então, não existem ainda ações para mitigar. As notícias não são boas. O que a gente já comprovou é que esses eventos de onda de calor, no Brasil e em outros locais do mundo, estão cada vez mais acoplados, ou seja, cada vez mais ocorrem em simultâneo com outros eventos extremos. Em particular, as secas.
A gente percebe que, nas duas últimas décadas, há um aumento da ocorrência das ondas de calor simultaneamente a períodos de secas extremas. E isso é o que chamamos de eventos compostos, que acabam aumentando esses eventos quando ocorrem isoladamente. E isso tem ocorrido muito no Brasil e, apesar de ser estudado em outros locais do mundo, é outro assunto que tem sido deixado de lado por aqui. Os impactos (dos eventos compostos) são muito grandes e muito maiores do que eventos isolados.
Tem esses efeitos diretos como distribuição de energia e agricultura, mas existem também outros efeitos indiretos causados pelas ondas de calor. A gente sabe que as ondas de calor também impactam a qualidade de água, por conta da presença de um boom de algas nocivas e isso compromete o abastecimento de água
Renata Libonatti, professora do Departamento de Meteorologia da UFR
A gente tem um aumento não só de mortes e de internações por doenças associadas a esse período. A dengue, por exemplo, é uma doença que é exacerbada por ondas de calor; as arboviroses são potencializadas e isso leva a uma sobrecarga no sistema de saúde, o que faz com que aumente o número de pessoas que não podem trabalhar e aumentando o risco de acidentes de trabalho.
São várias questões interligadas que, direta ou indiretamente, vão comprometer a nossa economia. É um efeito cascata. E estamos falando a curto e médio prazo. Se esses eventos começarem a acontecer cada vez com mais frequência e com mais intensidade, a gente pode vai poder observar casos de má nutrição por falta de alimento e água própria (para consumo); aumento de alergias e doenças infecciosas, e até doenças de saúde mental que podem ser exacerbadas e causar mais baixas no trabalho.
E quais medidas as cidades devem adotar para evitar efeitos mais dramáticos da crise climáticas?
Cada vez mais existem pessoas morando em centros urbanos. É uma característica do século 21. Há muito mais pessoas morando e vivendo em metrópoles, megalópoles, do que no século passado. E essas cidades, zonas urbanas, trazem ainda um plus nesse problema do estresse térmico, que é o fenômeno que a gente conhece como “ilha de calor”.
O que é uma ilha de calor? A ilha de calor é a diferença de temperatura de um centro urbano para as redondezas que são mais rurais ou mais florestadas. Então, temos esses efeitos em várias regiões metropolitanas e cidades do Brasil, e essa onda de calor tem o potencial de agravar os efeitos das ilhas de calor.
A gente precisa, realmente, diminuir os efeitos dessa ilha de calor nas cidades. Mas como faz isso? Com todos esses planos que vêm sendo discutidos em termos de maior arborização; uso de materiais para construção que tenham a capacidade de absorver um pouco o calor; a presença de corpos d’água é uma medida que precisa ser estudada; a construção de telhados verdes ou construção de prédios que favoreça a circulação do ar; diminuir a emissão de gases associados aos transportes, com mudanças significativas na frota veicular.
Tudo isso estamos falando em termos de infraestrutura que podem ser pensadas para diminuir essa disparidade de temperatura entre a zona urbana e a zona rural. São medidas que precisam entrar nos Planos Diretores para que esses efeitos sejam minimizados.
Quais são as outras deficiências estruturais mais silenciosas que serão cada vez mais sentidas com as mudanças climáticas e, mais especificamente, com as ondas de calor?
Aqui no Brasil, a gente ainda não tem esses casos, mas é uma coisa que pode começar vir a ocorrer. Mas, essas ondas de calor e esses períodos de seca que acontecem simultaneamente, como eu disse, levam à ocorrência de grandes incêndios. E muitos casos que a gente observa, hoje em dia, acontecem na interface entre o urbano e o rural.
Como aconteceu no Havaí, ano passado; na Califórnia; em 2017, mais de cem pessoas morreram em Portugal. No Chile, 132 pessoas morreram, 300 ficaram desaparecidas e 7 mil casas ficaram danificadas por causa de incêndios que estavam associados a altas temperaturas e desmatamento.
Essa questão da proximidade do meio urbano com o meio rural e a questão dos incêndios é algo que a gente ainda não viu acontecer em grande escala aqui no Brasil, com muitas mortes associadas, mas que mundialmente está acontecendo cada vez mais.
Isso implica que a gente precisa fazer uma gestão do território porque essa interface do urbano-rural é muito associada com a ocupação e surgimento de comunidades, favelas, que estão próximas de vegetação densa, por exemplo. Isso é um problema que a gente vê crescendo globalmente, com muitas pessoas morrendo por conta desses eventos extremos.
No Brasil, vai depender muito de como o uso e ocupação do solo vai acontecer. Não é uma hipótese que a gente pode descartar.