Com pandemia e home office, o calor extremo neste mês deixou ainda mais evidente a falta de conforto térmico em parte expressiva das residências. Pesquisadores já comprovaram que situações como as vividas agora se tornarão cada vez mais comuns com as mudanças climáticas e, portanto, mudar a forma como se constrói e mantém casas, apartamentos e escritórios precisará mudar (e logo).
“Não há mais dúvida, a gente tem de se preparar para isso, para interagir com o clima mais extremo da melhor maneira possível”, destaca a engenheira Denise Duarte, professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP e pesquisadora de conforto ambiental.Ela menciona a tese de doutorado de uma aluna, na qual foram feitas simulações do panorama climático futuro em apartamentos da cidade de São Paulo.
“Vimos um cenário de aumento de horas de desconforto. Teve um caso que o número de horas em desconforto com o calor aumentou cerca de 250%.” Fora do País, esse quadro também tem preocupado. Denise comenta que em locais como o Reino Unido, por exemplo, as moradias (mais adaptadas para lidar com baixas temperaturas) se tornaram um problema de conforto térmico nas estações quentes.
A professora diz que um projeto precisa sempre considerar o entorno, mapear as possibilidades e características, e ter como aliados a ventilação cruzada (com janelas em diferentes espaços e variações de abertura) e o sombreamento (com vegetação, brises, cobogós, telas, gradis e outras técnicas que limitam a passagem do sol, mas permitem a troca de ar).
“Nas horas mais quentes do dia, a casa fica fechada, com pouquíssimas aberturas para a troca de ar necessária. Na hora em que a temperatura cai, abro tudo, e a casa ventila a noite inteira”, comenta.
O tema passou a ser mais presente na construção civil brasileira apenas após a publicação de um norma técnica em 2013, que traz algumas exigências de controle de qualidade.
“Até uns quatro ou cinco anos atrás, não existia qualquer preocupação com conforto térmico; não se falava. Com a norma técnica (é) que o mercado começou a entender”, comenta o arquiteto Marcelo Nudel, sócio-diretor da Ca2 Consultores. “Ainda há desconhecimento geral muito grande de como se faz. É um mercado muito imaturo na questão do conforto ambiental.”
Tintas claras, brises e fachada verde estão entre alternativas para atenuar calor
O processo passa por várias etapas. “Quando se fala em conforto térmico no interior da edificação, a primeira coisa é verificar a qualidade dos materiais, do vidro, da vedação, das paredes. Alguns materiais absorvem mais, têm propriedade de condução; outros refletem”, explica a professora de Arquitetura e Urbanismo Loyde Harbich, da Universidade Presbiteriana Mackenzie.
O concreto não é, por exemplo, um bom isolante térmico e, por isso, dificulta a manutenção do calor no inverno e do frio no verão. Outra questão são as modificações feitas pelo morador, destaca a professora. Um caso recorrente é o da varanda, que tende a ajudar na ventilação, mas que promove o efeito oposto quando é fechada com vidro, criando um “efeito estufa” dentro do apartamento.
No caso de prédios já prontos, algumas intervenções ajudam a atenuar o calor, como a pintura da fachada com cores claras, a aplicação de películas nos vidros e a instalação de brises, toldos e outras formas de sombreamento. Há, ainda, a possibilidade de aplicação de tetos e fachadas verdes, com a plantação de vegetação sobre a laje.
Esse tipo de intervenção foi feita, por exemplo, na residência da empresária Maria Christina Loschiavo Miranda, nos Jardins, no centro expandido da capital paulista, que ganhou parede e teto verde e teve modificações na distribuição das entradas de ar.
“Resolvemos reformar para ter uma casa realmente mais agradável. Trouxe uma alegria, um bem-estar muito bom.” Ela sequer mantém ventilador e ar-condicionado no espaço. “Não precisei; aqui tem vento cruzado, a parede verde, tudo isso refresca”, explica.
As mudanças climáticas estão mostrando que parte das construções não está adaptada. "Sem essas ondas de calor, o clima de São Paulo historicamente pode ser classificado como bom. Os extremos não são tão rigorosos. Exceto nesses períodos muito quentes, se conseguia dar conta”, comenta a arquiteta Monica Dolce, consultora em conforto ambiental.
“Agora, com essa questão da pandemia, só de as pessoas estarem mais tempo em casa e por longo período, estão se dando conta do quanto habitam mal.” Dados mostram, por exemplo, que dias de calor extremo na capital paulista têm sido cada mais comuns na última década, um reflexo do aquecimento global.
Ela diz que já perdeu as contas de quantas pessoas a procuraram para melhorar as condições da habitação desde março. Se, no início da pandemia, a preocupação era conseguir incidência de sol, mais recentemente, as reclamações se tornaram voltadas ao clima.
Para a especialista, a produção imobiliária se preocupa com o conforto térmico apenas o suficiente para atender às exigências normativas e destaca que o sombreamento pode reduzir em cerca de 15 vezes a incidência de raios solares.
“É uma coisa que (se) perdeu muito na nossa arquitetura. A arquitetura moderna paulistana tinha basculantes em cima, embaixo, sempre com muita opção”, lamenta. “Fachadas de edifícios altos deveriam ter maior flexibilidade, o andar alto fica mais exposto, precisa de um sombreamento, um brise, algo do tipo. Na hora que tem sol batendo na janela, é um maçarico aquecendo aquele ambiente.”
A falta de preocupação com o tema também se repete entre o público, conta Otávio Zarvos, sócio-fundador da incorporadora Idea!Zarvos, conhecida pelos projetos de alto padrão em São Paulo.
Otávio Zarvos, Idea!Zarvos
Em um empreendimento ainda em obras na cidade, por exemplo, a incorporadora adicionou uma persiana metálica automatizada por toda a área externa do prédio, que fica em frente a uma praça conhecida pelo pôr do sol. “É um item caro, não dá para qualquer prédio”, ressalta.
Conforto térmico no ambiente de trabalho é ainda mais preocupante
Entre especialistas, a maior preocupação em conforto térmico é com os edifícios comerciais, em que se tornou comum replicar modelos arquitetônicos típicos de países com características distintas. É o caso especialmente dos edifícios “pele de vidro”, que geralmente são selados (não é possível abrir as janelas) e dependem de ar-condicionado para funcionar.
“Hoje se pensa em otimizar um edifício para o uso do ar-condicionado. Tem de se otimizar o funcionamento em relação ao clima e só usar o ar-condicionado quando for realmente necessário”, defende a arquiteta Adriana Camargo, pesquisadora do Laboratório de Conforto Ambiental e Sustentabilidade do IPT. “A pandemia veio mostrar a importância ventilação natural.”
“(Prédios de vidro) são um grande coletor solar de vidro. Não amortecem, vão amplificar a temperatura, muito acima da externa, pelo efeito estufa que o vidro proporciona”, comenta a física Maria Akutsu, também pesquisadora do Laboratório de Conforto Ambiental e Sustentabilidade do IPT. “No Japão, a tendência é condicionar microambientes, só o entorno da pessoa, não o edifício todo.”
Ela também aponta problemas de ventilação em parte significativa dos apartamentos entregues em São Paulo, como a falta de janela em banheiros e o pé-direito baixo. Por isso, tanto Maria quanto Adriana defendem também mudanças na legislação, para definir critérios mínimos para garantir o conforto térmico.
Adriana Camargo, IPT
Terra, bambu e materiais naturais deixam de ser nicho e bioconstrução ganha espaço
O bambu, o adobe, a taipa e outras matérias-primas e técnicas vernaculares têm ganhado espaço na arquitetura, décadas após ficarem restritos a construções vistas como rústicas ou exóticas. Impulsionada pela busca por alternativas mais sustentáveis, a bioconstrução e o design biofílico estão ganhando atenção em projetos de casas, edifícios, escolas e outros tantos espaços brasileiros, voltados a diferentes classes sociais.
Em comum, esses projetos buscam utilizar materiais do entorno, criando um diálogo maior com os saberes e a natureza locais e reduzindo as emissões de poluentes advindas do transporte. Se séculos atrás basicamente se construía com pedra, madeira e adobe (feito a partir da terra e, por vezes, misturado com outros itens, como a palha), hoje esses materiais ganharam aplicações baseadas em novos conhecimentos e tecnologia.
A Rosenbaum Arquitetura e Design aplica a bioconstrução em projetos premiados internacionalmente. “Nossa grande pesquisa, há alguns anos, está muito relacionada aos saberes ancestrais, à tecnologia de baixo impacto que se relaciona com a natureza, e que também atualiza o conhecimento tradicional”, comenta uma das sócias, a arquiteta Adriana Benguela.
O principal projeto da empresa nesse aspecto foi o da escola e internato Canuanã, em Formoso do Araguaia (TO), mantida por uma fundação privada. O espaço foi construído com tijolos de barro sem cozimento, fabricados na obra, e madeira laminada colada (pré-fabricada, que passa por processos para se tornar mais resistente).
Segundo Adriana, a partir do conhecimento popular dos moradores da região, o projeto conseguiu obter conforto térmico e, mesmo sem o uso de ar-condicionado, garantiu 7ºC a menos na área interior em comparação à exterior.
Outro projeto que a Rosenbaum desenvolveu (com parceiros) foi para uma escola de cozinha implantada no andar superior do Mercado Central de Belo Horizonte, que ganhou uma estrutura em bambu entrelaçado. “A gente procurou o grupo de um mestre bambuzeiro da região, que faz trabalho social, uma escola de construção em bambu”, conta.
Também voltado à bioconstrução, o escritório Ecoeficientes trabalha com a readaptação de imóveis já construídos, que chama de “retrofit ecológico”, ou retrofit verde. Em projeto na zona oeste de São Paulo, por exemplo, utilizou reboco de terra, enquanto, em outro, na zona sul, instalou um piso de bambu e um revestimento feito a partir de folhas de bananeira (que, nessa aplicação, passaram por um processo que as deixou com aparência de tábua de madeira).
“Tem realmente acontecido um grande crescimento, tanto no uso de materiais naturais quanto nessa retomada de uma cultura tradicional”, comenta o arquiteto Rafael Loschiavo, fundador do escritório. “Tem uma facilidade de manutenção. O transporte desse material vai estar mais próximo (para a obra). Estão se descobrindo inteligências que existem nesse método construtivo, valores que estão se transformando agora.”
O uso desses materiais também ganhou espaço em obras híbridas, misturados ao concreto e a outros materiais menos naturais. O grupo internacional Perkins&Will tem aplicado alguns elementos em parte dos projetos que realiza no Brasil, como, por exemplo, um edifício com brises de bambu, um condomínio de casas de taipa e outro projeto ainda em estudo que deve utilizar pedras de basalto.
“É a tecnologia dos tempos atuais sendo aplicada a uma coisa que era de tradição, da cultura”, conta o arquiteto Douglas Tolaine, diretor de Design do grupo no País. Para ele, utilizar materiais locais ajuda a criar uma sinergia com o entorno, como se a construção sempre tivesse existido.
Para o arquiteto, o design biofílico ainda não ganhou tanto espaço nas grandes cidades brasileiras por “puro preconceito”. “Está se falando muito em trabalhar com madeira (no mundo), prédios de madeira, residências em terra batida. Se falar que vou fazer um edifício todinho feito de madeira, a primeira coisa que vão falar é de cupim, depois de água e fogo. Mas os templos chineses estão lá, há quantos mil anos, todos feitos de madeira, e não tinham a tecnologia em madeira que a gente tem hoje.”