ENVIADA ESPECIAL A ANANINDEUA (PA)- Às sete horas da manhã, o trânsito é intenso para entrar e sair de Belém. O fluxo de veículos na BR-316, via principal para deixar a capital do Pará por terra, torna demorada a passagem na região metropolitana. Acessar Belém por via terrestre exige planejamento típico de grandes cidades: sair ao menos três horas antes do compromisso e evitar horários de pico.
A mobilidade é um dos maiores gargalos da metrópole amazônica, que recebe em 2025 a Cúpula do Clima das Nações Unidas (COP-30). Uma das grandes apostas do governo estadual para destravar a mobilidade é construir a Avenida Liberdade, que corta a Área de Proteção Ambiental da Região Metropolitana (APA Belém) e passa próximo ao Parque do Utinga. Especialistas e comunidades tradicionais dizem que a obra trará impactos ambientais e sociais para a região.
Já o Estado tem tratado a obra como exemplo de sustentabilidade e modernidade, por incluir, por exemplo, iluminação por energia solar e 34 passagens para animais silvestres, para evitar o risco de atropelamentos das espécies na via. Segundo o governo, é o maior número de estruturas desse tipo por quilômetro quadrado no País. A gestão Helder Barbalho (MDB) também diz que condicionantes da licença ambiental atendem a demandas das comunidades locais (leia mais abaixo).
Durante uma semana, a reportagem fez o trajeto entre a capital, de 1,3 milhão de habitantes, e outras cidades da região metropolitana, e verificou a dificuldade de locomoção. Dentro da cidade, o cenário melhora, mas ainda assim há problemas recorrentes.
Cerca de 70 mil pessoas circulam diariamente pela BR-316 na região metropolitana para chegar à capital. A Avenida Liberdade tentará desafogar a rota como via expressa alternativa. Ao longo de 13,3 quilômetros serão construídas duas faixas em cada sentido, além de faixa exclusiva para ciclista.
A previsão é que a obra seja entregue em outubro de 2025. Balanço de outubro deste ano apontava que 20% da estrutura já estava pronta. .
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Governo diz que haverá passagens para animais silvestres e atenção a demandas de comunidade quilombola local
Análise de impacto ambiental feita pelo governo estadual mapeou a riqueza da fauna e da flora local. Conforme o relatório, concluído em 2023, foram identificadas 15 espécies de répteis (lagartos, serpentes, tartarugas e jacarés); 18 de anfíbios (sapos, rãs, pererecas e salamandra); 24 de mamíferos; 123 de aves; e 15 de peixes.
Entre os animais, quatro espécies de aves estão em algum nível de risco de extinção. No caso da flora, foram identificadas 153 espécies - três em algum nível de risco de extinção.
O relatório admite que a estrada causará “afugentamento dos animais terrestres para ambientes adjacentes e, nesse sentido, animais de baixa mobilidade terão maiores riscos de morte por atropelamentos”.
O documento cita ainda que “para animais aquáticos poderá haver perda ou morte devido a possível alteração da qualidade da água nos rios e igarapés gerados pelos eventos indiretos de erosão ou ainda podem estar relacionadas a descartes de efluentes”.
A análise de risco afirma que haverá mais poluição atmosférica no local devido à emissão de gases, mas pondera que haverá ações de controle ambiental para minimizar danos. Diz ainda que haverá monitoramento dos animais silvestres, além de serviço de retirada e resgate dos bichos na área construída.
Sobre o impacto sobre a população no entorno, cita que a construção pode alterar o cotidiano dos moradores, mas que a estrada reduzirá o tempo de deslocamento e “contribuirá de forma positiva para a melhoria dos serviços públicos” locais.
Com mais de 300 anos, o Quilombo do Abacatal fica em Ananindeua, a cerca de um quilômetro da futura estrada. Lá, a visão é diferente. Maria Santana Barbosa, de 56 anos, nascida e criada no território, conta que primeiro viu a degradação causada pela mineração, depois impactos de lixões e aterros e agora teme que a via expressa vizinha não só cause danos ao ambiente, mas também ameace o território.
“A zoada (barulho), o tráfego de pessoas, o medo de invasão, porque a gente sabe que quando se constrói uma rodovia ou ferrovia, muitas pessoas ficam de olho para invadir a área próxima por causa do acesso”, enumera.
“Ele (Barbalho) diz que a Avenida Liberdade vai ser ecorrodovia, com passarelas, viadutos para os bichos passarem. Mas se esquecem de informar os bichos, que não sabem ler”, critica.
Vivem no Quilombo do Abacatal cerca de 180 famílias, que têm à disposição uma escola e um posto de saúde. Um portão controla o acesso ao quilombo. A vulnerabilidade que pode ser gerada pela Avenida Liberdade preocupa os moradores que, no passado, entravam e saíam do território apenas por meio do Igarapé Uriboquinha.
“Todo mundo sabe que a cidade só tem como crescer para cá, para o nosso lado”, afirma Jorge dos Santos, 68 anos, que chegava de barco pelo riacho, por onde trazia sacas de açaí para vender.
Em nota, o governo do Estado afirmou que fez audiências públicas com a comunidade do Quilombo do Abacatal, que aprovou o Estudo de Componente Quilombola sobre a obra. Segundo a gestão Barbalho, os conselhos gestores das Unidades de Conservação atingidas pela estrada também aprovaram o projeto.
“O projeto possui o maior número de passagens de fauna por quilômetro de extensão do Brasil. Quanto aos pleitos das comunidades, a Semas informa que 52 condicionantes da licença ambiental atendem exclusivamente à demandas das comunidades do entorno da Avenida Liberdade, incluindo a comunidade quilombola do Abacatal”, diz a nota.
A reportagem questionou quais foram as condicionantes atendidas, mas não recebeu resposta.
BRT como opção
Diretora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Pará (UFPA), Roberta Menezes questiona as opções priorizadas pelos gestores para resolver o problema de mobilidade.
“Se a forma como Belém quer se colocar é sob a perspectiva de sede da COP-30, há uma virada de chave que seria oportuna: repensar as políticas públicas de mobilidade e de saneamento. Se coloca investimentos tão altos voltados para mobilidade, principalmente do carro particular, está fazendo mais do mesmo”, destaca.
O governo do Pará aposta ainda no BRT Metropolitano para facilitar o deslocamento na região. A expectativa é de que a 1ª fase da obra seja concluída este ano, com a entrega de um trecho de 10,8 km de pista. O projeto total será entregue no 1º trimestre de 2025.
Serão 265 novos ônibus adquiridos a partir de uma parceria com o governo federal. A obra é citada pelo governo paraense como um dos legados da COP-30 por utilizar ônibus elétricos e do modelo que emite menos carbono na atmosfera.
O BRT é um sistema de circulação rápidas de ônibus, que possibilita o trânsito de maior número de passageiros em menos tempo por trafegar em vias exclusivas. A estimativa é de atender entre 20 mil e 25 mil passageiros por hora para conectar as cidades da região metropolitana.
Para utilizar o BRT, os passageiros da região metropolitana podem pegar ônibus em seus bairros para ir até um dos dois terminas de integração que estarão na BR-316. Ali, trocam de condução, sem pagar nova passagem, para chegar a Belém. “Vai reduzir o tempo de viagem e melhorar as condições de mobilidade de mais de 2 milhões de pessoas da Região Metropolitana de Belém”, afirma o Estado.
A especialista Roberta Menezes afirma que, além da ampliação das vias, o poder público precisa garantir uma boa gestão para que o transporte via BRT se torne atrativo para a população.
“Uma coisa é obra, outra é o gerenciamento do sistema de BRT, de integração, tarifa. Temos uma realidade de uma população muito pobre. Se o sistema não funcionar bem com integração, as pessoas vão fazer o que estão fazendo agora: pegam Uber moto. Não tem investimento em ônibus, o passageiro não tem o mínimo de conforto, o preço também (não é atrativo)“, aponta. Se precisa pegar três ônibus, por exemplo, ela pode recorrer à moto por ser mais barato.
O número de motocicletas em circulação em Belém aumentou cerca de 25% de 2019 a 2023, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) - a frota local é de 159.124 veículos desse tipo.
Fluxo intenso
Além da conexão entre Belém e região metropolitana, o fluxo dentro da capital preocupa. A expectativa é que, na COP-30, Belém receba cerca de 100 mil pessoas, o que aumentará naturalmente o tráfego. Durante o evento, o plano do governo estadual é criar uma linha circular para atender exclusivamente o público da conferência.
No dia a dia da cidade, para incentivar o uso do transporte coletivo e facilitar a locomoção, a prefeitura de Belém afirma que tem investido na implementação de faixas exclusivas e preferenciais para ônibus. Circulam diariamente nos ônibus municipais e intermunicipais que fazem a rota da região metropolitana cerca de 470 mil passageiros. São 91 linhas municipais e 60 linhas metropolitanas.
O governo do Estado e a prefeitura dizem ainda que estão renovando a frota de ônibus com veículos com menor potencial de poluição. Os entes citam a compra de ônibus elétricos e veículos a diesel de baixa emissão.
Alternativas
A prefeitura afirma ainda que quer impulsionar o uso de bicicletas na cidade a partir da ampliação do número de ciclovias. A capital tem 163,54 quilômetros de ciclovias, a 10ª entre as cidades com maior malha cicloviária do País. O ranking é liderado pela cidade de São Paulo que, segundo a Associação Brasileira do Setor de Bicicletas, tem 689,1 quilômetros.
Composta por ilhas, Belém tem potencial fluvial. Considerando só os dados do terminal hidroviário Ruy Barata, operado pela prefeitura, há fluxo diário de cerca de 1,5 mil pessoas entre as ilhas da cidade. Os passageiros circulam em barcos de cooperativa e em embarcações da prefeitura.
Questionada sobre a expansão desse tipo de transporte, a prefeitura afirmou que inaugurou no ano passado uma linha fluvial para ligar Belém à Ilha do Mosqueiro. A operação, porém, foi suspensa em março a pedido do Departamento Nacional de Infraestrutura Terrestre (DNIT) que opera o porto da Ilha do Mosqueiro.
O DNIT interrompeu o fluxo para fazer obras no terminal. Durante julho e o início de agosto, auge das férias escolares, o navio Solimões, operado pela prefeitura, realizou travessias excepcionais para atender à demanda, com transporte de quase dois mil passageiros. Em agosto, no entanto, a linha foi desativada devido à baixa procura.