Acendida pela faísca da troca de ofensas entre Luana Piovani e Neymar, a discussão em torno da PEC das Praias tem colocado em questão o gerenciamento e a preservação do ambiente costeiro. A Proposta de Emenda à Constituição, que tramita no Senado, autoriza entes privados a adquirir terrenos de marinha, que compreendem praias e contornos de ilhas.
Na conversa que se instaurou com a participação de membros do governo, contrário à proposta, e de famosos, a tônica tem sido uma possível privatização das praias, com consequências sociais, econômicas e ambientais para cidades costeiras em todo o País. O relator do projeto, Flavio Bolsonaro (PL-RJ), nega que haja privatização e diz que a proposta é facilitar o registro fundiário, negócios e a geração de empregos.
Mas, segundo o professor do Instituto Oceanográfico da USP e coordenador da Cátedra da Unesco para a sustentabilidade do oceano Alexander Turra, a PEC pode dar margem a um efeito diferente: o desaparecimento das praias.
Com a intensificação da ocupação das zonas costeiras e consequentemente da erosão, somada ao aumento do nível do mar, os empreendimentos que pretendem se beneficiar da mudança ajudariam a estreitar a costa ao longo de algumas décadas.
Segundo um relatório global sobre o estado dos oceanos divulgado pela Unesco neste mês, a taxa de aquecimento do oceano dobrou nos últimos 20 anos, acelerando o aumento do nível do mar e levando ao sufocamento de espécies marinhas pela redução dos níveis de oxigênio na água.
O quanto o nível do mar já aumentou no Brasil e como isso se relaciona com as mudanças climáticas?
É um processo que está se intensificando. A maior série temporal de medida de maré que temos no Brasil está na base do Instituto Oceanográfico da Universidade de São Paulo (USP) em Cananeia. Temos um marégrafo que foi instalado há 70 anos e, entre 1954 e 2009, a elevação média foi de 4 mm por ano, resultando em um total de 22 cm em 55 anos. Os registros de 2010 adiante foram feitos em outro método e ainda estão sendo calibrados, mas indicam intensificação desse processo.
Isso vem conjugado com o aumento da frequência e magnitude de eventos extremos como tempestades e marés meteorológicas, que aumentam os processos de inundação e de erosão da costa que já ocorrem independentemente da elevação do nível do mar e das mudanças climáticas.
Qual o impacto desse aumento para a costa brasileira?
Temos uma costa que passa dos 10 mil km², com áreas mais ou menos suscetíveis (a esse aumento). E isso diz respeito à capacidade destas áreas em lidar com esses fenômenos. Na história geológica do planeta, em períodos interglaciais, tivemos níveis do mar acima do que temos hoje. Nessas ocasiões, as praias e os manguezais que ocorrem na linha de costa não foram extintos porque migraram para dentro dos continentes. Com a redução do nível do mar, voltaram a ocupar áreas perto do que há hoje. Existe uma mobilidade desses ambientes que hoje está sendo bloqueada pelas construções, pelo processo de urbanização.
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Nesse contexto, como vê a discussão sobre a PEC das Praias?
O grande problema associado à PEC é a intensificação de um processo de ocupação desordenada ou não apropriada na zona costeira. A consequência disso é um fenômeno chamado estreitamento da linha de costa. De um lado, a ocupação torna rígida essa região. E, do outro lado, a elevação do nível do mar. As duas coisas juntas fazem com que esses ambientes sejam estreitados, podendo inclusive ser extintos localmente. Um dos possíveis cenários decorrentes da aprovação da PEC é a eliminação de praias e manguezais da costa brasileira. É tornar privada uma área que tem de cumprir papel ambiental para que a gente continue tendo praias.
Com eliminação você quer dizer realmente o desaparecimento dos ecossistemas?
Isso. O desaparecimento desses ecossistemas nos locais onde não poderão migrar em resposta à elevação do nível do mar. Isso não vai acontecer em todas as praias, mas vai acontecer em muitas delas.
- O Brasil já tem 40% da costa em estágio avançado de erosão, locais onde basicamente só se pode acessar a areia na maré baixa.
- Isso é evidente na região de Atafona, no norte do Rio.
- Em Matinhos, litoral do Paraná, também há processo erosivo forte, obras de contenção sendo feitas pra proteger estradas e casas e com isso a praia praticamente desaparece.
- Algumas partes da praia de Mucugê, em Arraial d’Ajuda, litoral sul da Bahia, também estão sumindo.
- E a praia de Massaguaçu, em Caraguatatuba, São Paulo, vem dando indícios de que a erosão tende a se agravar no futuro, já com obras recorrentes sendo feitas na parte central da praia.
É uma situação que vem sendo intensificada em função de um conjunto de coisas: a ocupação da costa, a intervenção nos rios e mudanças do clima. As praias são dinâmicas e a areia que está lá é móvel: ela sobe, vai para a duna, para a planície costeira, desce, vai para a área de arrebentação. Ela sai da praia e chega areia nova vinda dos rios.
Existe um balanço sedimentar que faz com que a praia seja do jeito que ela é, e ela pode variar ao longo do ano. O problema é que as intervenções fazem com que falte areia. Sai mais areia do que entra e com isso há um processo erosivo.
Quando se ocupa áreas onde a areia fica, como a planície costeira ou as dunas, a gente bloqueia esse processo e cria-se um déficit. É um processo crônico que tende a levar ao desaparecimento, à supressão de praias e de manguezais se não criar áreas de proteção para que esses ambientes se desloquem e se distribuam na medida em que o nível do mar sobe.
Quais outros problemas isso pode acarretar?
O turismo no Brasil é em grande parte costeiro, de sol e praia. Não tem turismo de sol e praia sem praia. O que vai acontecer é que as pessoas casas de frente para o mar vão querer proteger as suas propriedades, às quais pagaram o governo para ser proprietárias -- hoje são concessionárias. Vão se criar estruturas cada vez mais pesadas e grandes que vão intensificar ainda mais os processos erosivos.
O cenário final é com essas pessoas podendo sentar nesse murinho e olhar o mar sem praia, enquanto a maioria da população fica sem praia para lazer e recreação. É pior do que privatizar a praia, é não ter mais praia para ser utilizada pela sociedade.
Com essa PEC, sabendo que o nível do mar está subindo e vai ‘reclamar’ essas áreas, o Senado ainda assim vai fazer com que essas pessoas paguem por elas. É estelionato: sabendo que vai dar errado, ainda induzir um ente privado ao prejuízo.
E pior de tudo, num segundo momento, como essas pessoas são influentes e essas casas são caras, o poder público vai ser chamado a fazer obras caríssimas de contenção ou de engordamento de praia. Isso cria uma despesa futura que não precisa existir. Chamo isso também de estelionato público: induz o Estado a um gasto, já sabendo que isso vai acontecer.
Não digo que a discussão sobre as taxas não é legítima. Talvez seja exagero cobrar o foro, a taxa de ocupação e o laudêmio. A solução não é passar para o privado, mas de repente cobrar taxa menor ou isentar a taxa, pensando também no quanto isso impacta o orçamento.
[A PEC] é um remédio ultraimediatista que não considera a visão sistêmica do funcionamento do meio ambiente e de onde isso nos leva do ponto de vista ambiental, social e econômico.
Quando se fala da economia da praia, não é necessariamente de resorts, mas de vendedores de bolinho de aipim e de sorvete, pessoas que alugam cadeiras e guarda-sóis, dessa economia que traz prosperidade para as periferias das regiões costeiras.
E o benefício social e ambiental. Praias e manguezais ainda transcendem imensamente a área em si que esses habitantes ocupam. Os manguezais são fundamentais na sustentação da atividade pesqueira que se faz longe da costa, porque são áreas de criadouro de de peixes, muitos de interesse comercial.
Quais dispositivos legais regulam o gerenciamento da costa brasileira e o que precisa ser feito com base neles para evitar o desaparecimento de praias e manguezais?
Temos todos os instrumentos para fazer a gestão responsável da costa acontecer. O Plano Nacional de Gerenciamento Costeiro é de 1988, mesmo ano da Constituição. O que o Senado tinha de fazer era solicitar que o governo implementasse essas políticas públicas e destinasse orçamento para essas ações. Não é coisa barata, mas tem de ser feito.
O mais incrível é que, para a maior parte do Brasil, os terrenos de marinha não estão sequer mapeados. Como repassar para um privado sem saber o que está em terreno de marinha ou não?
Há locais em que o mar está subindo e outros em que a terra está baixando, num processo chamado subducção. Isso é base para fazer cenários de inundação mais precisos e não temos isso aferido no Brasil. Mas o Programa de Conservação da Linha de Costa, de 2018, prevê essas ações.
Esses terrenos têm de ser mapeados e cruzados com o mapa de inundação e erosão para saber quais estão vulneráveis. Em vez de passar para o privado, o governo tem de comprar esses terrenos e criar uma área de proteção para que as praias não sumam. Isso está sendo feito no mundo todo.
Estamos na década do oceano [decretada pelas Nações Unidas] de 2021 a 2030 e temos o Objetivo Desenvolvimento Sustentável 14, que é a vida na água. Precisamos fortemente e cada vez mais ampliar e qualificar a relação do humano com o oceano, e a porta de entrada para isso é a praia.
Quais têm sido os desafios para que essas medidas sejam implementadas?
O gargalo está basicamente em ter orçamento adequado e estrutura de pessoal que consiga fazer com que esse processo, essas políticas sejam implementadas. Isso significa ter gente dedicada a isso tanto no governo federal quanto nos estaduais e municipais. Criar os planos municipais de gerenciamento costeiro e os Zoneamentos Ecológicos Econômicos Costeiros no Brasil inteiro.
Se isso não for feito, o que pode acontecer?
Estamos arriscando perder um dos espaços mais democráticos do País. Ao privatizar esses terrenos e levar a esse processo de intensificação de erosão, de estreitamento da linha de costa e de desaparecimento das praias e manguezais, criaremos grande prejuízo para as futuras gerações, que não terão o privilégio de ser beneficiadas pelos serviços que esses ambientes prestam.
Perder as praias significa também perder algo que está na música, no esporte, na espiritualidade. É basicamente perder a nossa brasilidade. Usamos a praia de um jeito diferente do resto do mundo, por questões culturais, ambientais e climáticas. Em muitos locais, a praia é usada como praça. Nós conectamos a praia com a água e essa conexão tem um simbolismo.