Em Seul, na Coreia do Sul, as latas de lixo pesam automaticamente a quantidade de comida ali jogada. Em Londres, mercearias pararam de colocar datas de validade em frutas e legumes para diminuir a confusão sobre o que ainda pode ser consumido. A Califórnia agora exige que os supermercados distribuam – e não joguem fora – alimentos que não foram vendidos, mas que estão bons para o consumo.
Em todo o mundo, uma ampla gama de esforços está sendo realizada para enfrentar dois problemas globais urgentes: a fome e as mudanças climáticas.
Os resíduos alimentares, quando apodrecem em um aterro sanitário, produzem gás metano, o que rapidamente aquece o planeta. Mas este é um problema surpreendentemente difícil de resolver.
E aqui Vue Vang, que luta contra o desperdício, entra em cena. Recentemente, em uma manhã clara de segunda-feira, ela parou atrás de um supermercado em Fresno, Califórnia, desceu de seu caminhão e resgatou o máximo de comida que conseguiu sob a nova lei estadual — ajudando os gerentes da loja a cumprir as regras que muitos ainda desconheciam.
Havia um carrinho de pães de hambúrguer e biscoitos prestes a expirar ali para ela.
Ela sabia que devia haver mais. Em poucos minutos, ela havia persuadido os membros da equipe a dar-lhe várias caixas de leite marcadas como “melhor consumir até” o dia seguinte, bem como leitelho e caixas de couve-de-bruxelas, couve, coentro, melão cortado e milho. Ela ainda perguntou: Há ovos?
“É tanta coisa. Tanta coisa vai para o lixo”, sussurrou Vang, que trabalha em uma instituição de caridade local, a Fresno Metro Ministry, e distribui comida a pessoas necessitadas.
Nos Estados Unidos, o maior volume de material enviado para aterros e incineradores vem do desperdício de alimentos. Em todo o mundo, o desperdício de alimentos é responsável por 8% a 10% das emissões globais de gases de efeito estufa, pelo menos o dobro das emissões da aviação.
De acordo com estimativas da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação, são alimentos suficientes para alimentar mais de 1 bilhão de pessoas.
Em meio à crescente urgência para desacelerar o aquecimento global, governos e empresários estão criando diferentes maneiras de desperdiçar menos alimentos. Nos Estados Unidos, uma startup facilita a compra de produtos defeituosos que os supermercados não querem, e outra desenvolveu um revestimento invisível à base de plantas para fazer com que as frutas durem mais. Um empresário queniano construiu refrigeradores movidos a energia solar para ajudar os agricultores a armazenar os produtos por mais tempo.
Na Ásia, Europa e Estados Unidos, vários novos aplicativos oferecem descontos em comida de restaurante que está prestes a ser jogada fora. No ano passado, o principal líder da China, Xi Jinping, iniciou a campanha do “prato limpo”, pedindo o fim do desperdício “chocante e angustiante” de alimentos, até mesmo reprimindo os vlogueiros que comem quantidades excessivas de comida diante da câmera.
Todos esses esforços diversos apontam para uma desconexão no sistema alimentar global moderno: muitos alimentos são produzidos, mas não consumidos, mesmo enquanto as pessoas passam fome.
A lei da Califórnia é a mais ambiciosa dos Estados Unidos. Os supermercados são obrigados a doar para grupos como o de Vang “a quantidade máxima de alimentos consumíveis que seriam descartados” ou serão multados. Além disso, todas as cidades e condados devem reduzir em 75% o lixo orgânico que vai para os aterros sanitários até 2025 e fazer compostagem.
O condado de Fresno, onde Vang trabalha, abriga fazendas leiteiras e amendoeiras, e tem um dos maiores índices de fome da Califórnia. Vinte e três por cento das crianças do condado nem sempre têm comida suficiente.
Enquanto Vang saía do supermercado naquele dia, um gerente estava enchendo sacos de lixo com galões de leite. “Tudo isso vai para o lixo?” ela perguntou. E foi.
Eles tinham acabado de expirar.
Um problema de abundância
Jogar fora as safras que foram plantadas, regadas, colhidas, embaladas e transportadas é um problema relativamente novo na história da humanidade. Durante séculos, as pessoas usaram tudo o que podiam: o caule de uma bananeira, cascas de vegetais, uma cenoura que crescia retorcida no subsolo.
Hoje, 31% dos alimentos cultivados, transportados ou vendidos são desperdiçados.
O problema do desperdício de alimentos não é apenas um problema, mas muitos. Às vezes, é um problema de refrigeração (o leite estraga quando falta energia) ou padrões rigorosos de supermercados (sem cenouras retorcidas) ou mau planejamento humano (saladas verdes esquecidas que se transformam em lodo na geladeira) ou porções gigantes em restaurantes. Setenta por cento dos alimentos descartados em restaurantes nos Estados Unidos vêm de alimentos pagos, mas não consumidos, de acordo com a ReFED, uma organização sem fins lucrativos focada na redução do desperdício de alimentos.
No geral, um terço do suprimento de alimentos dos EUA não é consumido, de acordo com a Agência de Proteção Ambiental.
A ReFED estima que as emissões de desperdício de alimentos, do campo ao garfo e ao aterro sanitário, são equivalentes às de 72 usinas a carvão.
Como a Califórnia, vários estados americanos estão tentando enfrentar uma parte do problema com medidas obrigatórias de compostagem. Se a Califórnia for bem-sucedida, poderá reduzir as emissões em uma quantidade equivalente a tirar 3 milhões de carros das estradas, de acordo com a CalRecycle, a agência estadual que lida com resíduos. O adubo é extremamente útil para melhorar o solo, e há um mercado para o adubo em um estado que está sofrendo com a seca.
“É um grande negócio”, disse Rachel Machi Wagoner, diretora da CalRecycle, em uma entrevista. “Estamos tentando transformar o lixo em um recurso.”
Mas isso resolve apenas uma pequena parte do problema. Não há problema em compostar cascas de laranja e de ovos. Mas isso não resolve o problema do pedaço de sanduíche deixado no prato, ou do tomate que é jogado no lixo porque há muitos sobrando nas prateleiras dos supermercados.
Isso, como apontou Dana Gunders, diretora executiva da ReFED, é um desperdício significativo de água, terra, fertilizantes, diesel e materiais refrigerantes, além de trabalho manual pesado.
“É melhor não produzir o que você sabe que não será consumido”, ela disse. “Para fazer isso, é preciso redesenhar os sistemas. Não é tão fácil quanto jogar algo na caixa de compostagem.”
Sim para as embalagens de comida para viagem; Não para as etiquetas com datas de validade
As redes de supermercados na Grã-Bretanha começaram a remover as etiquetas com data de validade dos produtos depois que pesquisas mostraram que incluí-las levava as pessoas a descartar alimentos perfeitamente bons.
Em outras partes da Europa, a França agora exige que supermercados e grandes empresas de bufê doem alimentos que ainda sejam seguros para o consumo e, na Espanha, uma lei proposta exigiria que os restaurantes oferecessem o que é relativamente incomum: embalagens para alimentos não consumidos.
Depois, há a Coréia do Sul, onde uma campanha contra o descarte de alimentos nasceu há quase 20 anos por necessidade. A massa de terra estreita e montanhosa do país estava ficando sem espaço para aterros sanitários. Nada de desperdício de alimentos em aterros sanitários, decretou o governo.
Hoje, quase todos os resíduos orgânicos são transformados em ração animal e adubo e, mais recentemente, em biogás. Há também um preço sobre os resíduos. Os coreanos pagam pelo que jogam fora.
No experimento mais recente, o governo implementou lixeiras equipadas com sensores de identificação por radiofrequência que pesam exatamente a quantidade de desperdício de alimentos que cada família joga fora a cada mês. Se as pessoas não tiverem as lixeiras equipadas com sensores, elas devem comprar sacolas biodegradáveis separadas para resíduos de alimentos, que acabam custando ainda mais.
Numa tarde de domingo, no local das lixeiras de um bairro de classe média alta em Seul, os sensores começaram a funcionar. Um homem abriu uma lixeira passando um cartão, esvaziou seu balde de lixo e voltou para casa. Uma mulher disse que as lixeiras de alta tecnologia a pouparam do incômodo de ter que comprar as sacolas especiais para resíduos de alimentos.
Suyeol Hong, que mora no complexo e também é um dos mais proeminentes ativistas contra o desperdício de alimentos do país, disse que as novas lixeiras deixaram o local mais limpo e menos fedorento. Mas, embora a política da Coreia do Sul de desviar o desperdício de alimentos dos aterros sanitários tenha reduzido as emissões de metano, ele observou, não houve uma real mudança nos hábitos.
Muita comida ainda é desperdiçada, principalmente em restaurantes, onde o banchan – uma variedade de acompanhamentos servidos sem custo extra – geralmente é deixado à mesa no final de uma refeição, ele disse. Os esforços para fazer as pessoas pagarem pelo banchan não têm sido populares.
“Não acho que seja fácil reduzir o desperdício de alimentos na Coreia”, disse Hong. Mesmo quando sua própria família limpa a geladeira, acrescentou, há inevitavelmente um bolo de arroz extra de um feriado longínquo, destinado à caixa de compostagem.
Ainda assim, a Coreia do Sul fez melhorias. O desperdício de alimentos caiu de quase 3.400 toneladas por dia em 2010 para cerca de 2.800 toneladas por dia em 2019, segundo Ko Un Kim, do Instituto de Seul, um grupo de pesquisa afiliado ao governo da cidade.
Evitando o lixão
Além da compostagem, a lei de desperdício de alimentos da Califórnia é incomum nos Estados Unidos por forçar os varejistas a doar alimentos consumíveis, mas não vendidos. (Washington tem uma lei semelhante que entra em vigor em 2025.) Ativistas contra o desperdício de alimentos estão fazendo lobby no Congresso para incluir dinheiro na lei agrícola dos EUA no próximo ano para ajudar os governos estaduais e locais a adotar medidas semelhantes de resgate de alimentos.
Os desafios já estão acontecendo em toda a Califórnia.
Muitas cidades ainda não oferecem caixas de compostagem para as famílias. Muitas pessoas que têm caixas de compostagem não sabem o que devem colocar ali e o que não devem. Ossos de frango podem ser colocados. Os saquinhos de cocô de cachorro não – nem mesmo quando o cocô está nos chamados sacos compostáveis, que nem sempre são compostáveis.
“Isso me deixa louco”, disse Wagoner da CalRecycle.
Muitas outras instalações de compostagem terão que ser construídas, o que é difícil em áreas urbanas. E a compostagem às vezes pode ter um efeito contra-intuitivo. Um estudo de ciência comportamental descobriu que, quando as pessoas sabem que seus resíduos alimentares serão compostados, elas são mais propensas a desperdiçá-los.
Vang, a principal motorista do programa de compartilhamento de alimentos da Fresno Metro Ministry, tem apenas um metro e meio. Mas nos bastidores dos supermercados, ela é uma grande presença.
Ela começou a resgatar alimentos há quase cinco anos, quando um agricultor ligou para a instituição e disse que tinha tomates que não poderia vender. Logo depois, o gerente de um aterro ligou quando um caminhão de lixo apareceu com bananas perfeitamente boas para o consumo.
Foi só quando Vang viu aquelas montanhas de comida que ela começou a entender o quanto estava sendo desperdiçado. Isso a impressionou muito, ela disse, porque muitos de seus vizinhos não podiam pagar pelas mesmas coisas que estavam sendo jogadas fora. “Somos uma grande cidade agrícola, mas muitas pessoas não têm uma alimentação saudável”, ela disse.
As necessidades aumentaram drasticamente. Primeiro por causa do coronavírus. Depois por causa da inflação. Às vezes, as pessoas a param quando veem seu caminhão de resgate de alimentos passando. Estudantes universitários. Trabalhadores rurais. Pessoas normais que precisam de ajuda.
Ela entende. Ela tem quatro filhos. “Eu sei”, disse Vang. “Fazer compras no supermercado é difícil.” /TRADUZIDO POR LÍVIA BUELONI GONÇALVES