Lições da limpeza do Rio Sena e saídas para proteção ambiental: ‘Fazer com que traga dinheiro’


Autor de livro ‘Eloquência da Sardinha’, lançado no Brasil em junho, Bill François conta o que podemos fazer para preservar o oceano e os rios

Por Juliana Domingos de Lima
Foto: Jean Christophe l’Espagnol/cedido por Editora Todavia
Entrevista comBill FrançoisNaturalista e escritor

Com a água acima dos joelhos no Rio Sena, Bill François exibe um bagre parisiense para a câmera. Indica os barbilhões que permitem ao peixe sentir gosto a distância, a linha lateral que o torna sensível a vibrações e as narinas muito bem desenvolvidas.

A cena não seria possível até poucos anos atrás, quando o rio ainda era um dos mais poluídos da Europa, com poucos peixes restantes. Nesta década, espécimes de mais de dois metros já foram encontrados no rio, que foi descontaminado para sediar a abertura dos Jogos Olímpicos de 2024, ocorrida em Paris na sexta-feira, 26.

Organização dos Jogos Olímpicos de Paris inovou ao realizar a abertura no Rio Sena, um dos símbolos da capital francesa Foto: Ricardo Malazan/AP

“Tem de ser pescador para se maravilhar com ele. É verdade que é um animal muito estranho, mas quando a gente conhece ele melhor, entende a máquina formidável que é”, diz François sobre o peixe que tem nas mãos.

Conhecedor de espécies marinhas e de água doce, o físico especializado em hidrodinâmica, naturalista e escritor francês quer despertar nas pessoas comuns o mesmo encantamento pelo universo aquático de pescadores e outros aficionados.

Só assim, defende, será possível preservar esses ecossistemas. Por isso, passou a contar no Aquário de Paris e em livros histórias sobre seres fantásticos do mundo submarino e nossa relação com eles.

Bill François mostra bagre pescado no Rio Sena em reportagem da agência AFP Foto: AFP

Depois de passar algumas semanas em aldeias dos povos Enawenê-Nawê e Ikpeng, no Território Indígena do Xingu, e de lançar em São Paulo seu livro A eloquência da sardinha, publicado pela editora Todavia, François falou ao Estadão sobre tradições e maravilhas do mar que só existem no Brasil, a lição do Sena para o Rio Tietê e como comer um peixe em vez de outro pode ajudar o oceano.

Muitas pessoas no Brasil são fascinadas pelo mar e têm relação afetiva com ele, assim como você. Qual é a principal coisa que você gostaria de dizer a elas sobre o oceano?

Diria para irem conferir e ver como é maravilhoso, que ainda há muitas coisas lá que precisamos desenvolver e preservar.

Normalmente, dou exemplos de diferentes regiões da França onde as pessoas podem ver golfinhos, baleias. O Brasil é ainda melhor nesse aspecto. Há muita coisa para ver.

Não só há golfinhos e baleias em alguns lugares, mas também recifes de corais, tartarugas marinhas e até descobertas recentes pela Amazônia, como recifes profundos de águas frias, únicos no mundo. É preciso viver isso, se maravilhar, para entender o quanto [o oceano] ainda é vivo e como é importante protegê-lo.

Muitos discursos fazem quem não conhece acreditar que está tudo morto, que é só plástico. Sim, há muitos problemas, um declínio terrível de espécies. Mas, antes de tudo, precisamos lembrar que ainda há muitas coisas belas para salvar, isso é o mais importante. Se tudo estivesse morto, por que se preocupar em salvar o que quer que seja?

É como com os animais em extinção. Se dissermos às pessoas “as baleias estão desaparecendo, não existem mais”, elas vão pensar: “Por que lutar? Já não há mais baleias”. Quando, na verdade, ainda existem muitas baleias! Precisamos dizer “há muitas, você pode ir vê-las, é fascinante”, para poder protegê-las.

Quais as principais ameaças aos oceanos hoje? O que podemos fazer para ajudar?

O problema número um – assim como para todo o resto, mas especialmente para o oceano –, é o aquecimento global.

Principalmente porque a maioria dos peixes são espécies de sangue frio. Nós, humanos, estamos sempre a 37ºC. Se nosso corpo chega a 38°C, ficamos doentes, se chega a 39°C ou 40°C, estamos muito doentes, e se chega a 42°C ou 43°C, morremos.

Um peixe tem a mesma temperatura da água. Se a água aumenta um grau, ele fica doente. Tenta se mover e escapar, mas se não consegue porque não há o mesmo ecossistema em outro lugar, morre.

Isso é ainda mais verdade para um coral, que não pode se mover, e para a maioria dos animais marinhos. Esse exemplo da febre é importante porque nos dá uma ideia de como os organismos vivos são sensíveis a pequenas variações de temperatura.

Hoje, já ultrapassamos 1,5 °C (de aquecimento médio do planeta). É risível quando os políticos dizem que nosso objetivo deve ser no máximo 1,5 °C. Quando olhamos as temperaturas deste ano e do ano passado, já estamos lá. E vai aumentar muito mais. É catastrófico.

É um desafio enorme porque a sociedade é construída em torno do petróleo.

Há outra questão, também muito importante e mais fácil de lutar contra: a sobrepesca. E isso pode ser combatido escolhendo consumir peixes que não estejam ameaçados. Não é complicado, é só escolher um peixe em vez de outro.

No livro, você fala sobre a ligação ancestral dos humanos com o oceano. Como as histórias que você conta podem nos reconectar a esse passado?

Quando era guia no Aquário de Paris, eu testava as histórias nas visitas, mas tínhamos o peixe atrás de nós. Mas um livro não tem isso. Então, como fazer para que os leitores se conectem?

Se você conta a história de um animal que nunca vão ver na vida, apenas em fotos, isso não toca as pessoas. Toca um pouco, mas é como no TikTok, logo passam para outra coisa.

Quase todos já estão bastante sensibilizados [sobre a proteção do ambiente marinho], o que precisamos é envolver as pessoas. E para isso, é preciso encontrar conexões.

Pensei muito sobre a conexão que temos com o mar, que hoje está principalmente em nosso prato. Infelizmente, a maioria das pessoas quase não têm outras interações com o mar hoje. Quase ninguém viu uma lula viva, mas muita gente já comeu lula. Isso já é um ponto de partida. Há também as férias na praia, quando mergulhamos e observamos o oceano.

Há muitas tradições, vínculos que tínhamos, como falar com os golfinhos para pescar. Só no Brasil ainda sabem fazer isso, em uma vila em Santa Catarina. Mas antes fazíamos isso na França, na Mauritânia, no Marrocos, provavelmente em muitos outros países onde foi esquecido antes que fosse descrito.

É absolutamente necessário preservar isso, e mais do que apenas preservar, desenvolver.

Você diz que o retorno ao Sena do sável, um tipo de sardinha gigante, após a despoluição para os Jogos Olimpícos, é ‘uma mensagem de esperança para os rios do mundo inteiro’ e cita o Tietê. Qual a lição a ser tirada do caso parisiense?

A natureza é resiliente. Com o menor esforço, muitas espécies voltam rapidamente. Isso depende da taxa de reprodução. Mas as baleias, que deixamos de caçar, estão voltando em grande número. Algumas espécies não estão mais ameaçadas e estão indo muito bem.

O Sena estava tão poluído que, nos anos 1960, havia apenas três espécies de peixes. Começamos simplesmente a limpar a água que despejávamos nele e, em 20 anos, passamos de 3 espécies de peixes para 40.

Isso, com certeza, pode ser feito no Tietê. Custa muito dinheiro, mas é possível. Limpo, ele voltaria a ser um local natural com muita vida.

Falamos dos peixes, mas é todo um ecossistema: há todos os insetos, moluscos, esponjas, águas-vivas, camarões que vivem no rio. O Sena estava no mesmo estado que o Tietê, talvez até pior. Sem dúvida pior, porque não havia capivaras [risos].

Há alguns anos, proibiram a pesca do Dourado e de outras algumas outras espécies de peixes no Pantanal, e agora eles voltaram em massa. Quando deixamos a natureza em paz, ela se recupera rápido.

E os rios, como você vê nossa relação com eles hoje? Como isso impacta a preservação dos ecossistemas de água doce?

No caso dos rios, perdemos ainda mais esse vínculo. Todas as grandes cidades da Europa foram estabelecidas ao longo de rios porque os salmões que subiam esses rios forneciam nossa alimentação durante grande parte do ano. Toda a Europa vivia disso.

Esses peixes desapareceram, toda essa cultura se perdeu. O mesmo vale para os moluscos de água doce, com os quais fazíamos joias, os invertebrados que usávamos na medicina e muitas outras coisas. Essa é uma parte um pouco oculta da história da Europa, porque era popular nas áreas rurais, entre os camponeses, mas muito importante.

Os indígenas no Brasil vivem completamente conectados com os rios e os ecossistemas. Eles protegem a natureza porque vivem dela! Se o peixe não fosse a fonte de vida deles, não teriam interesse em protegê-lo.

Claro que isso vai ainda mais longe: eles têm o saber ancestral de que dependem de todo o ecossistema, a compreensão de que tudo está interligado. Isso está presente em muitas culturas indígenas também em um plano espiritual, não somente venal, econômico.

Naturalista Bill François mostra bagre do Rio Xingu Foto: Bill François/Arquivo pessoal

(Nós ocidentais) Enxergamos muito a proteção do meio ambiente como algo intocável, onde somos os sujos e aquilo é sagrado. Mas, na verdade, é preciso cultivar esses vínculos entre os humanos e a natureza, como vemos com os indígenas. Não protegemos certas espécies porque não temos mais vínculo com elas.

O ser humano protege aquilo que lhe traz dinheiro ou felicidade. É assim que funcionamos, infelizmente. Não vamos proteger algo que não tem relação conosco.

Se quisermos que as pessoas protejam o meio ambiente, isso deve lhes trazer mais felicidade do que o dinheiro que a destruição proporciona. Em alguns casos, fazer com que proteger traga dinheiro também funciona.

Novamente, o Pantanal é um exemplo interessante. O dourado era pescado comercialmente, vendido nos mercados e devido à sobrepesca estava à beira da extinção.

Há algum tempo, uma lei proibiu totalmente matar esse peixe, mas não a pesca esportiva, recreativa, em que o pegamos, mas o devolvemos para a água. E de fato o turismo que isso gera, com pessoas vindas de todo o Brasil e do mundo inteiro, criou uma economia mais relevante que se matássemos os peixes.

Há negociações em curso porque há pessoas que querem reabrir a pesca comercial, mas há todo um negócio de pesca esportiva que agora tenta se opor a isso, porque é mais rentável para eles manter o peixe vivo e protegê-lo. Isso acontece em vários lugares do mundo.

Os Estados Unidos fizeram um cálculo a respeito: um peixe vivo, que é alvo da pesca esportiva ou de atividade de mergulho, rende em média 100 vezes mais do que se ele fosse pescado comercialmente para vender no mercado. É um bom exemplo de como certas escolhas econômicas nos permitem preservar recursos.

Há muitos outros exemplos como esse: os safáris fotográficos na África, a observação de baleias em várias partes do mundo, os projetos na Indonésia para empregar caçadores ilegais de tubarões e transformá-los em guias de mergulho, a proteção dos peixes de bico nos Estados Unidos e em quase toda a América Central para reservá-los à pesca recreativa com devolução ao mar.

Com a água acima dos joelhos no Rio Sena, Bill François exibe um bagre parisiense para a câmera. Indica os barbilhões que permitem ao peixe sentir gosto a distância, a linha lateral que o torna sensível a vibrações e as narinas muito bem desenvolvidas.

A cena não seria possível até poucos anos atrás, quando o rio ainda era um dos mais poluídos da Europa, com poucos peixes restantes. Nesta década, espécimes de mais de dois metros já foram encontrados no rio, que foi descontaminado para sediar a abertura dos Jogos Olímpicos de 2024, ocorrida em Paris na sexta-feira, 26.

Organização dos Jogos Olímpicos de Paris inovou ao realizar a abertura no Rio Sena, um dos símbolos da capital francesa Foto: Ricardo Malazan/AP

“Tem de ser pescador para se maravilhar com ele. É verdade que é um animal muito estranho, mas quando a gente conhece ele melhor, entende a máquina formidável que é”, diz François sobre o peixe que tem nas mãos.

Conhecedor de espécies marinhas e de água doce, o físico especializado em hidrodinâmica, naturalista e escritor francês quer despertar nas pessoas comuns o mesmo encantamento pelo universo aquático de pescadores e outros aficionados.

Só assim, defende, será possível preservar esses ecossistemas. Por isso, passou a contar no Aquário de Paris e em livros histórias sobre seres fantásticos do mundo submarino e nossa relação com eles.

Bill François mostra bagre pescado no Rio Sena em reportagem da agência AFP Foto: AFP

Depois de passar algumas semanas em aldeias dos povos Enawenê-Nawê e Ikpeng, no Território Indígena do Xingu, e de lançar em São Paulo seu livro A eloquência da sardinha, publicado pela editora Todavia, François falou ao Estadão sobre tradições e maravilhas do mar que só existem no Brasil, a lição do Sena para o Rio Tietê e como comer um peixe em vez de outro pode ajudar o oceano.

Muitas pessoas no Brasil são fascinadas pelo mar e têm relação afetiva com ele, assim como você. Qual é a principal coisa que você gostaria de dizer a elas sobre o oceano?

Diria para irem conferir e ver como é maravilhoso, que ainda há muitas coisas lá que precisamos desenvolver e preservar.

Normalmente, dou exemplos de diferentes regiões da França onde as pessoas podem ver golfinhos, baleias. O Brasil é ainda melhor nesse aspecto. Há muita coisa para ver.

Não só há golfinhos e baleias em alguns lugares, mas também recifes de corais, tartarugas marinhas e até descobertas recentes pela Amazônia, como recifes profundos de águas frias, únicos no mundo. É preciso viver isso, se maravilhar, para entender o quanto [o oceano] ainda é vivo e como é importante protegê-lo.

Muitos discursos fazem quem não conhece acreditar que está tudo morto, que é só plástico. Sim, há muitos problemas, um declínio terrível de espécies. Mas, antes de tudo, precisamos lembrar que ainda há muitas coisas belas para salvar, isso é o mais importante. Se tudo estivesse morto, por que se preocupar em salvar o que quer que seja?

É como com os animais em extinção. Se dissermos às pessoas “as baleias estão desaparecendo, não existem mais”, elas vão pensar: “Por que lutar? Já não há mais baleias”. Quando, na verdade, ainda existem muitas baleias! Precisamos dizer “há muitas, você pode ir vê-las, é fascinante”, para poder protegê-las.

Quais as principais ameaças aos oceanos hoje? O que podemos fazer para ajudar?

O problema número um – assim como para todo o resto, mas especialmente para o oceano –, é o aquecimento global.

Principalmente porque a maioria dos peixes são espécies de sangue frio. Nós, humanos, estamos sempre a 37ºC. Se nosso corpo chega a 38°C, ficamos doentes, se chega a 39°C ou 40°C, estamos muito doentes, e se chega a 42°C ou 43°C, morremos.

Um peixe tem a mesma temperatura da água. Se a água aumenta um grau, ele fica doente. Tenta se mover e escapar, mas se não consegue porque não há o mesmo ecossistema em outro lugar, morre.

Isso é ainda mais verdade para um coral, que não pode se mover, e para a maioria dos animais marinhos. Esse exemplo da febre é importante porque nos dá uma ideia de como os organismos vivos são sensíveis a pequenas variações de temperatura.

Hoje, já ultrapassamos 1,5 °C (de aquecimento médio do planeta). É risível quando os políticos dizem que nosso objetivo deve ser no máximo 1,5 °C. Quando olhamos as temperaturas deste ano e do ano passado, já estamos lá. E vai aumentar muito mais. É catastrófico.

É um desafio enorme porque a sociedade é construída em torno do petróleo.

Há outra questão, também muito importante e mais fácil de lutar contra: a sobrepesca. E isso pode ser combatido escolhendo consumir peixes que não estejam ameaçados. Não é complicado, é só escolher um peixe em vez de outro.

No livro, você fala sobre a ligação ancestral dos humanos com o oceano. Como as histórias que você conta podem nos reconectar a esse passado?

Quando era guia no Aquário de Paris, eu testava as histórias nas visitas, mas tínhamos o peixe atrás de nós. Mas um livro não tem isso. Então, como fazer para que os leitores se conectem?

Se você conta a história de um animal que nunca vão ver na vida, apenas em fotos, isso não toca as pessoas. Toca um pouco, mas é como no TikTok, logo passam para outra coisa.

Quase todos já estão bastante sensibilizados [sobre a proteção do ambiente marinho], o que precisamos é envolver as pessoas. E para isso, é preciso encontrar conexões.

Pensei muito sobre a conexão que temos com o mar, que hoje está principalmente em nosso prato. Infelizmente, a maioria das pessoas quase não têm outras interações com o mar hoje. Quase ninguém viu uma lula viva, mas muita gente já comeu lula. Isso já é um ponto de partida. Há também as férias na praia, quando mergulhamos e observamos o oceano.

Há muitas tradições, vínculos que tínhamos, como falar com os golfinhos para pescar. Só no Brasil ainda sabem fazer isso, em uma vila em Santa Catarina. Mas antes fazíamos isso na França, na Mauritânia, no Marrocos, provavelmente em muitos outros países onde foi esquecido antes que fosse descrito.

É absolutamente necessário preservar isso, e mais do que apenas preservar, desenvolver.

Você diz que o retorno ao Sena do sável, um tipo de sardinha gigante, após a despoluição para os Jogos Olimpícos, é ‘uma mensagem de esperança para os rios do mundo inteiro’ e cita o Tietê. Qual a lição a ser tirada do caso parisiense?

A natureza é resiliente. Com o menor esforço, muitas espécies voltam rapidamente. Isso depende da taxa de reprodução. Mas as baleias, que deixamos de caçar, estão voltando em grande número. Algumas espécies não estão mais ameaçadas e estão indo muito bem.

O Sena estava tão poluído que, nos anos 1960, havia apenas três espécies de peixes. Começamos simplesmente a limpar a água que despejávamos nele e, em 20 anos, passamos de 3 espécies de peixes para 40.

Isso, com certeza, pode ser feito no Tietê. Custa muito dinheiro, mas é possível. Limpo, ele voltaria a ser um local natural com muita vida.

Falamos dos peixes, mas é todo um ecossistema: há todos os insetos, moluscos, esponjas, águas-vivas, camarões que vivem no rio. O Sena estava no mesmo estado que o Tietê, talvez até pior. Sem dúvida pior, porque não havia capivaras [risos].

Há alguns anos, proibiram a pesca do Dourado e de outras algumas outras espécies de peixes no Pantanal, e agora eles voltaram em massa. Quando deixamos a natureza em paz, ela se recupera rápido.

E os rios, como você vê nossa relação com eles hoje? Como isso impacta a preservação dos ecossistemas de água doce?

No caso dos rios, perdemos ainda mais esse vínculo. Todas as grandes cidades da Europa foram estabelecidas ao longo de rios porque os salmões que subiam esses rios forneciam nossa alimentação durante grande parte do ano. Toda a Europa vivia disso.

Esses peixes desapareceram, toda essa cultura se perdeu. O mesmo vale para os moluscos de água doce, com os quais fazíamos joias, os invertebrados que usávamos na medicina e muitas outras coisas. Essa é uma parte um pouco oculta da história da Europa, porque era popular nas áreas rurais, entre os camponeses, mas muito importante.

Os indígenas no Brasil vivem completamente conectados com os rios e os ecossistemas. Eles protegem a natureza porque vivem dela! Se o peixe não fosse a fonte de vida deles, não teriam interesse em protegê-lo.

Claro que isso vai ainda mais longe: eles têm o saber ancestral de que dependem de todo o ecossistema, a compreensão de que tudo está interligado. Isso está presente em muitas culturas indígenas também em um plano espiritual, não somente venal, econômico.

Naturalista Bill François mostra bagre do Rio Xingu Foto: Bill François/Arquivo pessoal

(Nós ocidentais) Enxergamos muito a proteção do meio ambiente como algo intocável, onde somos os sujos e aquilo é sagrado. Mas, na verdade, é preciso cultivar esses vínculos entre os humanos e a natureza, como vemos com os indígenas. Não protegemos certas espécies porque não temos mais vínculo com elas.

O ser humano protege aquilo que lhe traz dinheiro ou felicidade. É assim que funcionamos, infelizmente. Não vamos proteger algo que não tem relação conosco.

Se quisermos que as pessoas protejam o meio ambiente, isso deve lhes trazer mais felicidade do que o dinheiro que a destruição proporciona. Em alguns casos, fazer com que proteger traga dinheiro também funciona.

Novamente, o Pantanal é um exemplo interessante. O dourado era pescado comercialmente, vendido nos mercados e devido à sobrepesca estava à beira da extinção.

Há algum tempo, uma lei proibiu totalmente matar esse peixe, mas não a pesca esportiva, recreativa, em que o pegamos, mas o devolvemos para a água. E de fato o turismo que isso gera, com pessoas vindas de todo o Brasil e do mundo inteiro, criou uma economia mais relevante que se matássemos os peixes.

Há negociações em curso porque há pessoas que querem reabrir a pesca comercial, mas há todo um negócio de pesca esportiva que agora tenta se opor a isso, porque é mais rentável para eles manter o peixe vivo e protegê-lo. Isso acontece em vários lugares do mundo.

Os Estados Unidos fizeram um cálculo a respeito: um peixe vivo, que é alvo da pesca esportiva ou de atividade de mergulho, rende em média 100 vezes mais do que se ele fosse pescado comercialmente para vender no mercado. É um bom exemplo de como certas escolhas econômicas nos permitem preservar recursos.

Há muitos outros exemplos como esse: os safáris fotográficos na África, a observação de baleias em várias partes do mundo, os projetos na Indonésia para empregar caçadores ilegais de tubarões e transformá-los em guias de mergulho, a proteção dos peixes de bico nos Estados Unidos e em quase toda a América Central para reservá-los à pesca recreativa com devolução ao mar.

Com a água acima dos joelhos no Rio Sena, Bill François exibe um bagre parisiense para a câmera. Indica os barbilhões que permitem ao peixe sentir gosto a distância, a linha lateral que o torna sensível a vibrações e as narinas muito bem desenvolvidas.

A cena não seria possível até poucos anos atrás, quando o rio ainda era um dos mais poluídos da Europa, com poucos peixes restantes. Nesta década, espécimes de mais de dois metros já foram encontrados no rio, que foi descontaminado para sediar a abertura dos Jogos Olímpicos de 2024, ocorrida em Paris na sexta-feira, 26.

Organização dos Jogos Olímpicos de Paris inovou ao realizar a abertura no Rio Sena, um dos símbolos da capital francesa Foto: Ricardo Malazan/AP

“Tem de ser pescador para se maravilhar com ele. É verdade que é um animal muito estranho, mas quando a gente conhece ele melhor, entende a máquina formidável que é”, diz François sobre o peixe que tem nas mãos.

Conhecedor de espécies marinhas e de água doce, o físico especializado em hidrodinâmica, naturalista e escritor francês quer despertar nas pessoas comuns o mesmo encantamento pelo universo aquático de pescadores e outros aficionados.

Só assim, defende, será possível preservar esses ecossistemas. Por isso, passou a contar no Aquário de Paris e em livros histórias sobre seres fantásticos do mundo submarino e nossa relação com eles.

Bill François mostra bagre pescado no Rio Sena em reportagem da agência AFP Foto: AFP

Depois de passar algumas semanas em aldeias dos povos Enawenê-Nawê e Ikpeng, no Território Indígena do Xingu, e de lançar em São Paulo seu livro A eloquência da sardinha, publicado pela editora Todavia, François falou ao Estadão sobre tradições e maravilhas do mar que só existem no Brasil, a lição do Sena para o Rio Tietê e como comer um peixe em vez de outro pode ajudar o oceano.

Muitas pessoas no Brasil são fascinadas pelo mar e têm relação afetiva com ele, assim como você. Qual é a principal coisa que você gostaria de dizer a elas sobre o oceano?

Diria para irem conferir e ver como é maravilhoso, que ainda há muitas coisas lá que precisamos desenvolver e preservar.

Normalmente, dou exemplos de diferentes regiões da França onde as pessoas podem ver golfinhos, baleias. O Brasil é ainda melhor nesse aspecto. Há muita coisa para ver.

Não só há golfinhos e baleias em alguns lugares, mas também recifes de corais, tartarugas marinhas e até descobertas recentes pela Amazônia, como recifes profundos de águas frias, únicos no mundo. É preciso viver isso, se maravilhar, para entender o quanto [o oceano] ainda é vivo e como é importante protegê-lo.

Muitos discursos fazem quem não conhece acreditar que está tudo morto, que é só plástico. Sim, há muitos problemas, um declínio terrível de espécies. Mas, antes de tudo, precisamos lembrar que ainda há muitas coisas belas para salvar, isso é o mais importante. Se tudo estivesse morto, por que se preocupar em salvar o que quer que seja?

É como com os animais em extinção. Se dissermos às pessoas “as baleias estão desaparecendo, não existem mais”, elas vão pensar: “Por que lutar? Já não há mais baleias”. Quando, na verdade, ainda existem muitas baleias! Precisamos dizer “há muitas, você pode ir vê-las, é fascinante”, para poder protegê-las.

Quais as principais ameaças aos oceanos hoje? O que podemos fazer para ajudar?

O problema número um – assim como para todo o resto, mas especialmente para o oceano –, é o aquecimento global.

Principalmente porque a maioria dos peixes são espécies de sangue frio. Nós, humanos, estamos sempre a 37ºC. Se nosso corpo chega a 38°C, ficamos doentes, se chega a 39°C ou 40°C, estamos muito doentes, e se chega a 42°C ou 43°C, morremos.

Um peixe tem a mesma temperatura da água. Se a água aumenta um grau, ele fica doente. Tenta se mover e escapar, mas se não consegue porque não há o mesmo ecossistema em outro lugar, morre.

Isso é ainda mais verdade para um coral, que não pode se mover, e para a maioria dos animais marinhos. Esse exemplo da febre é importante porque nos dá uma ideia de como os organismos vivos são sensíveis a pequenas variações de temperatura.

Hoje, já ultrapassamos 1,5 °C (de aquecimento médio do planeta). É risível quando os políticos dizem que nosso objetivo deve ser no máximo 1,5 °C. Quando olhamos as temperaturas deste ano e do ano passado, já estamos lá. E vai aumentar muito mais. É catastrófico.

É um desafio enorme porque a sociedade é construída em torno do petróleo.

Há outra questão, também muito importante e mais fácil de lutar contra: a sobrepesca. E isso pode ser combatido escolhendo consumir peixes que não estejam ameaçados. Não é complicado, é só escolher um peixe em vez de outro.

No livro, você fala sobre a ligação ancestral dos humanos com o oceano. Como as histórias que você conta podem nos reconectar a esse passado?

Quando era guia no Aquário de Paris, eu testava as histórias nas visitas, mas tínhamos o peixe atrás de nós. Mas um livro não tem isso. Então, como fazer para que os leitores se conectem?

Se você conta a história de um animal que nunca vão ver na vida, apenas em fotos, isso não toca as pessoas. Toca um pouco, mas é como no TikTok, logo passam para outra coisa.

Quase todos já estão bastante sensibilizados [sobre a proteção do ambiente marinho], o que precisamos é envolver as pessoas. E para isso, é preciso encontrar conexões.

Pensei muito sobre a conexão que temos com o mar, que hoje está principalmente em nosso prato. Infelizmente, a maioria das pessoas quase não têm outras interações com o mar hoje. Quase ninguém viu uma lula viva, mas muita gente já comeu lula. Isso já é um ponto de partida. Há também as férias na praia, quando mergulhamos e observamos o oceano.

Há muitas tradições, vínculos que tínhamos, como falar com os golfinhos para pescar. Só no Brasil ainda sabem fazer isso, em uma vila em Santa Catarina. Mas antes fazíamos isso na França, na Mauritânia, no Marrocos, provavelmente em muitos outros países onde foi esquecido antes que fosse descrito.

É absolutamente necessário preservar isso, e mais do que apenas preservar, desenvolver.

Você diz que o retorno ao Sena do sável, um tipo de sardinha gigante, após a despoluição para os Jogos Olimpícos, é ‘uma mensagem de esperança para os rios do mundo inteiro’ e cita o Tietê. Qual a lição a ser tirada do caso parisiense?

A natureza é resiliente. Com o menor esforço, muitas espécies voltam rapidamente. Isso depende da taxa de reprodução. Mas as baleias, que deixamos de caçar, estão voltando em grande número. Algumas espécies não estão mais ameaçadas e estão indo muito bem.

O Sena estava tão poluído que, nos anos 1960, havia apenas três espécies de peixes. Começamos simplesmente a limpar a água que despejávamos nele e, em 20 anos, passamos de 3 espécies de peixes para 40.

Isso, com certeza, pode ser feito no Tietê. Custa muito dinheiro, mas é possível. Limpo, ele voltaria a ser um local natural com muita vida.

Falamos dos peixes, mas é todo um ecossistema: há todos os insetos, moluscos, esponjas, águas-vivas, camarões que vivem no rio. O Sena estava no mesmo estado que o Tietê, talvez até pior. Sem dúvida pior, porque não havia capivaras [risos].

Há alguns anos, proibiram a pesca do Dourado e de outras algumas outras espécies de peixes no Pantanal, e agora eles voltaram em massa. Quando deixamos a natureza em paz, ela se recupera rápido.

E os rios, como você vê nossa relação com eles hoje? Como isso impacta a preservação dos ecossistemas de água doce?

No caso dos rios, perdemos ainda mais esse vínculo. Todas as grandes cidades da Europa foram estabelecidas ao longo de rios porque os salmões que subiam esses rios forneciam nossa alimentação durante grande parte do ano. Toda a Europa vivia disso.

Esses peixes desapareceram, toda essa cultura se perdeu. O mesmo vale para os moluscos de água doce, com os quais fazíamos joias, os invertebrados que usávamos na medicina e muitas outras coisas. Essa é uma parte um pouco oculta da história da Europa, porque era popular nas áreas rurais, entre os camponeses, mas muito importante.

Os indígenas no Brasil vivem completamente conectados com os rios e os ecossistemas. Eles protegem a natureza porque vivem dela! Se o peixe não fosse a fonte de vida deles, não teriam interesse em protegê-lo.

Claro que isso vai ainda mais longe: eles têm o saber ancestral de que dependem de todo o ecossistema, a compreensão de que tudo está interligado. Isso está presente em muitas culturas indígenas também em um plano espiritual, não somente venal, econômico.

Naturalista Bill François mostra bagre do Rio Xingu Foto: Bill François/Arquivo pessoal

(Nós ocidentais) Enxergamos muito a proteção do meio ambiente como algo intocável, onde somos os sujos e aquilo é sagrado. Mas, na verdade, é preciso cultivar esses vínculos entre os humanos e a natureza, como vemos com os indígenas. Não protegemos certas espécies porque não temos mais vínculo com elas.

O ser humano protege aquilo que lhe traz dinheiro ou felicidade. É assim que funcionamos, infelizmente. Não vamos proteger algo que não tem relação conosco.

Se quisermos que as pessoas protejam o meio ambiente, isso deve lhes trazer mais felicidade do que o dinheiro que a destruição proporciona. Em alguns casos, fazer com que proteger traga dinheiro também funciona.

Novamente, o Pantanal é um exemplo interessante. O dourado era pescado comercialmente, vendido nos mercados e devido à sobrepesca estava à beira da extinção.

Há algum tempo, uma lei proibiu totalmente matar esse peixe, mas não a pesca esportiva, recreativa, em que o pegamos, mas o devolvemos para a água. E de fato o turismo que isso gera, com pessoas vindas de todo o Brasil e do mundo inteiro, criou uma economia mais relevante que se matássemos os peixes.

Há negociações em curso porque há pessoas que querem reabrir a pesca comercial, mas há todo um negócio de pesca esportiva que agora tenta se opor a isso, porque é mais rentável para eles manter o peixe vivo e protegê-lo. Isso acontece em vários lugares do mundo.

Os Estados Unidos fizeram um cálculo a respeito: um peixe vivo, que é alvo da pesca esportiva ou de atividade de mergulho, rende em média 100 vezes mais do que se ele fosse pescado comercialmente para vender no mercado. É um bom exemplo de como certas escolhas econômicas nos permitem preservar recursos.

Há muitos outros exemplos como esse: os safáris fotográficos na África, a observação de baleias em várias partes do mundo, os projetos na Indonésia para empregar caçadores ilegais de tubarões e transformá-los em guias de mergulho, a proteção dos peixes de bico nos Estados Unidos e em quase toda a América Central para reservá-los à pesca recreativa com devolução ao mar.

Com a água acima dos joelhos no Rio Sena, Bill François exibe um bagre parisiense para a câmera. Indica os barbilhões que permitem ao peixe sentir gosto a distância, a linha lateral que o torna sensível a vibrações e as narinas muito bem desenvolvidas.

A cena não seria possível até poucos anos atrás, quando o rio ainda era um dos mais poluídos da Europa, com poucos peixes restantes. Nesta década, espécimes de mais de dois metros já foram encontrados no rio, que foi descontaminado para sediar a abertura dos Jogos Olímpicos de 2024, ocorrida em Paris na sexta-feira, 26.

Organização dos Jogos Olímpicos de Paris inovou ao realizar a abertura no Rio Sena, um dos símbolos da capital francesa Foto: Ricardo Malazan/AP

“Tem de ser pescador para se maravilhar com ele. É verdade que é um animal muito estranho, mas quando a gente conhece ele melhor, entende a máquina formidável que é”, diz François sobre o peixe que tem nas mãos.

Conhecedor de espécies marinhas e de água doce, o físico especializado em hidrodinâmica, naturalista e escritor francês quer despertar nas pessoas comuns o mesmo encantamento pelo universo aquático de pescadores e outros aficionados.

Só assim, defende, será possível preservar esses ecossistemas. Por isso, passou a contar no Aquário de Paris e em livros histórias sobre seres fantásticos do mundo submarino e nossa relação com eles.

Bill François mostra bagre pescado no Rio Sena em reportagem da agência AFP Foto: AFP

Depois de passar algumas semanas em aldeias dos povos Enawenê-Nawê e Ikpeng, no Território Indígena do Xingu, e de lançar em São Paulo seu livro A eloquência da sardinha, publicado pela editora Todavia, François falou ao Estadão sobre tradições e maravilhas do mar que só existem no Brasil, a lição do Sena para o Rio Tietê e como comer um peixe em vez de outro pode ajudar o oceano.

Muitas pessoas no Brasil são fascinadas pelo mar e têm relação afetiva com ele, assim como você. Qual é a principal coisa que você gostaria de dizer a elas sobre o oceano?

Diria para irem conferir e ver como é maravilhoso, que ainda há muitas coisas lá que precisamos desenvolver e preservar.

Normalmente, dou exemplos de diferentes regiões da França onde as pessoas podem ver golfinhos, baleias. O Brasil é ainda melhor nesse aspecto. Há muita coisa para ver.

Não só há golfinhos e baleias em alguns lugares, mas também recifes de corais, tartarugas marinhas e até descobertas recentes pela Amazônia, como recifes profundos de águas frias, únicos no mundo. É preciso viver isso, se maravilhar, para entender o quanto [o oceano] ainda é vivo e como é importante protegê-lo.

Muitos discursos fazem quem não conhece acreditar que está tudo morto, que é só plástico. Sim, há muitos problemas, um declínio terrível de espécies. Mas, antes de tudo, precisamos lembrar que ainda há muitas coisas belas para salvar, isso é o mais importante. Se tudo estivesse morto, por que se preocupar em salvar o que quer que seja?

É como com os animais em extinção. Se dissermos às pessoas “as baleias estão desaparecendo, não existem mais”, elas vão pensar: “Por que lutar? Já não há mais baleias”. Quando, na verdade, ainda existem muitas baleias! Precisamos dizer “há muitas, você pode ir vê-las, é fascinante”, para poder protegê-las.

Quais as principais ameaças aos oceanos hoje? O que podemos fazer para ajudar?

O problema número um – assim como para todo o resto, mas especialmente para o oceano –, é o aquecimento global.

Principalmente porque a maioria dos peixes são espécies de sangue frio. Nós, humanos, estamos sempre a 37ºC. Se nosso corpo chega a 38°C, ficamos doentes, se chega a 39°C ou 40°C, estamos muito doentes, e se chega a 42°C ou 43°C, morremos.

Um peixe tem a mesma temperatura da água. Se a água aumenta um grau, ele fica doente. Tenta se mover e escapar, mas se não consegue porque não há o mesmo ecossistema em outro lugar, morre.

Isso é ainda mais verdade para um coral, que não pode se mover, e para a maioria dos animais marinhos. Esse exemplo da febre é importante porque nos dá uma ideia de como os organismos vivos são sensíveis a pequenas variações de temperatura.

Hoje, já ultrapassamos 1,5 °C (de aquecimento médio do planeta). É risível quando os políticos dizem que nosso objetivo deve ser no máximo 1,5 °C. Quando olhamos as temperaturas deste ano e do ano passado, já estamos lá. E vai aumentar muito mais. É catastrófico.

É um desafio enorme porque a sociedade é construída em torno do petróleo.

Há outra questão, também muito importante e mais fácil de lutar contra: a sobrepesca. E isso pode ser combatido escolhendo consumir peixes que não estejam ameaçados. Não é complicado, é só escolher um peixe em vez de outro.

No livro, você fala sobre a ligação ancestral dos humanos com o oceano. Como as histórias que você conta podem nos reconectar a esse passado?

Quando era guia no Aquário de Paris, eu testava as histórias nas visitas, mas tínhamos o peixe atrás de nós. Mas um livro não tem isso. Então, como fazer para que os leitores se conectem?

Se você conta a história de um animal que nunca vão ver na vida, apenas em fotos, isso não toca as pessoas. Toca um pouco, mas é como no TikTok, logo passam para outra coisa.

Quase todos já estão bastante sensibilizados [sobre a proteção do ambiente marinho], o que precisamos é envolver as pessoas. E para isso, é preciso encontrar conexões.

Pensei muito sobre a conexão que temos com o mar, que hoje está principalmente em nosso prato. Infelizmente, a maioria das pessoas quase não têm outras interações com o mar hoje. Quase ninguém viu uma lula viva, mas muita gente já comeu lula. Isso já é um ponto de partida. Há também as férias na praia, quando mergulhamos e observamos o oceano.

Há muitas tradições, vínculos que tínhamos, como falar com os golfinhos para pescar. Só no Brasil ainda sabem fazer isso, em uma vila em Santa Catarina. Mas antes fazíamos isso na França, na Mauritânia, no Marrocos, provavelmente em muitos outros países onde foi esquecido antes que fosse descrito.

É absolutamente necessário preservar isso, e mais do que apenas preservar, desenvolver.

Você diz que o retorno ao Sena do sável, um tipo de sardinha gigante, após a despoluição para os Jogos Olimpícos, é ‘uma mensagem de esperança para os rios do mundo inteiro’ e cita o Tietê. Qual a lição a ser tirada do caso parisiense?

A natureza é resiliente. Com o menor esforço, muitas espécies voltam rapidamente. Isso depende da taxa de reprodução. Mas as baleias, que deixamos de caçar, estão voltando em grande número. Algumas espécies não estão mais ameaçadas e estão indo muito bem.

O Sena estava tão poluído que, nos anos 1960, havia apenas três espécies de peixes. Começamos simplesmente a limpar a água que despejávamos nele e, em 20 anos, passamos de 3 espécies de peixes para 40.

Isso, com certeza, pode ser feito no Tietê. Custa muito dinheiro, mas é possível. Limpo, ele voltaria a ser um local natural com muita vida.

Falamos dos peixes, mas é todo um ecossistema: há todos os insetos, moluscos, esponjas, águas-vivas, camarões que vivem no rio. O Sena estava no mesmo estado que o Tietê, talvez até pior. Sem dúvida pior, porque não havia capivaras [risos].

Há alguns anos, proibiram a pesca do Dourado e de outras algumas outras espécies de peixes no Pantanal, e agora eles voltaram em massa. Quando deixamos a natureza em paz, ela se recupera rápido.

E os rios, como você vê nossa relação com eles hoje? Como isso impacta a preservação dos ecossistemas de água doce?

No caso dos rios, perdemos ainda mais esse vínculo. Todas as grandes cidades da Europa foram estabelecidas ao longo de rios porque os salmões que subiam esses rios forneciam nossa alimentação durante grande parte do ano. Toda a Europa vivia disso.

Esses peixes desapareceram, toda essa cultura se perdeu. O mesmo vale para os moluscos de água doce, com os quais fazíamos joias, os invertebrados que usávamos na medicina e muitas outras coisas. Essa é uma parte um pouco oculta da história da Europa, porque era popular nas áreas rurais, entre os camponeses, mas muito importante.

Os indígenas no Brasil vivem completamente conectados com os rios e os ecossistemas. Eles protegem a natureza porque vivem dela! Se o peixe não fosse a fonte de vida deles, não teriam interesse em protegê-lo.

Claro que isso vai ainda mais longe: eles têm o saber ancestral de que dependem de todo o ecossistema, a compreensão de que tudo está interligado. Isso está presente em muitas culturas indígenas também em um plano espiritual, não somente venal, econômico.

Naturalista Bill François mostra bagre do Rio Xingu Foto: Bill François/Arquivo pessoal

(Nós ocidentais) Enxergamos muito a proteção do meio ambiente como algo intocável, onde somos os sujos e aquilo é sagrado. Mas, na verdade, é preciso cultivar esses vínculos entre os humanos e a natureza, como vemos com os indígenas. Não protegemos certas espécies porque não temos mais vínculo com elas.

O ser humano protege aquilo que lhe traz dinheiro ou felicidade. É assim que funcionamos, infelizmente. Não vamos proteger algo que não tem relação conosco.

Se quisermos que as pessoas protejam o meio ambiente, isso deve lhes trazer mais felicidade do que o dinheiro que a destruição proporciona. Em alguns casos, fazer com que proteger traga dinheiro também funciona.

Novamente, o Pantanal é um exemplo interessante. O dourado era pescado comercialmente, vendido nos mercados e devido à sobrepesca estava à beira da extinção.

Há algum tempo, uma lei proibiu totalmente matar esse peixe, mas não a pesca esportiva, recreativa, em que o pegamos, mas o devolvemos para a água. E de fato o turismo que isso gera, com pessoas vindas de todo o Brasil e do mundo inteiro, criou uma economia mais relevante que se matássemos os peixes.

Há negociações em curso porque há pessoas que querem reabrir a pesca comercial, mas há todo um negócio de pesca esportiva que agora tenta se opor a isso, porque é mais rentável para eles manter o peixe vivo e protegê-lo. Isso acontece em vários lugares do mundo.

Os Estados Unidos fizeram um cálculo a respeito: um peixe vivo, que é alvo da pesca esportiva ou de atividade de mergulho, rende em média 100 vezes mais do que se ele fosse pescado comercialmente para vender no mercado. É um bom exemplo de como certas escolhas econômicas nos permitem preservar recursos.

Há muitos outros exemplos como esse: os safáris fotográficos na África, a observação de baleias em várias partes do mundo, os projetos na Indonésia para empregar caçadores ilegais de tubarões e transformá-los em guias de mergulho, a proteção dos peixes de bico nos Estados Unidos e em quase toda a América Central para reservá-los à pesca recreativa com devolução ao mar.

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