Amazônia e o feitiço das águas do Rio Solimões


Entre igarapés e igapós, na emoção da pesca esportiva, diante do pôr do sol ou da apoteose do encontro dos rios, minicruzeiro proporciona opção confortável para viver a floresta

Por Monica Manir
Porto de Manaus Foto: Mônica Manir/Estadão

MANAUS - A lancha embica num canto do rio, depois noutro e num terceiro, até o guia apontar o lugar: “Aqui tá bom”. De um tupperware transparente, Lau (o guia) começa a tirar nacos de carne fresca. Cada um de nós apresenta seu anzol, que ele alimenta sem miséria, filé após filé. A água barrenta, que impede de ver o fundo, aumenta a excitação. É uma mistura de querer e não querer. Quem vai atrair a primeira piranha para o barco?

Definitivamente, não é uma pescaria padrão. Em vez do silêncio absoluto, Lau pede que batamos com a vara na água, num chamado que ressoa sabe-se lá de que maneira 10 metros abaixo. De repente, uma fisgada, um puxão, o caniço envergando, puxa para lá, deixa correr, puxa para cá e... voilà! Lá estou eu com uma piranha bigoduda balançando ao léu!

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Logo descubro que os bagres abundam na Amazônia, e que o fisgado por mim é um deles, gordo, bonito, oportunista. Achou a carne e entendeu que era para si. Lau tira o glutão do anzol e o devolve ao Solimões. Fico pensando se dali a dois segundos começaria o agito frenético das piranhas em volta do bagre levemente ferido. Nada. Marasmo geral.

Intuitivamente, mudo de lado na lancha. Algo me diz que as piranhas predadoras são de direita. Resgato a arte de pescar do meu avô, que levava a família à Billings nos tempos limpos da represa, e afundo na água a vara abastecida. Espero. Sinto que virá. Sei que virá. E vêm: cinco piranhas seguidas, devidamente dentadas e sem bigodes, uma prateada, duas vermelhas e duas acinzentadas, brilhantes como se revestidas de paetê. Mais gente da lancha vai se desvirginando nessa pesca esportiva, que devolve os peixes ao rio. É gente urbana como eu, que experimenta a Amazônia pela primeira vez e num esquema híbrido, de adrenalina e morosidade na medida.

Somos todos hóspedes do navio-hotel Iberostar, que proporciona, praticamente o ano inteiro, minicruzeiros pelo Solimões e pelo Rio Negro partindo do porto de Manaus. Nosso pacote durou de sexta a segunda-feira e incluiu, além da pesca de piranhas na região de Manaquiri, saídas para observar a flora e a fauna locais, um avanço de lancha por igarapés (cursos estreitos de água) e igapós (floresta inundada), caminhada por uma mata secundária, visita a uma lojinha flutuante e focagem de jacarés durante a noite. São passeios feitos de lancha, em geral pontuais, e sempre opcionais. Se o hóspede preferir, pode ficar o tempo todo no barco num esquema all-inclusive, curtindo os três dias nas piscinas do deque, donde pode apreciar um pôr do sol apoteótico ou a luta serpenteante entre as águas café-macchiato do Solimões e as café-preto do Rio Negro.

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“É uma proposta confortável de viver a Amazônia”, resume Lau. Engenheiro florestal, ele se define um generalista. Enquanto outros guias do navio meio que se especializaram – um entende de pássaros da região, outro é o cara do mato –, Lau fala inglês, um pouco de macaquês, assobia para o gavião-panema, localiza formigas frenéticas, fascina jacarés com a lanterna, instiga a curiosidade dos estrangeiros e, em especial, desperta nos brasileiros o sentimento de “se orgulhem, porque isso é de vocês”.

Cipó enrolado nas árvores da mata secundária Foto: Mônica Manir/Estadão

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Expectativa x realidade. O guia explica que, às vezes, os viajantes criam uma expectativa oceânica diante de um ponto turístico e acabam se decepcionando se o quadro não cabe na moldura. No caso, alguns têm na mente uma ideia de Amazônia com anaconda e selva fechada, quando esses minicruzeiros apontam para um cenário mais “civilizado”, nem por isso menos surpreendente. Flagrar um barco com 15 cabeças de gado, encontrar outro atulhado de tucunarés e pacus, contar as igrejas pentecostais que cada vez pescam mais fiéis na região, observar um cipó engolir a árvore hospedeira, comprar uma pamonha fresquinha numa venda flutuante, fotografar uma moleca pendurada num açaizeiro, tudo é motivo de interesse, diz ele. “Eu sempre me emociono com isso.”

Mas Lau tem noção de que no quadro também cabem personagens mais radicais, como as piranhas e os jacarés. E é atrás dos répteis que nos deslocamos também no sábado, por volta das 21h30, em direção à mesma Manaquiri. Lanterna em riste, nosso guia se equilibra à frente da lancha e vai apontando, num dos igarapés, os muitos pares de olhos vermelhos em fila indiana. Alguns jacarés logo se escondem à mera percepção do motor. Outros ficam estatelados, magnetizados pela luz.

Crianças posam para fotos em uma das paradas Foto: Mônica Manir/Estadão
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É um desses, do tipo jacaretinga, de porte menor, que Lau consegue tirar da água e mostrar para a audiência. Tem uns 2 metros e está seguro pelo pescoço e pelo rabo. Passamos a mão pela barriga lisa, pela cauda pré-histórica. Levemente, Lau puxa o papo do bicho, que abre a boca e revela uma cadeia de dentes afiados e nenhum sinal de língua. É a grande revelação da noite: jacaré não tem língua. Quer dizer, tem, mas presa no fundo da arcada.

Logo, o bicho é colocado de volta na água, para não desidratar. Percebo que Lau está tremendo. Não parece envergonhado disso. “A gente precisa ter respeito pelo animal”, diz. “Quando começa a perder o medo, começa a perder os dedos.” É com os dez intactos que esse moço nascido e criado na Amazônia acena para a criançada, que desce das palafitas para saudar os visitantes e bater uma bolinha redonda à margem do Solimões. Simples assim. Mágico assim.

Confira 10 lugares para visitar em Manaus, possível sede da Olimpíada

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Juntos, mas sem se misturar

Os mistérios que o Solimões reserva Foto: Mônica Manir/Estadão
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“Conta pra mim, Solimões, o que te faz furioso assim.” É Lau, nosso guia, quem evoca a toada do grupo Raízes Caboclas durante o passeio de lancha à margem do rio. Quer ilustrar o cenário de barrancos caídos, árvores penduradas por um fio de raiz, bancos de areia que se formam de repente e, ao longo do tempo, chegam a virar ilhas, tudo consequência da força do rio. Conta Lau que a mãe dele morava na cidade de Tefé. É filha do Solimões, portanto, mas o revoltoso engoliu 100 metros de terra da família – e nunca mais trouxe o patrimônio de volta. “A gente cansou de tentar adivinhar o que o Solimões vai fazer”, diz.

Nascido no Peru, o Solimões vai encorpando por 1.700 quilômetros até chegar a Manaus. Ali, somado ao Negro, forma o Rio Amazonas. Na verdade, um resiste ao outro por mais ou menos 6 quilômetros, se acotovelando num fenômeno bicolor observado até da Estação Espacial Internacional (ISS). Como anuncia o alto-falante do Iberostar no último dia da viagem, com os hóspedes debruçados no convés às 6 da matina, os dois rios não se envolvem de pronto porque o Solimões tem pH 6,8 e temperatura média de 27 graus, enquanto o Negro é mais ácido (tem pH 4,6) e mais quente (35 graus). “Os animais do Solimões não adentram o Rio Negro”, avisa o locutor. “E o que faz aquele boto de um lado para o outro?”, perguntei. Botos são seres evoluídos, alguém comenta. Não fazem diferença de cor, raça, sexo, pH, temperamento ou temperatura. Ah, bom.

No lado escuro, do Rio Negro, fica a maior parte dos hotéis e pousadas da região, porque ali não dá tanto pernilongo. Já do lado barrento moram as muriçocas, mas também a maioria dos peixes – como o pirarucu, que pode ter até 2 metros e pesar 180 quilos. Um ser colossal de água doce, cuja pesca é proibida para forasteiros e feita muitas vezes com arpões, bastões e canoas pela população ribeirinha. Os caboclos, especialmente dos vilarejos remotos, dependem do pirarucu, que chega a custar mais de US$ 200 em postos avançados.

Nos passeios de lancha, também é possível avistar até que altura foi a água na última grande cheia do Solimões, em 2012. Basta ver a madeira mais escura em palafitas acocoradas lá em cima, no morro. “A diferença chegou a 12 metros”, afirma Lau. Muita gente teve de ser deslocada porque ficou isolada. Então os tempos de seca são mais tranquilos? “Ao contrário”, diz ele. “Amamos o inverno.” Lau explica que o caboclo não tem muita mobília. Desprega os armários, levanta as tábuas do assoalho, se precisar pesca da janela de casa. “Somos homens-anfíbios, quase branquiados”, diz, rindo, o Homem do Fundo do Rio.

Palafitas exibem as marcas da última cheia Foto: Mônica Manir/Estadão

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Fartura de peixes e frutas e um mix de influências

É uma cozinha sem fronteiras, essa do Amazonas. Além da fartura nativa de peixes e frutas, ela incorporou os cozidos portugueses, o leite de coco nordestino e os legumes e verduras do Sul do País. Só não resolveu a rixa com o Pará, vizinho com quem alimenta animosidades presentes no cardápio. Estava lá, no bufê do Iberostar: purê de castanha-do-amazonas. No dia seguinte, apareceu um purê de castanha-do-brasil, mas não pergunte se aquilo seria de castanha-do-pará. Isso ofende os amazonenses, maiores exportadores da semente até 2013. Perderam o posto para os bolivianos, mas não a majestade. A castanha é deles, e ninguém tasca! Outros reis do menu são o pirarucu, o tucunaré, o matrinxã e o tambaqui, do qual o chef Claudio Procópio, que é de Petrópolis e passa 23 dias embarcado no navio-hotel, extrai as costelas para fazer uma fritura empanada. Ele casa o peixe com farofa de uarani, farinha de mandioca produzida nessa cidade amazonense, mais chips de banana-pacová verde. A pacová ou pacovã ou banana-da-terra tem tamanho amazônico, cerca de 50 centímetros, e é servida sozinha ou como recheio de tapioca e sanduíche.

Coquetel para refrescar Foto: Mônica Manir/Estadão

Repeti o cheesecake com base de chocolate e geleia de cupuaçu. Ok, não é exatamente regional, mas a fusão combinou bem. Descem redondos os sucos de açaí e do próprio cupuaçu. Na visita a um casal ribeirinho, seu Álvaro e dona Lea, encontrei, enfim, uma seleção de produtos da terra. O limão-caiano, a graviola, o noni e o ingá. O noni é fruto para toda obra: dizem que cura de tosse a câncer. O ingá tem sabor que lembra a fruta-do-conde. Nas palavras do seu Álvaro, “ajuda contra dores”. Tudo muito doce. As melancias, que circulam em barcos guiados invariavelmente por flamenguistas a caráter (como dá Flamengo no Amazonas!), estavam tinindo de frutose. A bitela custa R$ 10 no Mercado Central.

Onde ficamos

Bons drinques na piscina Foto: Mônica Manir/Estadão

O Iberostar Grand Hotel-Ship foi batizado nas águas do Amazonas em 2005. Desde então, opera num pique de muitas horas extras. Passa só 20 dias por ano no estaleiro, quando é submetido a uma revisão geral. Nos demais, emenda dois cruzeiros: o de cinco dias, de segunda a sexta, pelo Rio Negro; e o de três dias, de sexta a segunda, pelo Solimões. Quem quiser, pode somar um ao outro e navegar por uma semana. Vende-se como navio-hotel de luxo, mas é mais modesto. Tem 73 cabines de 23 metros quadrados e varandinha, mais duas suítes, com 50 metros e varanda maior. Em algumas cabines, é possível ver certa deterioração do tempo, e não se recomenda deixar roupa no armário fechado por horas seguidas em razão do cheiro de bolor.Mas essa simplicidade, de certa forma, combina com a natureza. O navio tem 16 metros de largura, 86 de comprimento e 2 de calado, mas navega pela vastidão do Solimões sem ostentar, e com delicadeza até. Raramente se sente a bordo a força da correnteza, de cerca de 7 km/h.

No deque, a piscina, a jacuzzi e o sistema all-inclusive, com sanduíches e bebidas nacionais e importadas, quebram a fome e a temperatura alta. No nível de baixo, o Acará, fica a lojinha, com joias etiquetadas em dólar e curiosidades como a escama de pirarucu, usada como lixa. Mais abaixo, no piso Tambaqui, sala de fitness básica e biblioteca simples. No Mandi, show para gringo ver, com danças típicas do País. E no nível da água está o restaurante. Foi onde mais senti o balanço do navio. Na cabine de comando, o comandante Ramide, 70 anos de idade e 9 de Iberostar, aciona eventualmente os holofotes para identificar bancos de areia e/ou troncos flutuantes. Sentada na proa, vento de chofre, alterno a vista a boreste e a bombordo a cada piscada do farol. Mesmo à noite, é possível sentir o Solimões em ebulição.

Bicho solto

1 | 1

Amazônia

Foto: Mônica Manir/Estadão

Serviço Aéreo: ida e volta São Paulo – Manaus, em voo direto, desde R$ 659 na TAM (tam.com.br), R$ 680 na Azul (voeazul.com.br) e R$ 855 na Gol (voegol.com.br); com parada, R$ 552 na TAM, R$ 580 na Azul e R$ 774 na Gol.   Pacotes: o Iberostar oferece três trechos: o de 3 noites pelo Solimões, o de 4, pelo Negro, ou 7 noites combinando os dois rios. Por noite, a cabine dupla custa R$ 750. Para uma pessoa desacompanhada, R$ 975. Os valores incluem alimentação, bebidas e passeios. *A repórter viajou a convite da Iberostar.

Porto de Manaus Foto: Mônica Manir/Estadão

MANAUS - A lancha embica num canto do rio, depois noutro e num terceiro, até o guia apontar o lugar: “Aqui tá bom”. De um tupperware transparente, Lau (o guia) começa a tirar nacos de carne fresca. Cada um de nós apresenta seu anzol, que ele alimenta sem miséria, filé após filé. A água barrenta, que impede de ver o fundo, aumenta a excitação. É uma mistura de querer e não querer. Quem vai atrair a primeira piranha para o barco?

Definitivamente, não é uma pescaria padrão. Em vez do silêncio absoluto, Lau pede que batamos com a vara na água, num chamado que ressoa sabe-se lá de que maneira 10 metros abaixo. De repente, uma fisgada, um puxão, o caniço envergando, puxa para lá, deixa correr, puxa para cá e... voilà! Lá estou eu com uma piranha bigoduda balançando ao léu!

Logo descubro que os bagres abundam na Amazônia, e que o fisgado por mim é um deles, gordo, bonito, oportunista. Achou a carne e entendeu que era para si. Lau tira o glutão do anzol e o devolve ao Solimões. Fico pensando se dali a dois segundos começaria o agito frenético das piranhas em volta do bagre levemente ferido. Nada. Marasmo geral.

Intuitivamente, mudo de lado na lancha. Algo me diz que as piranhas predadoras são de direita. Resgato a arte de pescar do meu avô, que levava a família à Billings nos tempos limpos da represa, e afundo na água a vara abastecida. Espero. Sinto que virá. Sei que virá. E vêm: cinco piranhas seguidas, devidamente dentadas e sem bigodes, uma prateada, duas vermelhas e duas acinzentadas, brilhantes como se revestidas de paetê. Mais gente da lancha vai se desvirginando nessa pesca esportiva, que devolve os peixes ao rio. É gente urbana como eu, que experimenta a Amazônia pela primeira vez e num esquema híbrido, de adrenalina e morosidade na medida.

Somos todos hóspedes do navio-hotel Iberostar, que proporciona, praticamente o ano inteiro, minicruzeiros pelo Solimões e pelo Rio Negro partindo do porto de Manaus. Nosso pacote durou de sexta a segunda-feira e incluiu, além da pesca de piranhas na região de Manaquiri, saídas para observar a flora e a fauna locais, um avanço de lancha por igarapés (cursos estreitos de água) e igapós (floresta inundada), caminhada por uma mata secundária, visita a uma lojinha flutuante e focagem de jacarés durante a noite. São passeios feitos de lancha, em geral pontuais, e sempre opcionais. Se o hóspede preferir, pode ficar o tempo todo no barco num esquema all-inclusive, curtindo os três dias nas piscinas do deque, donde pode apreciar um pôr do sol apoteótico ou a luta serpenteante entre as águas café-macchiato do Solimões e as café-preto do Rio Negro.

“É uma proposta confortável de viver a Amazônia”, resume Lau. Engenheiro florestal, ele se define um generalista. Enquanto outros guias do navio meio que se especializaram – um entende de pássaros da região, outro é o cara do mato –, Lau fala inglês, um pouco de macaquês, assobia para o gavião-panema, localiza formigas frenéticas, fascina jacarés com a lanterna, instiga a curiosidade dos estrangeiros e, em especial, desperta nos brasileiros o sentimento de “se orgulhem, porque isso é de vocês”.

Cipó enrolado nas árvores da mata secundária Foto: Mônica Manir/Estadão

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Expectativa x realidade. O guia explica que, às vezes, os viajantes criam uma expectativa oceânica diante de um ponto turístico e acabam se decepcionando se o quadro não cabe na moldura. No caso, alguns têm na mente uma ideia de Amazônia com anaconda e selva fechada, quando esses minicruzeiros apontam para um cenário mais “civilizado”, nem por isso menos surpreendente. Flagrar um barco com 15 cabeças de gado, encontrar outro atulhado de tucunarés e pacus, contar as igrejas pentecostais que cada vez pescam mais fiéis na região, observar um cipó engolir a árvore hospedeira, comprar uma pamonha fresquinha numa venda flutuante, fotografar uma moleca pendurada num açaizeiro, tudo é motivo de interesse, diz ele. “Eu sempre me emociono com isso.”

Mas Lau tem noção de que no quadro também cabem personagens mais radicais, como as piranhas e os jacarés. E é atrás dos répteis que nos deslocamos também no sábado, por volta das 21h30, em direção à mesma Manaquiri. Lanterna em riste, nosso guia se equilibra à frente da lancha e vai apontando, num dos igarapés, os muitos pares de olhos vermelhos em fila indiana. Alguns jacarés logo se escondem à mera percepção do motor. Outros ficam estatelados, magnetizados pela luz.

Crianças posam para fotos em uma das paradas Foto: Mônica Manir/Estadão

É um desses, do tipo jacaretinga, de porte menor, que Lau consegue tirar da água e mostrar para a audiência. Tem uns 2 metros e está seguro pelo pescoço e pelo rabo. Passamos a mão pela barriga lisa, pela cauda pré-histórica. Levemente, Lau puxa o papo do bicho, que abre a boca e revela uma cadeia de dentes afiados e nenhum sinal de língua. É a grande revelação da noite: jacaré não tem língua. Quer dizer, tem, mas presa no fundo da arcada.

Logo, o bicho é colocado de volta na água, para não desidratar. Percebo que Lau está tremendo. Não parece envergonhado disso. “A gente precisa ter respeito pelo animal”, diz. “Quando começa a perder o medo, começa a perder os dedos.” É com os dez intactos que esse moço nascido e criado na Amazônia acena para a criançada, que desce das palafitas para saudar os visitantes e bater uma bolinha redonda à margem do Solimões. Simples assim. Mágico assim.

Confira 10 lugares para visitar em Manaus, possível sede da Olimpíada

Juntos, mas sem se misturar

Os mistérios que o Solimões reserva Foto: Mônica Manir/Estadão

“Conta pra mim, Solimões, o que te faz furioso assim.” É Lau, nosso guia, quem evoca a toada do grupo Raízes Caboclas durante o passeio de lancha à margem do rio. Quer ilustrar o cenário de barrancos caídos, árvores penduradas por um fio de raiz, bancos de areia que se formam de repente e, ao longo do tempo, chegam a virar ilhas, tudo consequência da força do rio. Conta Lau que a mãe dele morava na cidade de Tefé. É filha do Solimões, portanto, mas o revoltoso engoliu 100 metros de terra da família – e nunca mais trouxe o patrimônio de volta. “A gente cansou de tentar adivinhar o que o Solimões vai fazer”, diz.

Nascido no Peru, o Solimões vai encorpando por 1.700 quilômetros até chegar a Manaus. Ali, somado ao Negro, forma o Rio Amazonas. Na verdade, um resiste ao outro por mais ou menos 6 quilômetros, se acotovelando num fenômeno bicolor observado até da Estação Espacial Internacional (ISS). Como anuncia o alto-falante do Iberostar no último dia da viagem, com os hóspedes debruçados no convés às 6 da matina, os dois rios não se envolvem de pronto porque o Solimões tem pH 6,8 e temperatura média de 27 graus, enquanto o Negro é mais ácido (tem pH 4,6) e mais quente (35 graus). “Os animais do Solimões não adentram o Rio Negro”, avisa o locutor. “E o que faz aquele boto de um lado para o outro?”, perguntei. Botos são seres evoluídos, alguém comenta. Não fazem diferença de cor, raça, sexo, pH, temperamento ou temperatura. Ah, bom.

No lado escuro, do Rio Negro, fica a maior parte dos hotéis e pousadas da região, porque ali não dá tanto pernilongo. Já do lado barrento moram as muriçocas, mas também a maioria dos peixes – como o pirarucu, que pode ter até 2 metros e pesar 180 quilos. Um ser colossal de água doce, cuja pesca é proibida para forasteiros e feita muitas vezes com arpões, bastões e canoas pela população ribeirinha. Os caboclos, especialmente dos vilarejos remotos, dependem do pirarucu, que chega a custar mais de US$ 200 em postos avançados.

Nos passeios de lancha, também é possível avistar até que altura foi a água na última grande cheia do Solimões, em 2012. Basta ver a madeira mais escura em palafitas acocoradas lá em cima, no morro. “A diferença chegou a 12 metros”, afirma Lau. Muita gente teve de ser deslocada porque ficou isolada. Então os tempos de seca são mais tranquilos? “Ao contrário”, diz ele. “Amamos o inverno.” Lau explica que o caboclo não tem muita mobília. Desprega os armários, levanta as tábuas do assoalho, se precisar pesca da janela de casa. “Somos homens-anfíbios, quase branquiados”, diz, rindo, o Homem do Fundo do Rio.

Palafitas exibem as marcas da última cheia Foto: Mônica Manir/Estadão

" STYLE="FLOAT: LEFT; MARGIN: 10PX 10PX 10PX 0PX;

Fartura de peixes e frutas e um mix de influências

É uma cozinha sem fronteiras, essa do Amazonas. Além da fartura nativa de peixes e frutas, ela incorporou os cozidos portugueses, o leite de coco nordestino e os legumes e verduras do Sul do País. Só não resolveu a rixa com o Pará, vizinho com quem alimenta animosidades presentes no cardápio. Estava lá, no bufê do Iberostar: purê de castanha-do-amazonas. No dia seguinte, apareceu um purê de castanha-do-brasil, mas não pergunte se aquilo seria de castanha-do-pará. Isso ofende os amazonenses, maiores exportadores da semente até 2013. Perderam o posto para os bolivianos, mas não a majestade. A castanha é deles, e ninguém tasca! Outros reis do menu são o pirarucu, o tucunaré, o matrinxã e o tambaqui, do qual o chef Claudio Procópio, que é de Petrópolis e passa 23 dias embarcado no navio-hotel, extrai as costelas para fazer uma fritura empanada. Ele casa o peixe com farofa de uarani, farinha de mandioca produzida nessa cidade amazonense, mais chips de banana-pacová verde. A pacová ou pacovã ou banana-da-terra tem tamanho amazônico, cerca de 50 centímetros, e é servida sozinha ou como recheio de tapioca e sanduíche.

Coquetel para refrescar Foto: Mônica Manir/Estadão

Repeti o cheesecake com base de chocolate e geleia de cupuaçu. Ok, não é exatamente regional, mas a fusão combinou bem. Descem redondos os sucos de açaí e do próprio cupuaçu. Na visita a um casal ribeirinho, seu Álvaro e dona Lea, encontrei, enfim, uma seleção de produtos da terra. O limão-caiano, a graviola, o noni e o ingá. O noni é fruto para toda obra: dizem que cura de tosse a câncer. O ingá tem sabor que lembra a fruta-do-conde. Nas palavras do seu Álvaro, “ajuda contra dores”. Tudo muito doce. As melancias, que circulam em barcos guiados invariavelmente por flamenguistas a caráter (como dá Flamengo no Amazonas!), estavam tinindo de frutose. A bitela custa R$ 10 no Mercado Central.

Onde ficamos

Bons drinques na piscina Foto: Mônica Manir/Estadão

O Iberostar Grand Hotel-Ship foi batizado nas águas do Amazonas em 2005. Desde então, opera num pique de muitas horas extras. Passa só 20 dias por ano no estaleiro, quando é submetido a uma revisão geral. Nos demais, emenda dois cruzeiros: o de cinco dias, de segunda a sexta, pelo Rio Negro; e o de três dias, de sexta a segunda, pelo Solimões. Quem quiser, pode somar um ao outro e navegar por uma semana. Vende-se como navio-hotel de luxo, mas é mais modesto. Tem 73 cabines de 23 metros quadrados e varandinha, mais duas suítes, com 50 metros e varanda maior. Em algumas cabines, é possível ver certa deterioração do tempo, e não se recomenda deixar roupa no armário fechado por horas seguidas em razão do cheiro de bolor.Mas essa simplicidade, de certa forma, combina com a natureza. O navio tem 16 metros de largura, 86 de comprimento e 2 de calado, mas navega pela vastidão do Solimões sem ostentar, e com delicadeza até. Raramente se sente a bordo a força da correnteza, de cerca de 7 km/h.

No deque, a piscina, a jacuzzi e o sistema all-inclusive, com sanduíches e bebidas nacionais e importadas, quebram a fome e a temperatura alta. No nível de baixo, o Acará, fica a lojinha, com joias etiquetadas em dólar e curiosidades como a escama de pirarucu, usada como lixa. Mais abaixo, no piso Tambaqui, sala de fitness básica e biblioteca simples. No Mandi, show para gringo ver, com danças típicas do País. E no nível da água está o restaurante. Foi onde mais senti o balanço do navio. Na cabine de comando, o comandante Ramide, 70 anos de idade e 9 de Iberostar, aciona eventualmente os holofotes para identificar bancos de areia e/ou troncos flutuantes. Sentada na proa, vento de chofre, alterno a vista a boreste e a bombordo a cada piscada do farol. Mesmo à noite, é possível sentir o Solimões em ebulição.

Bicho solto

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Amazônia

Foto: Mônica Manir/Estadão

Serviço Aéreo: ida e volta São Paulo – Manaus, em voo direto, desde R$ 659 na TAM (tam.com.br), R$ 680 na Azul (voeazul.com.br) e R$ 855 na Gol (voegol.com.br); com parada, R$ 552 na TAM, R$ 580 na Azul e R$ 774 na Gol.   Pacotes: o Iberostar oferece três trechos: o de 3 noites pelo Solimões, o de 4, pelo Negro, ou 7 noites combinando os dois rios. Por noite, a cabine dupla custa R$ 750. Para uma pessoa desacompanhada, R$ 975. Os valores incluem alimentação, bebidas e passeios. *A repórter viajou a convite da Iberostar.

Porto de Manaus Foto: Mônica Manir/Estadão

MANAUS - A lancha embica num canto do rio, depois noutro e num terceiro, até o guia apontar o lugar: “Aqui tá bom”. De um tupperware transparente, Lau (o guia) começa a tirar nacos de carne fresca. Cada um de nós apresenta seu anzol, que ele alimenta sem miséria, filé após filé. A água barrenta, que impede de ver o fundo, aumenta a excitação. É uma mistura de querer e não querer. Quem vai atrair a primeira piranha para o barco?

Definitivamente, não é uma pescaria padrão. Em vez do silêncio absoluto, Lau pede que batamos com a vara na água, num chamado que ressoa sabe-se lá de que maneira 10 metros abaixo. De repente, uma fisgada, um puxão, o caniço envergando, puxa para lá, deixa correr, puxa para cá e... voilà! Lá estou eu com uma piranha bigoduda balançando ao léu!

Logo descubro que os bagres abundam na Amazônia, e que o fisgado por mim é um deles, gordo, bonito, oportunista. Achou a carne e entendeu que era para si. Lau tira o glutão do anzol e o devolve ao Solimões. Fico pensando se dali a dois segundos começaria o agito frenético das piranhas em volta do bagre levemente ferido. Nada. Marasmo geral.

Intuitivamente, mudo de lado na lancha. Algo me diz que as piranhas predadoras são de direita. Resgato a arte de pescar do meu avô, que levava a família à Billings nos tempos limpos da represa, e afundo na água a vara abastecida. Espero. Sinto que virá. Sei que virá. E vêm: cinco piranhas seguidas, devidamente dentadas e sem bigodes, uma prateada, duas vermelhas e duas acinzentadas, brilhantes como se revestidas de paetê. Mais gente da lancha vai se desvirginando nessa pesca esportiva, que devolve os peixes ao rio. É gente urbana como eu, que experimenta a Amazônia pela primeira vez e num esquema híbrido, de adrenalina e morosidade na medida.

Somos todos hóspedes do navio-hotel Iberostar, que proporciona, praticamente o ano inteiro, minicruzeiros pelo Solimões e pelo Rio Negro partindo do porto de Manaus. Nosso pacote durou de sexta a segunda-feira e incluiu, além da pesca de piranhas na região de Manaquiri, saídas para observar a flora e a fauna locais, um avanço de lancha por igarapés (cursos estreitos de água) e igapós (floresta inundada), caminhada por uma mata secundária, visita a uma lojinha flutuante e focagem de jacarés durante a noite. São passeios feitos de lancha, em geral pontuais, e sempre opcionais. Se o hóspede preferir, pode ficar o tempo todo no barco num esquema all-inclusive, curtindo os três dias nas piscinas do deque, donde pode apreciar um pôr do sol apoteótico ou a luta serpenteante entre as águas café-macchiato do Solimões e as café-preto do Rio Negro.

“É uma proposta confortável de viver a Amazônia”, resume Lau. Engenheiro florestal, ele se define um generalista. Enquanto outros guias do navio meio que se especializaram – um entende de pássaros da região, outro é o cara do mato –, Lau fala inglês, um pouco de macaquês, assobia para o gavião-panema, localiza formigas frenéticas, fascina jacarés com a lanterna, instiga a curiosidade dos estrangeiros e, em especial, desperta nos brasileiros o sentimento de “se orgulhem, porque isso é de vocês”.

Cipó enrolado nas árvores da mata secundária Foto: Mônica Manir/Estadão

" STYLE="FLOAT: LEFT; MARGIN: 10PX 10PX 10PX 0PX;

Expectativa x realidade. O guia explica que, às vezes, os viajantes criam uma expectativa oceânica diante de um ponto turístico e acabam se decepcionando se o quadro não cabe na moldura. No caso, alguns têm na mente uma ideia de Amazônia com anaconda e selva fechada, quando esses minicruzeiros apontam para um cenário mais “civilizado”, nem por isso menos surpreendente. Flagrar um barco com 15 cabeças de gado, encontrar outro atulhado de tucunarés e pacus, contar as igrejas pentecostais que cada vez pescam mais fiéis na região, observar um cipó engolir a árvore hospedeira, comprar uma pamonha fresquinha numa venda flutuante, fotografar uma moleca pendurada num açaizeiro, tudo é motivo de interesse, diz ele. “Eu sempre me emociono com isso.”

Mas Lau tem noção de que no quadro também cabem personagens mais radicais, como as piranhas e os jacarés. E é atrás dos répteis que nos deslocamos também no sábado, por volta das 21h30, em direção à mesma Manaquiri. Lanterna em riste, nosso guia se equilibra à frente da lancha e vai apontando, num dos igarapés, os muitos pares de olhos vermelhos em fila indiana. Alguns jacarés logo se escondem à mera percepção do motor. Outros ficam estatelados, magnetizados pela luz.

Crianças posam para fotos em uma das paradas Foto: Mônica Manir/Estadão

É um desses, do tipo jacaretinga, de porte menor, que Lau consegue tirar da água e mostrar para a audiência. Tem uns 2 metros e está seguro pelo pescoço e pelo rabo. Passamos a mão pela barriga lisa, pela cauda pré-histórica. Levemente, Lau puxa o papo do bicho, que abre a boca e revela uma cadeia de dentes afiados e nenhum sinal de língua. É a grande revelação da noite: jacaré não tem língua. Quer dizer, tem, mas presa no fundo da arcada.

Logo, o bicho é colocado de volta na água, para não desidratar. Percebo que Lau está tremendo. Não parece envergonhado disso. “A gente precisa ter respeito pelo animal”, diz. “Quando começa a perder o medo, começa a perder os dedos.” É com os dez intactos que esse moço nascido e criado na Amazônia acena para a criançada, que desce das palafitas para saudar os visitantes e bater uma bolinha redonda à margem do Solimões. Simples assim. Mágico assim.

Confira 10 lugares para visitar em Manaus, possível sede da Olimpíada

Juntos, mas sem se misturar

Os mistérios que o Solimões reserva Foto: Mônica Manir/Estadão

“Conta pra mim, Solimões, o que te faz furioso assim.” É Lau, nosso guia, quem evoca a toada do grupo Raízes Caboclas durante o passeio de lancha à margem do rio. Quer ilustrar o cenário de barrancos caídos, árvores penduradas por um fio de raiz, bancos de areia que se formam de repente e, ao longo do tempo, chegam a virar ilhas, tudo consequência da força do rio. Conta Lau que a mãe dele morava na cidade de Tefé. É filha do Solimões, portanto, mas o revoltoso engoliu 100 metros de terra da família – e nunca mais trouxe o patrimônio de volta. “A gente cansou de tentar adivinhar o que o Solimões vai fazer”, diz.

Nascido no Peru, o Solimões vai encorpando por 1.700 quilômetros até chegar a Manaus. Ali, somado ao Negro, forma o Rio Amazonas. Na verdade, um resiste ao outro por mais ou menos 6 quilômetros, se acotovelando num fenômeno bicolor observado até da Estação Espacial Internacional (ISS). Como anuncia o alto-falante do Iberostar no último dia da viagem, com os hóspedes debruçados no convés às 6 da matina, os dois rios não se envolvem de pronto porque o Solimões tem pH 6,8 e temperatura média de 27 graus, enquanto o Negro é mais ácido (tem pH 4,6) e mais quente (35 graus). “Os animais do Solimões não adentram o Rio Negro”, avisa o locutor. “E o que faz aquele boto de um lado para o outro?”, perguntei. Botos são seres evoluídos, alguém comenta. Não fazem diferença de cor, raça, sexo, pH, temperamento ou temperatura. Ah, bom.

No lado escuro, do Rio Negro, fica a maior parte dos hotéis e pousadas da região, porque ali não dá tanto pernilongo. Já do lado barrento moram as muriçocas, mas também a maioria dos peixes – como o pirarucu, que pode ter até 2 metros e pesar 180 quilos. Um ser colossal de água doce, cuja pesca é proibida para forasteiros e feita muitas vezes com arpões, bastões e canoas pela população ribeirinha. Os caboclos, especialmente dos vilarejos remotos, dependem do pirarucu, que chega a custar mais de US$ 200 em postos avançados.

Nos passeios de lancha, também é possível avistar até que altura foi a água na última grande cheia do Solimões, em 2012. Basta ver a madeira mais escura em palafitas acocoradas lá em cima, no morro. “A diferença chegou a 12 metros”, afirma Lau. Muita gente teve de ser deslocada porque ficou isolada. Então os tempos de seca são mais tranquilos? “Ao contrário”, diz ele. “Amamos o inverno.” Lau explica que o caboclo não tem muita mobília. Desprega os armários, levanta as tábuas do assoalho, se precisar pesca da janela de casa. “Somos homens-anfíbios, quase branquiados”, diz, rindo, o Homem do Fundo do Rio.

Palafitas exibem as marcas da última cheia Foto: Mônica Manir/Estadão

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Fartura de peixes e frutas e um mix de influências

É uma cozinha sem fronteiras, essa do Amazonas. Além da fartura nativa de peixes e frutas, ela incorporou os cozidos portugueses, o leite de coco nordestino e os legumes e verduras do Sul do País. Só não resolveu a rixa com o Pará, vizinho com quem alimenta animosidades presentes no cardápio. Estava lá, no bufê do Iberostar: purê de castanha-do-amazonas. No dia seguinte, apareceu um purê de castanha-do-brasil, mas não pergunte se aquilo seria de castanha-do-pará. Isso ofende os amazonenses, maiores exportadores da semente até 2013. Perderam o posto para os bolivianos, mas não a majestade. A castanha é deles, e ninguém tasca! Outros reis do menu são o pirarucu, o tucunaré, o matrinxã e o tambaqui, do qual o chef Claudio Procópio, que é de Petrópolis e passa 23 dias embarcado no navio-hotel, extrai as costelas para fazer uma fritura empanada. Ele casa o peixe com farofa de uarani, farinha de mandioca produzida nessa cidade amazonense, mais chips de banana-pacová verde. A pacová ou pacovã ou banana-da-terra tem tamanho amazônico, cerca de 50 centímetros, e é servida sozinha ou como recheio de tapioca e sanduíche.

Coquetel para refrescar Foto: Mônica Manir/Estadão

Repeti o cheesecake com base de chocolate e geleia de cupuaçu. Ok, não é exatamente regional, mas a fusão combinou bem. Descem redondos os sucos de açaí e do próprio cupuaçu. Na visita a um casal ribeirinho, seu Álvaro e dona Lea, encontrei, enfim, uma seleção de produtos da terra. O limão-caiano, a graviola, o noni e o ingá. O noni é fruto para toda obra: dizem que cura de tosse a câncer. O ingá tem sabor que lembra a fruta-do-conde. Nas palavras do seu Álvaro, “ajuda contra dores”. Tudo muito doce. As melancias, que circulam em barcos guiados invariavelmente por flamenguistas a caráter (como dá Flamengo no Amazonas!), estavam tinindo de frutose. A bitela custa R$ 10 no Mercado Central.

Onde ficamos

Bons drinques na piscina Foto: Mônica Manir/Estadão

O Iberostar Grand Hotel-Ship foi batizado nas águas do Amazonas em 2005. Desde então, opera num pique de muitas horas extras. Passa só 20 dias por ano no estaleiro, quando é submetido a uma revisão geral. Nos demais, emenda dois cruzeiros: o de cinco dias, de segunda a sexta, pelo Rio Negro; e o de três dias, de sexta a segunda, pelo Solimões. Quem quiser, pode somar um ao outro e navegar por uma semana. Vende-se como navio-hotel de luxo, mas é mais modesto. Tem 73 cabines de 23 metros quadrados e varandinha, mais duas suítes, com 50 metros e varanda maior. Em algumas cabines, é possível ver certa deterioração do tempo, e não se recomenda deixar roupa no armário fechado por horas seguidas em razão do cheiro de bolor.Mas essa simplicidade, de certa forma, combina com a natureza. O navio tem 16 metros de largura, 86 de comprimento e 2 de calado, mas navega pela vastidão do Solimões sem ostentar, e com delicadeza até. Raramente se sente a bordo a força da correnteza, de cerca de 7 km/h.

No deque, a piscina, a jacuzzi e o sistema all-inclusive, com sanduíches e bebidas nacionais e importadas, quebram a fome e a temperatura alta. No nível de baixo, o Acará, fica a lojinha, com joias etiquetadas em dólar e curiosidades como a escama de pirarucu, usada como lixa. Mais abaixo, no piso Tambaqui, sala de fitness básica e biblioteca simples. No Mandi, show para gringo ver, com danças típicas do País. E no nível da água está o restaurante. Foi onde mais senti o balanço do navio. Na cabine de comando, o comandante Ramide, 70 anos de idade e 9 de Iberostar, aciona eventualmente os holofotes para identificar bancos de areia e/ou troncos flutuantes. Sentada na proa, vento de chofre, alterno a vista a boreste e a bombordo a cada piscada do farol. Mesmo à noite, é possível sentir o Solimões em ebulição.

Bicho solto

1 | 1

Amazônia

Foto: Mônica Manir/Estadão

Serviço Aéreo: ida e volta São Paulo – Manaus, em voo direto, desde R$ 659 na TAM (tam.com.br), R$ 680 na Azul (voeazul.com.br) e R$ 855 na Gol (voegol.com.br); com parada, R$ 552 na TAM, R$ 580 na Azul e R$ 774 na Gol.   Pacotes: o Iberostar oferece três trechos: o de 3 noites pelo Solimões, o de 4, pelo Negro, ou 7 noites combinando os dois rios. Por noite, a cabine dupla custa R$ 750. Para uma pessoa desacompanhada, R$ 975. Os valores incluem alimentação, bebidas e passeios. *A repórter viajou a convite da Iberostar.

Porto de Manaus Foto: Mônica Manir/Estadão

MANAUS - A lancha embica num canto do rio, depois noutro e num terceiro, até o guia apontar o lugar: “Aqui tá bom”. De um tupperware transparente, Lau (o guia) começa a tirar nacos de carne fresca. Cada um de nós apresenta seu anzol, que ele alimenta sem miséria, filé após filé. A água barrenta, que impede de ver o fundo, aumenta a excitação. É uma mistura de querer e não querer. Quem vai atrair a primeira piranha para o barco?

Definitivamente, não é uma pescaria padrão. Em vez do silêncio absoluto, Lau pede que batamos com a vara na água, num chamado que ressoa sabe-se lá de que maneira 10 metros abaixo. De repente, uma fisgada, um puxão, o caniço envergando, puxa para lá, deixa correr, puxa para cá e... voilà! Lá estou eu com uma piranha bigoduda balançando ao léu!

Logo descubro que os bagres abundam na Amazônia, e que o fisgado por mim é um deles, gordo, bonito, oportunista. Achou a carne e entendeu que era para si. Lau tira o glutão do anzol e o devolve ao Solimões. Fico pensando se dali a dois segundos começaria o agito frenético das piranhas em volta do bagre levemente ferido. Nada. Marasmo geral.

Intuitivamente, mudo de lado na lancha. Algo me diz que as piranhas predadoras são de direita. Resgato a arte de pescar do meu avô, que levava a família à Billings nos tempos limpos da represa, e afundo na água a vara abastecida. Espero. Sinto que virá. Sei que virá. E vêm: cinco piranhas seguidas, devidamente dentadas e sem bigodes, uma prateada, duas vermelhas e duas acinzentadas, brilhantes como se revestidas de paetê. Mais gente da lancha vai se desvirginando nessa pesca esportiva, que devolve os peixes ao rio. É gente urbana como eu, que experimenta a Amazônia pela primeira vez e num esquema híbrido, de adrenalina e morosidade na medida.

Somos todos hóspedes do navio-hotel Iberostar, que proporciona, praticamente o ano inteiro, minicruzeiros pelo Solimões e pelo Rio Negro partindo do porto de Manaus. Nosso pacote durou de sexta a segunda-feira e incluiu, além da pesca de piranhas na região de Manaquiri, saídas para observar a flora e a fauna locais, um avanço de lancha por igarapés (cursos estreitos de água) e igapós (floresta inundada), caminhada por uma mata secundária, visita a uma lojinha flutuante e focagem de jacarés durante a noite. São passeios feitos de lancha, em geral pontuais, e sempre opcionais. Se o hóspede preferir, pode ficar o tempo todo no barco num esquema all-inclusive, curtindo os três dias nas piscinas do deque, donde pode apreciar um pôr do sol apoteótico ou a luta serpenteante entre as águas café-macchiato do Solimões e as café-preto do Rio Negro.

“É uma proposta confortável de viver a Amazônia”, resume Lau. Engenheiro florestal, ele se define um generalista. Enquanto outros guias do navio meio que se especializaram – um entende de pássaros da região, outro é o cara do mato –, Lau fala inglês, um pouco de macaquês, assobia para o gavião-panema, localiza formigas frenéticas, fascina jacarés com a lanterna, instiga a curiosidade dos estrangeiros e, em especial, desperta nos brasileiros o sentimento de “se orgulhem, porque isso é de vocês”.

Cipó enrolado nas árvores da mata secundária Foto: Mônica Manir/Estadão

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Expectativa x realidade. O guia explica que, às vezes, os viajantes criam uma expectativa oceânica diante de um ponto turístico e acabam se decepcionando se o quadro não cabe na moldura. No caso, alguns têm na mente uma ideia de Amazônia com anaconda e selva fechada, quando esses minicruzeiros apontam para um cenário mais “civilizado”, nem por isso menos surpreendente. Flagrar um barco com 15 cabeças de gado, encontrar outro atulhado de tucunarés e pacus, contar as igrejas pentecostais que cada vez pescam mais fiéis na região, observar um cipó engolir a árvore hospedeira, comprar uma pamonha fresquinha numa venda flutuante, fotografar uma moleca pendurada num açaizeiro, tudo é motivo de interesse, diz ele. “Eu sempre me emociono com isso.”

Mas Lau tem noção de que no quadro também cabem personagens mais radicais, como as piranhas e os jacarés. E é atrás dos répteis que nos deslocamos também no sábado, por volta das 21h30, em direção à mesma Manaquiri. Lanterna em riste, nosso guia se equilibra à frente da lancha e vai apontando, num dos igarapés, os muitos pares de olhos vermelhos em fila indiana. Alguns jacarés logo se escondem à mera percepção do motor. Outros ficam estatelados, magnetizados pela luz.

Crianças posam para fotos em uma das paradas Foto: Mônica Manir/Estadão

É um desses, do tipo jacaretinga, de porte menor, que Lau consegue tirar da água e mostrar para a audiência. Tem uns 2 metros e está seguro pelo pescoço e pelo rabo. Passamos a mão pela barriga lisa, pela cauda pré-histórica. Levemente, Lau puxa o papo do bicho, que abre a boca e revela uma cadeia de dentes afiados e nenhum sinal de língua. É a grande revelação da noite: jacaré não tem língua. Quer dizer, tem, mas presa no fundo da arcada.

Logo, o bicho é colocado de volta na água, para não desidratar. Percebo que Lau está tremendo. Não parece envergonhado disso. “A gente precisa ter respeito pelo animal”, diz. “Quando começa a perder o medo, começa a perder os dedos.” É com os dez intactos que esse moço nascido e criado na Amazônia acena para a criançada, que desce das palafitas para saudar os visitantes e bater uma bolinha redonda à margem do Solimões. Simples assim. Mágico assim.

Confira 10 lugares para visitar em Manaus, possível sede da Olimpíada

Juntos, mas sem se misturar

Os mistérios que o Solimões reserva Foto: Mônica Manir/Estadão

“Conta pra mim, Solimões, o que te faz furioso assim.” É Lau, nosso guia, quem evoca a toada do grupo Raízes Caboclas durante o passeio de lancha à margem do rio. Quer ilustrar o cenário de barrancos caídos, árvores penduradas por um fio de raiz, bancos de areia que se formam de repente e, ao longo do tempo, chegam a virar ilhas, tudo consequência da força do rio. Conta Lau que a mãe dele morava na cidade de Tefé. É filha do Solimões, portanto, mas o revoltoso engoliu 100 metros de terra da família – e nunca mais trouxe o patrimônio de volta. “A gente cansou de tentar adivinhar o que o Solimões vai fazer”, diz.

Nascido no Peru, o Solimões vai encorpando por 1.700 quilômetros até chegar a Manaus. Ali, somado ao Negro, forma o Rio Amazonas. Na verdade, um resiste ao outro por mais ou menos 6 quilômetros, se acotovelando num fenômeno bicolor observado até da Estação Espacial Internacional (ISS). Como anuncia o alto-falante do Iberostar no último dia da viagem, com os hóspedes debruçados no convés às 6 da matina, os dois rios não se envolvem de pronto porque o Solimões tem pH 6,8 e temperatura média de 27 graus, enquanto o Negro é mais ácido (tem pH 4,6) e mais quente (35 graus). “Os animais do Solimões não adentram o Rio Negro”, avisa o locutor. “E o que faz aquele boto de um lado para o outro?”, perguntei. Botos são seres evoluídos, alguém comenta. Não fazem diferença de cor, raça, sexo, pH, temperamento ou temperatura. Ah, bom.

No lado escuro, do Rio Negro, fica a maior parte dos hotéis e pousadas da região, porque ali não dá tanto pernilongo. Já do lado barrento moram as muriçocas, mas também a maioria dos peixes – como o pirarucu, que pode ter até 2 metros e pesar 180 quilos. Um ser colossal de água doce, cuja pesca é proibida para forasteiros e feita muitas vezes com arpões, bastões e canoas pela população ribeirinha. Os caboclos, especialmente dos vilarejos remotos, dependem do pirarucu, que chega a custar mais de US$ 200 em postos avançados.

Nos passeios de lancha, também é possível avistar até que altura foi a água na última grande cheia do Solimões, em 2012. Basta ver a madeira mais escura em palafitas acocoradas lá em cima, no morro. “A diferença chegou a 12 metros”, afirma Lau. Muita gente teve de ser deslocada porque ficou isolada. Então os tempos de seca são mais tranquilos? “Ao contrário”, diz ele. “Amamos o inverno.” Lau explica que o caboclo não tem muita mobília. Desprega os armários, levanta as tábuas do assoalho, se precisar pesca da janela de casa. “Somos homens-anfíbios, quase branquiados”, diz, rindo, o Homem do Fundo do Rio.

Palafitas exibem as marcas da última cheia Foto: Mônica Manir/Estadão

" STYLE="FLOAT: LEFT; MARGIN: 10PX 10PX 10PX 0PX;

Fartura de peixes e frutas e um mix de influências

É uma cozinha sem fronteiras, essa do Amazonas. Além da fartura nativa de peixes e frutas, ela incorporou os cozidos portugueses, o leite de coco nordestino e os legumes e verduras do Sul do País. Só não resolveu a rixa com o Pará, vizinho com quem alimenta animosidades presentes no cardápio. Estava lá, no bufê do Iberostar: purê de castanha-do-amazonas. No dia seguinte, apareceu um purê de castanha-do-brasil, mas não pergunte se aquilo seria de castanha-do-pará. Isso ofende os amazonenses, maiores exportadores da semente até 2013. Perderam o posto para os bolivianos, mas não a majestade. A castanha é deles, e ninguém tasca! Outros reis do menu são o pirarucu, o tucunaré, o matrinxã e o tambaqui, do qual o chef Claudio Procópio, que é de Petrópolis e passa 23 dias embarcado no navio-hotel, extrai as costelas para fazer uma fritura empanada. Ele casa o peixe com farofa de uarani, farinha de mandioca produzida nessa cidade amazonense, mais chips de banana-pacová verde. A pacová ou pacovã ou banana-da-terra tem tamanho amazônico, cerca de 50 centímetros, e é servida sozinha ou como recheio de tapioca e sanduíche.

Coquetel para refrescar Foto: Mônica Manir/Estadão

Repeti o cheesecake com base de chocolate e geleia de cupuaçu. Ok, não é exatamente regional, mas a fusão combinou bem. Descem redondos os sucos de açaí e do próprio cupuaçu. Na visita a um casal ribeirinho, seu Álvaro e dona Lea, encontrei, enfim, uma seleção de produtos da terra. O limão-caiano, a graviola, o noni e o ingá. O noni é fruto para toda obra: dizem que cura de tosse a câncer. O ingá tem sabor que lembra a fruta-do-conde. Nas palavras do seu Álvaro, “ajuda contra dores”. Tudo muito doce. As melancias, que circulam em barcos guiados invariavelmente por flamenguistas a caráter (como dá Flamengo no Amazonas!), estavam tinindo de frutose. A bitela custa R$ 10 no Mercado Central.

Onde ficamos

Bons drinques na piscina Foto: Mônica Manir/Estadão

O Iberostar Grand Hotel-Ship foi batizado nas águas do Amazonas em 2005. Desde então, opera num pique de muitas horas extras. Passa só 20 dias por ano no estaleiro, quando é submetido a uma revisão geral. Nos demais, emenda dois cruzeiros: o de cinco dias, de segunda a sexta, pelo Rio Negro; e o de três dias, de sexta a segunda, pelo Solimões. Quem quiser, pode somar um ao outro e navegar por uma semana. Vende-se como navio-hotel de luxo, mas é mais modesto. Tem 73 cabines de 23 metros quadrados e varandinha, mais duas suítes, com 50 metros e varanda maior. Em algumas cabines, é possível ver certa deterioração do tempo, e não se recomenda deixar roupa no armário fechado por horas seguidas em razão do cheiro de bolor.Mas essa simplicidade, de certa forma, combina com a natureza. O navio tem 16 metros de largura, 86 de comprimento e 2 de calado, mas navega pela vastidão do Solimões sem ostentar, e com delicadeza até. Raramente se sente a bordo a força da correnteza, de cerca de 7 km/h.

No deque, a piscina, a jacuzzi e o sistema all-inclusive, com sanduíches e bebidas nacionais e importadas, quebram a fome e a temperatura alta. No nível de baixo, o Acará, fica a lojinha, com joias etiquetadas em dólar e curiosidades como a escama de pirarucu, usada como lixa. Mais abaixo, no piso Tambaqui, sala de fitness básica e biblioteca simples. No Mandi, show para gringo ver, com danças típicas do País. E no nível da água está o restaurante. Foi onde mais senti o balanço do navio. Na cabine de comando, o comandante Ramide, 70 anos de idade e 9 de Iberostar, aciona eventualmente os holofotes para identificar bancos de areia e/ou troncos flutuantes. Sentada na proa, vento de chofre, alterno a vista a boreste e a bombordo a cada piscada do farol. Mesmo à noite, é possível sentir o Solimões em ebulição.

Bicho solto

1 | 1

Amazônia

Foto: Mônica Manir/Estadão

Serviço Aéreo: ida e volta São Paulo – Manaus, em voo direto, desde R$ 659 na TAM (tam.com.br), R$ 680 na Azul (voeazul.com.br) e R$ 855 na Gol (voegol.com.br); com parada, R$ 552 na TAM, R$ 580 na Azul e R$ 774 na Gol.   Pacotes: o Iberostar oferece três trechos: o de 3 noites pelo Solimões, o de 4, pelo Negro, ou 7 noites combinando os dois rios. Por noite, a cabine dupla custa R$ 750. Para uma pessoa desacompanhada, R$ 975. Os valores incluem alimentação, bebidas e passeios. *A repórter viajou a convite da Iberostar.

Porto de Manaus Foto: Mônica Manir/Estadão

MANAUS - A lancha embica num canto do rio, depois noutro e num terceiro, até o guia apontar o lugar: “Aqui tá bom”. De um tupperware transparente, Lau (o guia) começa a tirar nacos de carne fresca. Cada um de nós apresenta seu anzol, que ele alimenta sem miséria, filé após filé. A água barrenta, que impede de ver o fundo, aumenta a excitação. É uma mistura de querer e não querer. Quem vai atrair a primeira piranha para o barco?

Definitivamente, não é uma pescaria padrão. Em vez do silêncio absoluto, Lau pede que batamos com a vara na água, num chamado que ressoa sabe-se lá de que maneira 10 metros abaixo. De repente, uma fisgada, um puxão, o caniço envergando, puxa para lá, deixa correr, puxa para cá e... voilà! Lá estou eu com uma piranha bigoduda balançando ao léu!

Logo descubro que os bagres abundam na Amazônia, e que o fisgado por mim é um deles, gordo, bonito, oportunista. Achou a carne e entendeu que era para si. Lau tira o glutão do anzol e o devolve ao Solimões. Fico pensando se dali a dois segundos começaria o agito frenético das piranhas em volta do bagre levemente ferido. Nada. Marasmo geral.

Intuitivamente, mudo de lado na lancha. Algo me diz que as piranhas predadoras são de direita. Resgato a arte de pescar do meu avô, que levava a família à Billings nos tempos limpos da represa, e afundo na água a vara abastecida. Espero. Sinto que virá. Sei que virá. E vêm: cinco piranhas seguidas, devidamente dentadas e sem bigodes, uma prateada, duas vermelhas e duas acinzentadas, brilhantes como se revestidas de paetê. Mais gente da lancha vai se desvirginando nessa pesca esportiva, que devolve os peixes ao rio. É gente urbana como eu, que experimenta a Amazônia pela primeira vez e num esquema híbrido, de adrenalina e morosidade na medida.

Somos todos hóspedes do navio-hotel Iberostar, que proporciona, praticamente o ano inteiro, minicruzeiros pelo Solimões e pelo Rio Negro partindo do porto de Manaus. Nosso pacote durou de sexta a segunda-feira e incluiu, além da pesca de piranhas na região de Manaquiri, saídas para observar a flora e a fauna locais, um avanço de lancha por igarapés (cursos estreitos de água) e igapós (floresta inundada), caminhada por uma mata secundária, visita a uma lojinha flutuante e focagem de jacarés durante a noite. São passeios feitos de lancha, em geral pontuais, e sempre opcionais. Se o hóspede preferir, pode ficar o tempo todo no barco num esquema all-inclusive, curtindo os três dias nas piscinas do deque, donde pode apreciar um pôr do sol apoteótico ou a luta serpenteante entre as águas café-macchiato do Solimões e as café-preto do Rio Negro.

“É uma proposta confortável de viver a Amazônia”, resume Lau. Engenheiro florestal, ele se define um generalista. Enquanto outros guias do navio meio que se especializaram – um entende de pássaros da região, outro é o cara do mato –, Lau fala inglês, um pouco de macaquês, assobia para o gavião-panema, localiza formigas frenéticas, fascina jacarés com a lanterna, instiga a curiosidade dos estrangeiros e, em especial, desperta nos brasileiros o sentimento de “se orgulhem, porque isso é de vocês”.

Cipó enrolado nas árvores da mata secundária Foto: Mônica Manir/Estadão

" STYLE="FLOAT: LEFT; MARGIN: 10PX 10PX 10PX 0PX;

Expectativa x realidade. O guia explica que, às vezes, os viajantes criam uma expectativa oceânica diante de um ponto turístico e acabam se decepcionando se o quadro não cabe na moldura. No caso, alguns têm na mente uma ideia de Amazônia com anaconda e selva fechada, quando esses minicruzeiros apontam para um cenário mais “civilizado”, nem por isso menos surpreendente. Flagrar um barco com 15 cabeças de gado, encontrar outro atulhado de tucunarés e pacus, contar as igrejas pentecostais que cada vez pescam mais fiéis na região, observar um cipó engolir a árvore hospedeira, comprar uma pamonha fresquinha numa venda flutuante, fotografar uma moleca pendurada num açaizeiro, tudo é motivo de interesse, diz ele. “Eu sempre me emociono com isso.”

Mas Lau tem noção de que no quadro também cabem personagens mais radicais, como as piranhas e os jacarés. E é atrás dos répteis que nos deslocamos também no sábado, por volta das 21h30, em direção à mesma Manaquiri. Lanterna em riste, nosso guia se equilibra à frente da lancha e vai apontando, num dos igarapés, os muitos pares de olhos vermelhos em fila indiana. Alguns jacarés logo se escondem à mera percepção do motor. Outros ficam estatelados, magnetizados pela luz.

Crianças posam para fotos em uma das paradas Foto: Mônica Manir/Estadão

É um desses, do tipo jacaretinga, de porte menor, que Lau consegue tirar da água e mostrar para a audiência. Tem uns 2 metros e está seguro pelo pescoço e pelo rabo. Passamos a mão pela barriga lisa, pela cauda pré-histórica. Levemente, Lau puxa o papo do bicho, que abre a boca e revela uma cadeia de dentes afiados e nenhum sinal de língua. É a grande revelação da noite: jacaré não tem língua. Quer dizer, tem, mas presa no fundo da arcada.

Logo, o bicho é colocado de volta na água, para não desidratar. Percebo que Lau está tremendo. Não parece envergonhado disso. “A gente precisa ter respeito pelo animal”, diz. “Quando começa a perder o medo, começa a perder os dedos.” É com os dez intactos que esse moço nascido e criado na Amazônia acena para a criançada, que desce das palafitas para saudar os visitantes e bater uma bolinha redonda à margem do Solimões. Simples assim. Mágico assim.

Confira 10 lugares para visitar em Manaus, possível sede da Olimpíada

Juntos, mas sem se misturar

Os mistérios que o Solimões reserva Foto: Mônica Manir/Estadão

“Conta pra mim, Solimões, o que te faz furioso assim.” É Lau, nosso guia, quem evoca a toada do grupo Raízes Caboclas durante o passeio de lancha à margem do rio. Quer ilustrar o cenário de barrancos caídos, árvores penduradas por um fio de raiz, bancos de areia que se formam de repente e, ao longo do tempo, chegam a virar ilhas, tudo consequência da força do rio. Conta Lau que a mãe dele morava na cidade de Tefé. É filha do Solimões, portanto, mas o revoltoso engoliu 100 metros de terra da família – e nunca mais trouxe o patrimônio de volta. “A gente cansou de tentar adivinhar o que o Solimões vai fazer”, diz.

Nascido no Peru, o Solimões vai encorpando por 1.700 quilômetros até chegar a Manaus. Ali, somado ao Negro, forma o Rio Amazonas. Na verdade, um resiste ao outro por mais ou menos 6 quilômetros, se acotovelando num fenômeno bicolor observado até da Estação Espacial Internacional (ISS). Como anuncia o alto-falante do Iberostar no último dia da viagem, com os hóspedes debruçados no convés às 6 da matina, os dois rios não se envolvem de pronto porque o Solimões tem pH 6,8 e temperatura média de 27 graus, enquanto o Negro é mais ácido (tem pH 4,6) e mais quente (35 graus). “Os animais do Solimões não adentram o Rio Negro”, avisa o locutor. “E o que faz aquele boto de um lado para o outro?”, perguntei. Botos são seres evoluídos, alguém comenta. Não fazem diferença de cor, raça, sexo, pH, temperamento ou temperatura. Ah, bom.

No lado escuro, do Rio Negro, fica a maior parte dos hotéis e pousadas da região, porque ali não dá tanto pernilongo. Já do lado barrento moram as muriçocas, mas também a maioria dos peixes – como o pirarucu, que pode ter até 2 metros e pesar 180 quilos. Um ser colossal de água doce, cuja pesca é proibida para forasteiros e feita muitas vezes com arpões, bastões e canoas pela população ribeirinha. Os caboclos, especialmente dos vilarejos remotos, dependem do pirarucu, que chega a custar mais de US$ 200 em postos avançados.

Nos passeios de lancha, também é possível avistar até que altura foi a água na última grande cheia do Solimões, em 2012. Basta ver a madeira mais escura em palafitas acocoradas lá em cima, no morro. “A diferença chegou a 12 metros”, afirma Lau. Muita gente teve de ser deslocada porque ficou isolada. Então os tempos de seca são mais tranquilos? “Ao contrário”, diz ele. “Amamos o inverno.” Lau explica que o caboclo não tem muita mobília. Desprega os armários, levanta as tábuas do assoalho, se precisar pesca da janela de casa. “Somos homens-anfíbios, quase branquiados”, diz, rindo, o Homem do Fundo do Rio.

Palafitas exibem as marcas da última cheia Foto: Mônica Manir/Estadão

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Fartura de peixes e frutas e um mix de influências

É uma cozinha sem fronteiras, essa do Amazonas. Além da fartura nativa de peixes e frutas, ela incorporou os cozidos portugueses, o leite de coco nordestino e os legumes e verduras do Sul do País. Só não resolveu a rixa com o Pará, vizinho com quem alimenta animosidades presentes no cardápio. Estava lá, no bufê do Iberostar: purê de castanha-do-amazonas. No dia seguinte, apareceu um purê de castanha-do-brasil, mas não pergunte se aquilo seria de castanha-do-pará. Isso ofende os amazonenses, maiores exportadores da semente até 2013. Perderam o posto para os bolivianos, mas não a majestade. A castanha é deles, e ninguém tasca! Outros reis do menu são o pirarucu, o tucunaré, o matrinxã e o tambaqui, do qual o chef Claudio Procópio, que é de Petrópolis e passa 23 dias embarcado no navio-hotel, extrai as costelas para fazer uma fritura empanada. Ele casa o peixe com farofa de uarani, farinha de mandioca produzida nessa cidade amazonense, mais chips de banana-pacová verde. A pacová ou pacovã ou banana-da-terra tem tamanho amazônico, cerca de 50 centímetros, e é servida sozinha ou como recheio de tapioca e sanduíche.

Coquetel para refrescar Foto: Mônica Manir/Estadão

Repeti o cheesecake com base de chocolate e geleia de cupuaçu. Ok, não é exatamente regional, mas a fusão combinou bem. Descem redondos os sucos de açaí e do próprio cupuaçu. Na visita a um casal ribeirinho, seu Álvaro e dona Lea, encontrei, enfim, uma seleção de produtos da terra. O limão-caiano, a graviola, o noni e o ingá. O noni é fruto para toda obra: dizem que cura de tosse a câncer. O ingá tem sabor que lembra a fruta-do-conde. Nas palavras do seu Álvaro, “ajuda contra dores”. Tudo muito doce. As melancias, que circulam em barcos guiados invariavelmente por flamenguistas a caráter (como dá Flamengo no Amazonas!), estavam tinindo de frutose. A bitela custa R$ 10 no Mercado Central.

Onde ficamos

Bons drinques na piscina Foto: Mônica Manir/Estadão

O Iberostar Grand Hotel-Ship foi batizado nas águas do Amazonas em 2005. Desde então, opera num pique de muitas horas extras. Passa só 20 dias por ano no estaleiro, quando é submetido a uma revisão geral. Nos demais, emenda dois cruzeiros: o de cinco dias, de segunda a sexta, pelo Rio Negro; e o de três dias, de sexta a segunda, pelo Solimões. Quem quiser, pode somar um ao outro e navegar por uma semana. Vende-se como navio-hotel de luxo, mas é mais modesto. Tem 73 cabines de 23 metros quadrados e varandinha, mais duas suítes, com 50 metros e varanda maior. Em algumas cabines, é possível ver certa deterioração do tempo, e não se recomenda deixar roupa no armário fechado por horas seguidas em razão do cheiro de bolor.Mas essa simplicidade, de certa forma, combina com a natureza. O navio tem 16 metros de largura, 86 de comprimento e 2 de calado, mas navega pela vastidão do Solimões sem ostentar, e com delicadeza até. Raramente se sente a bordo a força da correnteza, de cerca de 7 km/h.

No deque, a piscina, a jacuzzi e o sistema all-inclusive, com sanduíches e bebidas nacionais e importadas, quebram a fome e a temperatura alta. No nível de baixo, o Acará, fica a lojinha, com joias etiquetadas em dólar e curiosidades como a escama de pirarucu, usada como lixa. Mais abaixo, no piso Tambaqui, sala de fitness básica e biblioteca simples. No Mandi, show para gringo ver, com danças típicas do País. E no nível da água está o restaurante. Foi onde mais senti o balanço do navio. Na cabine de comando, o comandante Ramide, 70 anos de idade e 9 de Iberostar, aciona eventualmente os holofotes para identificar bancos de areia e/ou troncos flutuantes. Sentada na proa, vento de chofre, alterno a vista a boreste e a bombordo a cada piscada do farol. Mesmo à noite, é possível sentir o Solimões em ebulição.

Bicho solto

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Amazônia

Foto: Mônica Manir/Estadão

Serviço Aéreo: ida e volta São Paulo – Manaus, em voo direto, desde R$ 659 na TAM (tam.com.br), R$ 680 na Azul (voeazul.com.br) e R$ 855 na Gol (voegol.com.br); com parada, R$ 552 na TAM, R$ 580 na Azul e R$ 774 na Gol.   Pacotes: o Iberostar oferece três trechos: o de 3 noites pelo Solimões, o de 4, pelo Negro, ou 7 noites combinando os dois rios. Por noite, a cabine dupla custa R$ 750. Para uma pessoa desacompanhada, R$ 975. Os valores incluem alimentação, bebidas e passeios. *A repórter viajou a convite da Iberostar.

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