Em janeiro passado, numa tarde fria do inverno alemão (e de um mundo ainda pré-pandemia) recebi a seguinte mensagem pelo WhatsApp: “Vamos fazer Cassino-Chuí de bicicleta pela praia depois do carnaval? Fiz contato com uma agência que organiza isso. Um beijo”. Era o meu pai, parceiro daquela que até então era a minha única viagem de bike: Chuí-Montevidéu, em dezembro de 2018.
Até os 17 anos, eu passei todos os meus verões na Praia do Cassino. Pedalei muito no trecho que vai da Avenida Rio Grande, rua central do balneário, até o Terminal, antigo bar abandonado que se transformou em ponto de encontro na praia. Era ali onde eu e meus amigos de infância e adolescência nos encontrávamos para mergulhar no mar gelado, jogar conversa fora e escutar música nas caixas de som dos carros daqueles que já eram maiores de idade. E aqui é importante esclarecer logo essa peculiaridade do Cassino: é permitida a circulação de carros à beira-mar.
Da Avenida ao Terminal são apenas 3 quilômetros, mas não há como esquecer dos dias de “vento contra”, como costumávamos dizer, quando pedalar era uma tarefa inglória por conta do vento forte que transformava aquela curta distância em um desafio. Às vezes era preciso descer da bike e caminhar, sentindo a areia arranhando as canelas, tamanha era a ventania. Bom mesmo era voltar para casa com o “vento a favor”, quando muitas vezes nem era preciso pedalar.
Com 223 quilômetros, a praia do Cassino já foi considerada a maior praia do mundo pelo Guinness Book em uma decisão bastante polêmica. Ela ocupa o território de dois municípios, Rio Grande e Santa Vitória do Palmar – e em Santa Vitória do Palmar ela ganha outros nomes: Hermenegildo e Barra do Chuí. Mas o fato é que, juntando os três balneários, temos uma enorme faixa de areia ininterrupta, sem acidentes geográficos.
A ideia de percorrê-la já havia me ocorrido, mas, morando na Alemanha desde agosto de 2019, achei que não aconteceria tão cedo. Pois eu estaria visitando os meus pais justamente na data em que haveria uma saída para fazer a travessia de bike. Como essa é uma viagem que depende muito das condições climáticas, e principalmente do vento, não há saídas regulares.
Apesar de termos feito a nossa primeira viagem de bike de forma independente, meu pai e eu sabíamos que nessa era preciso ter o apoio de uma agência: o trecho pela praia é deserto, com nenhuma infraestrutura. Não queríamos correr o risco de ter algum tipo de problema e ficar “ilhados” na maior praia do mundo. E também não nos agradava a ideia de ter que carregar todas as bagagens (barracas, sacos de dormir, comida, gás etc.).
Essa era, então, a oportunidade perfeita para conhecer de verdade a praia em que eu havia crescido, dos molhes da Barra do Cassino aos molhes da Barra do Chuí, já na fronteira com o Uruguai. Conseguimos uma bicicleta e uma barraca emprestadas, reforçamos o estoque de protetor solar, compramos muitos snacks para garantir a energia durante o pedal, arrumamos as malas e, no dia 27 de fevereiro, estávamos prontos para partir.
Eu jamais imaginaria que, apenas duas semanas depois de atravessar a maior praia do mundo de bicicleta, estaria em quarentena, por causa da pandemia do novo coronavírus. Ainda não sei quando verei meus familiares e amigos brasileiros novamente, mas passados tantos meses da instauração desse tão falado “novo normal”, posso dizer que, dentre as pequenas coisas que mais me fazem falta, andar de bicicleta à beira-mar está no topo da lista. Em janeiro de 2021, há saídas programadas para fazer esse mesmo roteiro.
DIA 1: Uma praia redescoberta
O despertador tocou antes das 5h. A previsão do tempo era boa: sol, sem chuvas e calor moderado. O vento, no entanto, parecia um pouco incerto – ora estaria a nosso favor, ora seria um inimigo. Depois de assistir ao sol nascendo atrás dos molhes da Barra do Cassino e acomodar as nossas bagagens no carro de apoio da Dunes, a agência que organiza a expedição, partimos rumo aos molhes da Barra do Chuí, a mais ou menos 223 km dali. A distância é aproximada: varia de acordo com a maré.
Nossas companheiras de viagem eram quatro mulheres da mesma família. Fizemos a nossa primeira parada no Altair, navio que foi pego por uma tempestade no inverno de 1976 e encalhou a 12 km do centro do balneário. Dali em diante, as paradas seriam a cada 10 km, para abastecer as garrafinhas d’água, fazer um lanche, conversar sobre o percurso. Pedalávamos separadamente, cada um no seu ritmo. Depois do navio Altair, vimos as ruínas de um hotel à beira-mar, que funcionou até a inauguração da rodovia que liga o Cassino ao Chuí, quando foi abandonado.
Nesse trecho os carros começam a rarear e a fauna torna-se mais exuberante: desfilam aves residentes, como o gaivotão e a gaivota-maria-velha, e aves migratórias do Hemisfério Norte, como o batuiruçu e o maçarico-branco. Foi ali também que vimos a primeira tartaruga-cabeçuda morta. Encontraríamos mais de uma dezena delas ao longo do caminho – parte por causa do lixo depositado no mar e parte por causa das redes de pesca.
Pouco depois dos 40 km percorridos, paramos para o almoço: sanduíches, ovos cozidos, frutas e paçoca. A travessia da Praia do Cassino também é conhecida como travessia dos faróis: são quatro no percurso. No fim da tarde, passamos pela Farol Sarita, o primeiro deles. Ao atingir o quilômetro 75, tivemos a melhor surpresa. Zé, nosso guia, encontrou um amigo pescando na praia e parou para conversar. E ele nos convidou para pernoitar na sua casa.
Antônio e Jane Gonçalves, de 67 e 61 anos, eram donos de um restaurante em Jurerê Internacional quando se apaixonaram por esse trecho do litoral gaúcho. Há 15 anos, começaram a construir a casa na qual hoje vivem metade do tempo – a outra passam em um apartamento no centro do Cassino.
Na travessia, os pernoites são em acampamentos à beira-mar e o banho é improvisado com água dos riachos de água doce que cortam a praia. Na nossa primeira noite, no entanto, montamos as barracas no quintal de Dona Jane e Seu Antônio, tomamos banho quente e jantamos papa-terras recém-pescados por Seu Antônio. "Adoramos ficar sozinhos, mas também é muito bom quando chega companhia", disse Dona Jane. Antes das 22h, já estávamos recolhidos em nossas barracas.
DIA 2: Uma noite sem banho
Apesar do cansaço do dia anterior, não dormi bem. Algum animal cismou de cavar um buraco bem ao lado da minha barraca, interrompendo o meu sono na madrugada. Mas o sol não espera, e às 6h já estávamos de pé. Tomamos café da manhã, jogamos mais um pouco de conversa fora com Dona Jane e Seu Antônio e partimos pouco depois das 8h.
Zé explicou que pedalaríamos cerca de 90 quilômetros, deixando uma quilometragem menor para a terceira e última etapa, quando estaríamos mais cansados. O vento estava neutro, batendo na lateral. Logo na saída, encontramos um lobo-marinho no meio da praia. Muitos animais se dispersam de suas colônias no Uruguai e na Argentina e param ali para descansar.
Ainda antes do almoço, passamos pelo segundo farol da travessia, o Verga. Não é possível subir nele, mas ao seu lado há uma duna da qual se tem uma bela visão do mar e da imensidão de areia. Neste trecho já pedalávamos em uma estreita faixa de terra entre o Oceano Atlântico e a Lagoa Mangueira, que tem 123 km de extensão e é formada apenas pela água das chuvas e dos lençóis freáticos, sem conexão com rios ou com o mar. Não se enxerga a lagoa da praia, mas ela pode ser avistada do topo do Farol do Albardão, o terceiro da travessia. Já no território de Santa Vitória do Palmar, o Albardão é o mais alto e isolado entre os faróis da costa gaúcha. Com 44 metros de concreto, ele ajuda a guiar os navegantes no mar aberto e também os exploradores dessa imensa planície litorânea.Nesse ponto, já havíamos pedalado 60 km e estávamos bem cansados. Partimos para os últimos 32 km com um sol que ia caindo de forma deslumbrante. O vento, que tinha ficado um pouco inconstante ao longo do dia, também passou a nos ajudar – ficamos otimistas. Mas eis que o temido “concheiro” chegou. Eu já tinha ouvido falar dele, mas não sabia bem do que se tratava. É um pedaço onde há uma grande concentração de conchas. Ficou muito difícil pedalar. De uma areia firme, passamos a nos deslocar sobre uma superfície macia e irregular – e a bike mais derrapava do que andava.
Estávamos determinados a continuar, mas o sol começou a se despedir e a escuridão chegaria em breve. Sete quilômetros antes do ponto em que acamparíamos, decidi subir no carro de apoio. Meu pai, no entanto, não desistiu e apareceu no acampamento com noite fechada, quando eu já terminava de montar a nossa barraca.
Ficamos sem banho. O jeito foi improvisar com lenços umedecidos e um único balde de água doce que tínhamos: molhamos uma toalha no balde e passamos no corpo. Jantamos sob as estrelas, observando a lua crescente. Uma serenata de sapos e pererecas animou o nosso segundo pernoite.
DIA 3: Uma viagem para dentro
Antes das 8h já estávamos com as bikes na areia. Este seria o pedal mais curto: 56 km. O concheiro, no entanto, ainda poderia se estender por mais uns 30 km. Como essa é uma característica da praia que depende das correntes marítimas, não há como saber qual será a sua extensão.
Começamos confiantes, mas logo percebemos que não seria fácil. Não havia sinal do fim do concheiro. Já nos primeiros quilômetros, tivemos de parar para empurrar a bike. E justamente nesse trecho meu pai e eu cometemos o nosso maior equívoco. Como nossas companheiras de travessia haviam saído mais cedo, sabíamos que elas completariam os primeiros dez quilômetros antes da nossa chegada e dissemos ao Zé que ele poderia nos esperar com o carro de apoio no quilômetro 20.
Erramos. Foi um trecho muito difícil de pedalar, o sol estava forte – era o dia mais quente até então –, a praia completamente deserta e o pior aconteceu: nossa água acabou. Alternamos pedalada e caminhada por quase três horas. A ausência de pessoas e carros tornou-se quase desesperadora. Deu medo.
Decidi deixar meu pai ir na frente, pedi só que ele voltasse assim que encontrasse o carro de apoio, pois eu não sabia se conseguiria. E segui caminhando. Até que avistei a caminhonete e a nossa equipe. Alívio. Naquele ponto, resolvi entrar na caminhonete, decisão também tomada por nossas companheiras de aventura. Meu pai, determinado a pedalar (ou empurrar a bicicleta) os 223 km, continuou sozinho.
Nosso encontro seguinte foi 10 km depois: ele comeu uma barra de cereal e partiu para mais oito quilômetros até o balneário Hermenegildo, onde voltaríamos a encontrar a “civilização”. Antes de partir de carro, nós ainda conferimos um varal de mensagens emocionadas deixadas pelos peregrinos que fazem a travessia, muitos deles a pé.
Finalmente chegamos ao rústico "Hermena", após 211 km percorridos. O dia estava estupendo, o céu azul. Quando meu pai, o único não desistente do grupo, chegou, mandamos um "a la minuta" (assim chamamos o PF no Rio Grande do Sul) para repor as energias e enfrentar o último trecho da nossa jornada, agora novamente sobre a bike: 12 km até Barra do Chuí. Esse pedaço da praia já é mais povoado, cheio de turistas, pescadores e até vacas – encontramos um grupo delas pelo caminho. Também foi bastante fácil: o concheiro definitivamente havia ficado para trás.
Quando já estávamos bem próximos dos molhes da Barra do Chuí, fomos recebido com palmas por um grupo de umas 30 pessoas. Meu pai não entendeu muito bem do que se tratava, mas eu logo saquei que os aplausos eram para a gente mesmo. Depois soubemos que Zé havia avisado sobre a chegada de um grupo de ciclistas do Cassino. Foi emocionante. Na chegada, encontramos o último farol da nossa travessia. Havíamos conseguido. Zé nos recebeu com cerveja para brindar aos três dias que passamos juntos desbravando a maior praia do mundo.
Uma vez uma amiga me disse que "viajar de bike é viajar para dentro". Acho que não há frase que resuma melhor essa experiência. Foram 196 km pedalados – mais os 27 percorridos no carro de apoio – ouvindo o barulho do mar, admirando a imensidão da praia, imersa em meus próprios pensamentos e lidando sozinha com as minhas angústias nos momentos difíceis. Uma jornada de contato com a natureza, autoconhecimento e paz.
ANTES DE IR
Quem leva
A próxima saída com a Dunas Off Road está marcada para 7 de janeiro. Preços a partir de R$ 880 por pessoa. Na bagagem
Embora o carro de apoio leve as bagagens, o material é por sua conta.Para o acampamento: barraca, saco de dormir, isolante térmicoRoupas: bermudas, camisetas, top (para as mulheres), papete (melhor do que tênis, pois deixa os pés mais ventilados), roupas quentes para a noite, viseira ou bonéAcessórios: óculos escuros, pochete para guardar o celular junto ao corpo, protetor solar, snacks para comer entre as refeições