Evita, presidentes e fantasmas no turístico Cemitério da Recoleta


Criado para abrigar mortos ricos e ilustres, espaço está no roteiro básico de quem visita Buenos Aires

Por Ariel Palacios

Intrigas políticas, personalidades, muita ostentação e - não poderia ser diferente - algumas histórias de fantasma. Os cemitérios de Buenos Aires são pródigos em tudo isso e muito mais: basta uma breve caminhada para notar que escondem verdadeiras obras de arte. Com tal soma de atrativos, é impossível ignorar que hoje eles fazem parte do roteiro básico de quem visita a capital portenha. Veja também: Na catedral, um 'puxadinho' para San Martín No quesito apelo turístico, o Cemitério da Recoleta é imbatível. Lá está o túmulo de Eva Duarte Perón (1919-1952), alvo constante de peregrinação. Mas não é só. Considerado o Père Lachaise portenho, já que ali, como no cemitério parisiense, estão enterradas as principais figuras do país, o Recoleta exibe uma incrível lista de ilustres. Em seus quarteirões estão heróis da Independência, presidentes, intelectuais e cientistas - seria como se um só cemitério brasileiro reunisse as tumbas de d. Pedro I (que está enterrado em São Paulo), Juscelino Kubitschek (em Brasília) e Machado de Assis (no Rio). Criado em 1822 para ser a última morada da aristocracia, o Recoleta logo passou a cenário de uma disputa por status. As famílias abastadas queriam exibir riqueza e poder com seus túmulos, e mandavam erigir obras vultosas - são 70 mausoléus e 6 mil sepulcros. Nos fins de semana, faziam piqueniques ali, para ficar perto de seus antepassados e deixar clara sua posição social. Nessa ''cidade em miniatura com um quê de labirinto'', como muitos descrevem o cemitério, o túmulo mais famoso é mesmo o de Evita, segunda mulher do general Juan Domingo Perón (1895-1974), que governou o país entre 1946 e 1955. Viva, a mãe dos descamisados já conseguia mobilizar as massas a favor do marido. Mas a morte de câncer, pública e prematura, aos 33 anos, transformou a ex-atriz em mito. Perón ordenou que o corpo fosse embalsamado e exposto na sede da maior central sindical, onde ficou até o general ser derrubado, em 1955. Assim que Perón partiu para o exílio, seus opositores levaram o corpo de Evita para a Itália, onde foi enterrado com nome falso. Perón só voltou a ver a amada em 1973, quando estava prestes a voltar do exílio e conseguiu que seus opositores devolvessem o corpo. Um ano depois, Perón morreu. Durante dois anos eles ficaram juntos na residência oficial de Olivos. ''TROCA DE ENERGIA'' Nesse período, o país foi governado pela terceira esposa de Perón, María Estela Martínez de Perón, a Isabelita. Sempre invejando o carisma da antecessora, ela deitava sobre o caixão de Evita para tentar captar seus ''fluidos energéticos'' - idéia do braço direito de Isabelita, o ministro José López Rega, conhecido como El Brujo (O Bruxo). O golpe militar de 1976 interrompeu essas investidas esotéricas. Perón foi levado para o Cemitério de La Chacarita, enquanto Evita acabou sendo sepultada na Recoleta, onde suas irmãs haviam comprado um túmulo para a família. Enterrada definitivamente em pleno regime militar anti-peronista, Evita ganhou um túmulo simples, rodeado pelos mausoléus das famílias aristocratas que tanto detestavam a chamada mãe dos descamisados. Em mais uma ironia do destino, Evita descansa a 100 metros do túmulo do general Pedro Eugenio Aramburu (1903-1970), autor do plano para esconder seu corpo e um dos principais inimigos de seu marido. Aramburu, por sua vez, foi vítima do próprio veneno: em 1971, seu corpo foi seqüestrado por integrantes da guerrilha peronista. Os parentes conseguiram recuperar o cadáver e resolveram construir um mausoléu à prova de novas profanações. O general repousa sob toneladas de cimento, atrás do elegante túmulo do presidente Carlos Pellegrini (1846-1906), que governou a Argentina no fim do século 19. Presidente na época em que Buenos Aires era a Paris da América do Sul, Manuel Quintana (1835-1906) é outro ilustre da Recoleta. Considerado um mais elegantes líderes do país, foi retratado vestido a rigor. ÓDIO ETERNO A poucos metros dali está o peculiar mausoléu de um casal que se detestava: o primeiro vice-presidente constitucional da Argentina, Salvador del Carril, e sua mulher, Tibúrcia. Del Carril não só se recusou a pagar as dívidas dela como publicou um anúncio nos jornais da época com esse teor. O resultado? Tibúrcia nunca mais falou com o marido. Há um século, os dois descansam no mesmo lugar - mas cada um vê a eternidade de um ângulo diferente. Sentado numa cadeira, ele olha para um lado. Tibúrcia, de costas para ele, tem o rosto virado para a direção oposta. FINO TRATO A elegância predomina nos túmulos da Recoleta. Isso pode ser visto no mausoléu Leloir - da família do Nobel de Química Federico Leloir (1906-1987). A estrutura tem enormes colunas que sustentam uma cúpula verde decorada com mosaico. Ali bem perto estão as estátuas de anjos que decoram o túmulo da família Indart. Ainda na vizinhança fica o túmulo de Pierre Benoit, um cultíssimo e misterioso francês que chegou a Buenos Aires no início do século 19. Alguns dizem que ele era, na verdade, o herdeiro de Luís XVI - a história oficial, no entanto, conta que o delfim faleceu em Paris, durante a Revolução Francesa. Benoit, que morreu em 1833, foi um arquiteto importante na Argentina e teve um filho, hoje sepultado no mesmo local. UM LUGAR PARA BORGES Em vários poemas, Jorge Luis Borges (1899-1986) falou de sua vontade de descansar na Recoleta, tal como seus antepassados. Em 1986, seu último ano de vida, ele mudou de idéia. Decidiu ser enterrado em Genebra, na Suíça, onde estava morando. Atualmente, vários intelectuais argentinos pedem que seu corpo seja repatriado. E colocado no mausoléu da família de seu avô, o coronel Isidoro Suárez, imortalizado nos poemas e nos relatos de Borges. ALMA PENADA A Recoleta também tem suas histórias de fantasmas. A mais famosa é protagonizada por Rufina Cambaceres, filha de uma família aristocrática, que morreu no dia em que completaria 19 anos, em 1903. Por causa da grande dor de seus pais, a jovem foi enterrada às pressas. Dias depois, por causa de um estranho deslocamento de terra, os funcionários do cemitério resolveram abrir o caixão da garota. Para a surpresa deles, o corpo estava fora da posição original e, na parte interna do caixão, podiam ser vistas várias marcas de unha. Rufina, acreditam, não havia morrido, e sim entrado em estado cataléptico. Foi enterrada viva e tentou, desesperadamente, escapar do túmulo. Dizem que hoje sua alma vaga no cemitério durante a noite, na forma de uma dama de branco. Um dos túmulos mais tristes da Recoleta - é relativamente novo, de 1970 - abriga os restos de Ana Crociatti, uma jovem que morreu em plena lua-de-mel, no meio de uma avalanche. Seus pais mandaram fazer uma estátua representando a moça ao lado do cachorro que tanto amava, Sabu. Uma placa de bronze testemunha a imensa tristeza dos parentes da jovem, que ali perguntam, em italiano, ''perché, perché...?'' (por que, por quê?).

Intrigas políticas, personalidades, muita ostentação e - não poderia ser diferente - algumas histórias de fantasma. Os cemitérios de Buenos Aires são pródigos em tudo isso e muito mais: basta uma breve caminhada para notar que escondem verdadeiras obras de arte. Com tal soma de atrativos, é impossível ignorar que hoje eles fazem parte do roteiro básico de quem visita a capital portenha. Veja também: Na catedral, um 'puxadinho' para San Martín No quesito apelo turístico, o Cemitério da Recoleta é imbatível. Lá está o túmulo de Eva Duarte Perón (1919-1952), alvo constante de peregrinação. Mas não é só. Considerado o Père Lachaise portenho, já que ali, como no cemitério parisiense, estão enterradas as principais figuras do país, o Recoleta exibe uma incrível lista de ilustres. Em seus quarteirões estão heróis da Independência, presidentes, intelectuais e cientistas - seria como se um só cemitério brasileiro reunisse as tumbas de d. Pedro I (que está enterrado em São Paulo), Juscelino Kubitschek (em Brasília) e Machado de Assis (no Rio). Criado em 1822 para ser a última morada da aristocracia, o Recoleta logo passou a cenário de uma disputa por status. As famílias abastadas queriam exibir riqueza e poder com seus túmulos, e mandavam erigir obras vultosas - são 70 mausoléus e 6 mil sepulcros. Nos fins de semana, faziam piqueniques ali, para ficar perto de seus antepassados e deixar clara sua posição social. Nessa ''cidade em miniatura com um quê de labirinto'', como muitos descrevem o cemitério, o túmulo mais famoso é mesmo o de Evita, segunda mulher do general Juan Domingo Perón (1895-1974), que governou o país entre 1946 e 1955. Viva, a mãe dos descamisados já conseguia mobilizar as massas a favor do marido. Mas a morte de câncer, pública e prematura, aos 33 anos, transformou a ex-atriz em mito. Perón ordenou que o corpo fosse embalsamado e exposto na sede da maior central sindical, onde ficou até o general ser derrubado, em 1955. Assim que Perón partiu para o exílio, seus opositores levaram o corpo de Evita para a Itália, onde foi enterrado com nome falso. Perón só voltou a ver a amada em 1973, quando estava prestes a voltar do exílio e conseguiu que seus opositores devolvessem o corpo. Um ano depois, Perón morreu. Durante dois anos eles ficaram juntos na residência oficial de Olivos. ''TROCA DE ENERGIA'' Nesse período, o país foi governado pela terceira esposa de Perón, María Estela Martínez de Perón, a Isabelita. Sempre invejando o carisma da antecessora, ela deitava sobre o caixão de Evita para tentar captar seus ''fluidos energéticos'' - idéia do braço direito de Isabelita, o ministro José López Rega, conhecido como El Brujo (O Bruxo). O golpe militar de 1976 interrompeu essas investidas esotéricas. Perón foi levado para o Cemitério de La Chacarita, enquanto Evita acabou sendo sepultada na Recoleta, onde suas irmãs haviam comprado um túmulo para a família. Enterrada definitivamente em pleno regime militar anti-peronista, Evita ganhou um túmulo simples, rodeado pelos mausoléus das famílias aristocratas que tanto detestavam a chamada mãe dos descamisados. Em mais uma ironia do destino, Evita descansa a 100 metros do túmulo do general Pedro Eugenio Aramburu (1903-1970), autor do plano para esconder seu corpo e um dos principais inimigos de seu marido. Aramburu, por sua vez, foi vítima do próprio veneno: em 1971, seu corpo foi seqüestrado por integrantes da guerrilha peronista. Os parentes conseguiram recuperar o cadáver e resolveram construir um mausoléu à prova de novas profanações. O general repousa sob toneladas de cimento, atrás do elegante túmulo do presidente Carlos Pellegrini (1846-1906), que governou a Argentina no fim do século 19. Presidente na época em que Buenos Aires era a Paris da América do Sul, Manuel Quintana (1835-1906) é outro ilustre da Recoleta. Considerado um mais elegantes líderes do país, foi retratado vestido a rigor. ÓDIO ETERNO A poucos metros dali está o peculiar mausoléu de um casal que se detestava: o primeiro vice-presidente constitucional da Argentina, Salvador del Carril, e sua mulher, Tibúrcia. Del Carril não só se recusou a pagar as dívidas dela como publicou um anúncio nos jornais da época com esse teor. O resultado? Tibúrcia nunca mais falou com o marido. Há um século, os dois descansam no mesmo lugar - mas cada um vê a eternidade de um ângulo diferente. Sentado numa cadeira, ele olha para um lado. Tibúrcia, de costas para ele, tem o rosto virado para a direção oposta. FINO TRATO A elegância predomina nos túmulos da Recoleta. Isso pode ser visto no mausoléu Leloir - da família do Nobel de Química Federico Leloir (1906-1987). A estrutura tem enormes colunas que sustentam uma cúpula verde decorada com mosaico. Ali bem perto estão as estátuas de anjos que decoram o túmulo da família Indart. Ainda na vizinhança fica o túmulo de Pierre Benoit, um cultíssimo e misterioso francês que chegou a Buenos Aires no início do século 19. Alguns dizem que ele era, na verdade, o herdeiro de Luís XVI - a história oficial, no entanto, conta que o delfim faleceu em Paris, durante a Revolução Francesa. Benoit, que morreu em 1833, foi um arquiteto importante na Argentina e teve um filho, hoje sepultado no mesmo local. UM LUGAR PARA BORGES Em vários poemas, Jorge Luis Borges (1899-1986) falou de sua vontade de descansar na Recoleta, tal como seus antepassados. Em 1986, seu último ano de vida, ele mudou de idéia. Decidiu ser enterrado em Genebra, na Suíça, onde estava morando. Atualmente, vários intelectuais argentinos pedem que seu corpo seja repatriado. E colocado no mausoléu da família de seu avô, o coronel Isidoro Suárez, imortalizado nos poemas e nos relatos de Borges. ALMA PENADA A Recoleta também tem suas histórias de fantasmas. A mais famosa é protagonizada por Rufina Cambaceres, filha de uma família aristocrática, que morreu no dia em que completaria 19 anos, em 1903. Por causa da grande dor de seus pais, a jovem foi enterrada às pressas. Dias depois, por causa de um estranho deslocamento de terra, os funcionários do cemitério resolveram abrir o caixão da garota. Para a surpresa deles, o corpo estava fora da posição original e, na parte interna do caixão, podiam ser vistas várias marcas de unha. Rufina, acreditam, não havia morrido, e sim entrado em estado cataléptico. Foi enterrada viva e tentou, desesperadamente, escapar do túmulo. Dizem que hoje sua alma vaga no cemitério durante a noite, na forma de uma dama de branco. Um dos túmulos mais tristes da Recoleta - é relativamente novo, de 1970 - abriga os restos de Ana Crociatti, uma jovem que morreu em plena lua-de-mel, no meio de uma avalanche. Seus pais mandaram fazer uma estátua representando a moça ao lado do cachorro que tanto amava, Sabu. Uma placa de bronze testemunha a imensa tristeza dos parentes da jovem, que ali perguntam, em italiano, ''perché, perché...?'' (por que, por quê?).

Intrigas políticas, personalidades, muita ostentação e - não poderia ser diferente - algumas histórias de fantasma. Os cemitérios de Buenos Aires são pródigos em tudo isso e muito mais: basta uma breve caminhada para notar que escondem verdadeiras obras de arte. Com tal soma de atrativos, é impossível ignorar que hoje eles fazem parte do roteiro básico de quem visita a capital portenha. Veja também: Na catedral, um 'puxadinho' para San Martín No quesito apelo turístico, o Cemitério da Recoleta é imbatível. Lá está o túmulo de Eva Duarte Perón (1919-1952), alvo constante de peregrinação. Mas não é só. Considerado o Père Lachaise portenho, já que ali, como no cemitério parisiense, estão enterradas as principais figuras do país, o Recoleta exibe uma incrível lista de ilustres. Em seus quarteirões estão heróis da Independência, presidentes, intelectuais e cientistas - seria como se um só cemitério brasileiro reunisse as tumbas de d. Pedro I (que está enterrado em São Paulo), Juscelino Kubitschek (em Brasília) e Machado de Assis (no Rio). Criado em 1822 para ser a última morada da aristocracia, o Recoleta logo passou a cenário de uma disputa por status. As famílias abastadas queriam exibir riqueza e poder com seus túmulos, e mandavam erigir obras vultosas - são 70 mausoléus e 6 mil sepulcros. Nos fins de semana, faziam piqueniques ali, para ficar perto de seus antepassados e deixar clara sua posição social. Nessa ''cidade em miniatura com um quê de labirinto'', como muitos descrevem o cemitério, o túmulo mais famoso é mesmo o de Evita, segunda mulher do general Juan Domingo Perón (1895-1974), que governou o país entre 1946 e 1955. Viva, a mãe dos descamisados já conseguia mobilizar as massas a favor do marido. Mas a morte de câncer, pública e prematura, aos 33 anos, transformou a ex-atriz em mito. Perón ordenou que o corpo fosse embalsamado e exposto na sede da maior central sindical, onde ficou até o general ser derrubado, em 1955. Assim que Perón partiu para o exílio, seus opositores levaram o corpo de Evita para a Itália, onde foi enterrado com nome falso. Perón só voltou a ver a amada em 1973, quando estava prestes a voltar do exílio e conseguiu que seus opositores devolvessem o corpo. Um ano depois, Perón morreu. Durante dois anos eles ficaram juntos na residência oficial de Olivos. ''TROCA DE ENERGIA'' Nesse período, o país foi governado pela terceira esposa de Perón, María Estela Martínez de Perón, a Isabelita. Sempre invejando o carisma da antecessora, ela deitava sobre o caixão de Evita para tentar captar seus ''fluidos energéticos'' - idéia do braço direito de Isabelita, o ministro José López Rega, conhecido como El Brujo (O Bruxo). O golpe militar de 1976 interrompeu essas investidas esotéricas. Perón foi levado para o Cemitério de La Chacarita, enquanto Evita acabou sendo sepultada na Recoleta, onde suas irmãs haviam comprado um túmulo para a família. Enterrada definitivamente em pleno regime militar anti-peronista, Evita ganhou um túmulo simples, rodeado pelos mausoléus das famílias aristocratas que tanto detestavam a chamada mãe dos descamisados. Em mais uma ironia do destino, Evita descansa a 100 metros do túmulo do general Pedro Eugenio Aramburu (1903-1970), autor do plano para esconder seu corpo e um dos principais inimigos de seu marido. Aramburu, por sua vez, foi vítima do próprio veneno: em 1971, seu corpo foi seqüestrado por integrantes da guerrilha peronista. Os parentes conseguiram recuperar o cadáver e resolveram construir um mausoléu à prova de novas profanações. O general repousa sob toneladas de cimento, atrás do elegante túmulo do presidente Carlos Pellegrini (1846-1906), que governou a Argentina no fim do século 19. Presidente na época em que Buenos Aires era a Paris da América do Sul, Manuel Quintana (1835-1906) é outro ilustre da Recoleta. Considerado um mais elegantes líderes do país, foi retratado vestido a rigor. ÓDIO ETERNO A poucos metros dali está o peculiar mausoléu de um casal que se detestava: o primeiro vice-presidente constitucional da Argentina, Salvador del Carril, e sua mulher, Tibúrcia. Del Carril não só se recusou a pagar as dívidas dela como publicou um anúncio nos jornais da época com esse teor. O resultado? Tibúrcia nunca mais falou com o marido. Há um século, os dois descansam no mesmo lugar - mas cada um vê a eternidade de um ângulo diferente. Sentado numa cadeira, ele olha para um lado. Tibúrcia, de costas para ele, tem o rosto virado para a direção oposta. FINO TRATO A elegância predomina nos túmulos da Recoleta. Isso pode ser visto no mausoléu Leloir - da família do Nobel de Química Federico Leloir (1906-1987). A estrutura tem enormes colunas que sustentam uma cúpula verde decorada com mosaico. Ali bem perto estão as estátuas de anjos que decoram o túmulo da família Indart. Ainda na vizinhança fica o túmulo de Pierre Benoit, um cultíssimo e misterioso francês que chegou a Buenos Aires no início do século 19. Alguns dizem que ele era, na verdade, o herdeiro de Luís XVI - a história oficial, no entanto, conta que o delfim faleceu em Paris, durante a Revolução Francesa. Benoit, que morreu em 1833, foi um arquiteto importante na Argentina e teve um filho, hoje sepultado no mesmo local. UM LUGAR PARA BORGES Em vários poemas, Jorge Luis Borges (1899-1986) falou de sua vontade de descansar na Recoleta, tal como seus antepassados. Em 1986, seu último ano de vida, ele mudou de idéia. Decidiu ser enterrado em Genebra, na Suíça, onde estava morando. Atualmente, vários intelectuais argentinos pedem que seu corpo seja repatriado. E colocado no mausoléu da família de seu avô, o coronel Isidoro Suárez, imortalizado nos poemas e nos relatos de Borges. ALMA PENADA A Recoleta também tem suas histórias de fantasmas. A mais famosa é protagonizada por Rufina Cambaceres, filha de uma família aristocrática, que morreu no dia em que completaria 19 anos, em 1903. Por causa da grande dor de seus pais, a jovem foi enterrada às pressas. Dias depois, por causa de um estranho deslocamento de terra, os funcionários do cemitério resolveram abrir o caixão da garota. Para a surpresa deles, o corpo estava fora da posição original e, na parte interna do caixão, podiam ser vistas várias marcas de unha. Rufina, acreditam, não havia morrido, e sim entrado em estado cataléptico. Foi enterrada viva e tentou, desesperadamente, escapar do túmulo. Dizem que hoje sua alma vaga no cemitério durante a noite, na forma de uma dama de branco. Um dos túmulos mais tristes da Recoleta - é relativamente novo, de 1970 - abriga os restos de Ana Crociatti, uma jovem que morreu em plena lua-de-mel, no meio de uma avalanche. Seus pais mandaram fazer uma estátua representando a moça ao lado do cachorro que tanto amava, Sabu. Uma placa de bronze testemunha a imensa tristeza dos parentes da jovem, que ali perguntam, em italiano, ''perché, perché...?'' (por que, por quê?).

Intrigas políticas, personalidades, muita ostentação e - não poderia ser diferente - algumas histórias de fantasma. Os cemitérios de Buenos Aires são pródigos em tudo isso e muito mais: basta uma breve caminhada para notar que escondem verdadeiras obras de arte. Com tal soma de atrativos, é impossível ignorar que hoje eles fazem parte do roteiro básico de quem visita a capital portenha. Veja também: Na catedral, um 'puxadinho' para San Martín No quesito apelo turístico, o Cemitério da Recoleta é imbatível. Lá está o túmulo de Eva Duarte Perón (1919-1952), alvo constante de peregrinação. Mas não é só. Considerado o Père Lachaise portenho, já que ali, como no cemitério parisiense, estão enterradas as principais figuras do país, o Recoleta exibe uma incrível lista de ilustres. Em seus quarteirões estão heróis da Independência, presidentes, intelectuais e cientistas - seria como se um só cemitério brasileiro reunisse as tumbas de d. Pedro I (que está enterrado em São Paulo), Juscelino Kubitschek (em Brasília) e Machado de Assis (no Rio). Criado em 1822 para ser a última morada da aristocracia, o Recoleta logo passou a cenário de uma disputa por status. As famílias abastadas queriam exibir riqueza e poder com seus túmulos, e mandavam erigir obras vultosas - são 70 mausoléus e 6 mil sepulcros. Nos fins de semana, faziam piqueniques ali, para ficar perto de seus antepassados e deixar clara sua posição social. Nessa ''cidade em miniatura com um quê de labirinto'', como muitos descrevem o cemitério, o túmulo mais famoso é mesmo o de Evita, segunda mulher do general Juan Domingo Perón (1895-1974), que governou o país entre 1946 e 1955. Viva, a mãe dos descamisados já conseguia mobilizar as massas a favor do marido. Mas a morte de câncer, pública e prematura, aos 33 anos, transformou a ex-atriz em mito. Perón ordenou que o corpo fosse embalsamado e exposto na sede da maior central sindical, onde ficou até o general ser derrubado, em 1955. Assim que Perón partiu para o exílio, seus opositores levaram o corpo de Evita para a Itália, onde foi enterrado com nome falso. Perón só voltou a ver a amada em 1973, quando estava prestes a voltar do exílio e conseguiu que seus opositores devolvessem o corpo. Um ano depois, Perón morreu. Durante dois anos eles ficaram juntos na residência oficial de Olivos. ''TROCA DE ENERGIA'' Nesse período, o país foi governado pela terceira esposa de Perón, María Estela Martínez de Perón, a Isabelita. Sempre invejando o carisma da antecessora, ela deitava sobre o caixão de Evita para tentar captar seus ''fluidos energéticos'' - idéia do braço direito de Isabelita, o ministro José López Rega, conhecido como El Brujo (O Bruxo). O golpe militar de 1976 interrompeu essas investidas esotéricas. Perón foi levado para o Cemitério de La Chacarita, enquanto Evita acabou sendo sepultada na Recoleta, onde suas irmãs haviam comprado um túmulo para a família. Enterrada definitivamente em pleno regime militar anti-peronista, Evita ganhou um túmulo simples, rodeado pelos mausoléus das famílias aristocratas que tanto detestavam a chamada mãe dos descamisados. Em mais uma ironia do destino, Evita descansa a 100 metros do túmulo do general Pedro Eugenio Aramburu (1903-1970), autor do plano para esconder seu corpo e um dos principais inimigos de seu marido. Aramburu, por sua vez, foi vítima do próprio veneno: em 1971, seu corpo foi seqüestrado por integrantes da guerrilha peronista. Os parentes conseguiram recuperar o cadáver e resolveram construir um mausoléu à prova de novas profanações. O general repousa sob toneladas de cimento, atrás do elegante túmulo do presidente Carlos Pellegrini (1846-1906), que governou a Argentina no fim do século 19. Presidente na época em que Buenos Aires era a Paris da América do Sul, Manuel Quintana (1835-1906) é outro ilustre da Recoleta. Considerado um mais elegantes líderes do país, foi retratado vestido a rigor. ÓDIO ETERNO A poucos metros dali está o peculiar mausoléu de um casal que se detestava: o primeiro vice-presidente constitucional da Argentina, Salvador del Carril, e sua mulher, Tibúrcia. Del Carril não só se recusou a pagar as dívidas dela como publicou um anúncio nos jornais da época com esse teor. O resultado? Tibúrcia nunca mais falou com o marido. Há um século, os dois descansam no mesmo lugar - mas cada um vê a eternidade de um ângulo diferente. Sentado numa cadeira, ele olha para um lado. Tibúrcia, de costas para ele, tem o rosto virado para a direção oposta. FINO TRATO A elegância predomina nos túmulos da Recoleta. Isso pode ser visto no mausoléu Leloir - da família do Nobel de Química Federico Leloir (1906-1987). A estrutura tem enormes colunas que sustentam uma cúpula verde decorada com mosaico. Ali bem perto estão as estátuas de anjos que decoram o túmulo da família Indart. Ainda na vizinhança fica o túmulo de Pierre Benoit, um cultíssimo e misterioso francês que chegou a Buenos Aires no início do século 19. Alguns dizem que ele era, na verdade, o herdeiro de Luís XVI - a história oficial, no entanto, conta que o delfim faleceu em Paris, durante a Revolução Francesa. Benoit, que morreu em 1833, foi um arquiteto importante na Argentina e teve um filho, hoje sepultado no mesmo local. UM LUGAR PARA BORGES Em vários poemas, Jorge Luis Borges (1899-1986) falou de sua vontade de descansar na Recoleta, tal como seus antepassados. Em 1986, seu último ano de vida, ele mudou de idéia. Decidiu ser enterrado em Genebra, na Suíça, onde estava morando. Atualmente, vários intelectuais argentinos pedem que seu corpo seja repatriado. E colocado no mausoléu da família de seu avô, o coronel Isidoro Suárez, imortalizado nos poemas e nos relatos de Borges. ALMA PENADA A Recoleta também tem suas histórias de fantasmas. A mais famosa é protagonizada por Rufina Cambaceres, filha de uma família aristocrática, que morreu no dia em que completaria 19 anos, em 1903. Por causa da grande dor de seus pais, a jovem foi enterrada às pressas. Dias depois, por causa de um estranho deslocamento de terra, os funcionários do cemitério resolveram abrir o caixão da garota. Para a surpresa deles, o corpo estava fora da posição original e, na parte interna do caixão, podiam ser vistas várias marcas de unha. Rufina, acreditam, não havia morrido, e sim entrado em estado cataléptico. Foi enterrada viva e tentou, desesperadamente, escapar do túmulo. Dizem que hoje sua alma vaga no cemitério durante a noite, na forma de uma dama de branco. Um dos túmulos mais tristes da Recoleta - é relativamente novo, de 1970 - abriga os restos de Ana Crociatti, uma jovem que morreu em plena lua-de-mel, no meio de uma avalanche. Seus pais mandaram fazer uma estátua representando a moça ao lado do cachorro que tanto amava, Sabu. Uma placa de bronze testemunha a imensa tristeza dos parentes da jovem, que ali perguntam, em italiano, ''perché, perché...?'' (por que, por quê?).

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