Numa trilha na Islândia, a chance de pai e filho se aproximarem


Com o filho de 11 anos cada vez mais independente, aventura se mostrou uma chance de dar uma guinada na relação entre eles

Por Jake Halpern
Seria uma aventura fantástica, com uma pequena chance de morte. Foto: Bara Kristinsdottir/The New York Times

Foi a promessa de perigo que atraiu meu filho de 11 anos. Sebastian, meu filho mais velho, que cresceu lendo romances de fantasia e assistindo O Senhor dos Anéis, para que ele conheça cada centímetro da jornada de Frodo e Sam, dos Dead Marshes ao Mount Doom. Então foi assim que eu o convenci: estávamos indo para Mordor. Iríamos atravessar desfiladeiros em montanhas nevadas, desertos de areia preta, rios furiosos e poços de lama ácidos e quentes. Seria uma aventura fantástica, com uma pequena chance de morte.

Naturalmente, minha esposa se irritou com a menção da mortalidade. “Isso não aconteceria”, garanti a ela (repetidamente), mas a possibilidade, mesmo tão débil, era crucial para a mágica da tentativa. Não estávamos jogando no Xbox. Era real. Estávamos nos dirigindo para as remotas montanhas vulcânicas da Islândia - e juntos viveríamos para contar a história. A arte do convencimento. É uma faceta amplamente subestimada da paternidade.

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Era, é claro, uma espécie de presunção. Eu gosto de caminhadas e poços de lama ácida tanto quanto qualquer outro homem, mas o que eu realmente queria era tempo com meu filho. Há alguns meses, percebi que ele estava em uma idade precária - não era mais criança, mas não exatamente um adolescente - e eu podia sentir a tensão premente da adolescência, como a gravidade, puxando-o para longe de mim.

Tudo isso era bastante apropriado para a idade. (Como foi o seu dia? “Bom”. Sobre o que você conversa com seus amigos? “Sei lá”.) Eu queria mais, mas sempre parecia haver trabalhos de casa, jogos de futebol, atletismo, festa do pijama, ensaio de banda, e o muito mais - é realmente insano o número de obrigações que depositamos na vida de nossos filhos, até que todos fiquemos coletivamente exaustos.

Então, uma noite, enquanto eu estava deitado na cama, olhando para o teto, com o coração batendo forte, consciente de eu o tempo passava, peguei meu iPhone e reservei duas passagens para a Islândia.

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Estávamos nos dirigindo para Landmannalaugar, um posto avançado remoto no sul da Islândia. Este era o início da Trilha Laugavegur, uma caminhada de 54 quilômetros por uma impressionante diversidade de terrenos - toda a Terra-média (menos com os orcs) - e, de acordo com o nosso guia, havia um barraco, em algum lugar por ali, se serviria cerveja. O plano era percorrê-lo em quatro dias e permanecer em cabanas ao longo do caminho.

Início da Trilha Laugavegur, uma caminhada de 54 quilômetros por uma impressionante diversidade de terrenos Foto: Bara Kristinsdottir/The New York Times

O início

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Logo nos encontramos no equivalente islandês de um galgo, navegando pela estrada, quando o motorista do ônibus fez uma curva acentuada à direita, em uma vasta extensão de areia negra, cercada por montanhas distantes. E nós apenas continuamos. Sebastian olhou para mim intrigado: “Papai, isso conta como uma estrada?” Nosso ônibus se aproximou de um rio estreito e entrou na correnteza. Pareceu brevemente como se estivéssemos em um barco, cercado por água. E continuamos, durante quase duas horas, até chegarmos a Landmannalaugar sob uma chuva torrencial.

Corrigindo: uma chuva gelada.

Nuvens pesadas pairavam no alto, fundindo-se com as onipresentes rochas cinzentas do vale. Era um lugar melancólico. Mais tarde, conheci uma administradora que passara parte do inverno aqui, em grande parte sozinha. Ela morou em uma cabana, que compartilhava com ratos. “Eu matei os ratos”, ela me disse. “E comecei a lamentar isso, porque então fiquei realmente sozinha.” Essa administradora, Heidrun Olafsdottir, também era poeta e pretendia escrever enquanto estava aqui, mas achou impossível. O trabalho exigia que ela mantivesse um diário, o que ela fez com extremo minimalismo – “Verifiquei o óleo” ou “Consertei o gerador”. Esse era o estado de espírito que este vale evocava.

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A caminhada começa

A trtilhapassa por desfiladeiros, cenários lunares e rios congelantes. Foto: Bara Kristinsdottir/The New York Times

Sebastian e eu saímos do ônibus e fizemos uma rápida verificação do equipamento - botas, calças impermeáveis, jaquetas, chapéus, luvas, pacotes, cartas de baralho, refeições liofilizadas e barras Snickers suficientes para ressuscitar seis diabéticos em hipoglicemia. Na cabana do administrador, onde os caminhantes em potencial fazem check-in, o diretor me olhou avaliando. “O tempo no desfiladeiro não está ótimo”, alertou. “A visibilidade está ruim.” Ele então perguntou sobre o nosso equipamento. O momento teve a sensação sombria de uma passagem de fronteira, como se estivéssemos à beira de entrar em uma terra estrangeira, e de fato estávamos. A propósito, tudo isso é típico no início da trilha Laugavegur; e os guardas muitas vezes fazem as pessoas voltarem.

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A trilha era bem marcada, explicou o administrador, com postes a cada cem metros. E havia muitos outros caminhantes. A única área arriscada foi a primeira passagem na montanha, pouco antes da cabana em Hrafntinnusker, onde passaríamos nossa primeira noite. A neve e o nevoeiro às vezes obscurecem a visibilidade aqui. “Você sempre pode ligar ou discar 112 no seu celular em uma emergência”, disse ele. Hesitei. Anos atrás, um jovem israelense morreu nessa exata passagem, numa nevasca de verão; e ele não era o único a perecer. “Normalmente, temos uma morte a cada dois anos”, disse outro administrador.

“Vamos percorrer um quilômetro por vez, eu disse a mim mesmo.

Trilha Laugavegur no sul da Islândia em julho. Foto: Bara Kristinsdottir/The New York Times
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Na trilha, tentei aliviar um pouco de peso da mochila de Sebastian. Ele venceu o campeonato estadual nos 1.500 metros para sua faixa etária, mas correr em uma pista e carregar uma mochila nas montanhas são tarefas totalmente diferentes. Sebastian gentilmente me afastou. “Não pense em nós como pai e filho, apenas como bons amigos e iguais”, disse ele. A expressão em seu rosto era tão orgulhosa e sincera que não tive escolha a não ser concordar. E assim começamos nossa subida a Hrafntinnusker.

Cenário lunar

Escalamos uma série de ladeiras suaves através de uma paisagem vagamente lunar. (Ficou evidente por que, na década de 1960, os astronautas treinaram na Islândia para sua visita à Lua.) Logo olhamos para Vondugil, o chamado Vale Maligno - um lugar que os pastores historicamente evitavam por causa dos espíritos malignos - e que parecia apropriadamente chamado, pois estava envolto em uma sombria névoa. Sebastian estava eletrificado com tudo isso. Quando vimos sopros de vapor, à distância, ele subiu a montanha até descobrir um buraco de onde o vapor exalava. Momentos depois, ele gritou: “Olha, pai, olha!” Fiquei em dúvida sobre o que poderia justificar tal exuberância, até me virar e ver um lago fervilhando com borbulhas.

Quando nos aproximamos da passagem da montanha, o terreno rochoso desapareceu, dando lugar à neve e ao gelo. Nós poderíamos estar na Antártica. A trilha era marcada por altos montes de pedras, que cintilavam dentro e fora da vista, enquanto nuvens baixas varriam sobre nós. Instintivamente, estendemos a mão e demos as mãos. Senti Sebastian apertar meus dedos. Eu olhei para ele - para ter certeza de que ele estava bem. Seus olhos brilhavam com determinação.

Condições difíceis à frente

Cabana Hrafntinnusker.Não era chique, mas era quente, seguro e seco. Foto: Bara Kristinsdottir/The New York Times

Foi Sebastian quem localizou o memorial do jovem israelense - Ido Keinan -, uma modesta pilha de pedras com uma placa de metal. A parte assustadora era o quão perto Keinan estava da segurança quando morreu. Apenas algumas centenas de metros depois chegamos à cabana Hrafntinnusker. Os dois guardas que a mantinham - um jovem casal britânico, Katie Featherstone e Daniel de Maine - nos receberam. Não era chique - alguns quartos com móveis espartanos e uma cozinha -, mas era quente, seguro e seco.

Quando a tarde se transformou em noite, o clima foi piorando constantemente. O vento se intensificou, a visibilidade caiu e o ar ficou mais frio. Outros caminhantes chegaram, incluindo um grande contingente da Coreia do Sul, lotando a pequena casa: 52 pessoas abriram seus sacos de dormir em cada cantinho. (É difícil encontrar espaços nessas cabanas; normalmente, as reservas precisam ser feitas com meses de antecedência.) Do lado de fora, um punhado de almas corajosas montou tendas.

Por volta das 20h30, chegaram três jovens da Califórnia. Estavam com frio, molhados e assustados. Eles não tinham reservas e não haviam entrado em contato com o administrador em Landmannalaugar. Katie disse a eles, gentilmente, mas com firmeza, que não havia espaço; eles teriam que armar sua barraca e atravessar a noite. Se a situação piorasse, Katie disse que abriria as portas. Era uma situação desafiadora, mas que ela e Daniel estavam enfrentando. Antes de vir para a Islândia, eles foram voluntários em um campo de refugiados em Calais, na França. “Havia muita gente dizendo 'não' para as pessoas na França, pessoas em situações consideravelmente piores”, lembrou Daniel com pesar.

Chuva, sol e 'eu te amo'

Na manhã seguinte, pouco depois das sete da manhã, Sebastian e eu partimos de Hrafntinnusker, por um vento uivante. Nossa rota nos levaria por várias cordilheiras, descendo em um vale, atravessando um rio e finalmente até a cabana à beira do lago em Alftavatn. Éramos os primeiros na trilha e logo nos sentimos as duas únicas pessoas no mundo. A chuva fria atingiu nossos rostos. Conversamos pouco. Nosso único objetivo era chegar a Alftavatn o mais rápido possível.

Quando começamos nossa descida ao vale, cujas encostas estavam cobertas de musgo num tom verde elétrico, parecia que havíamos emergido da lua e depois do Ártico, apenas para nos encontrarmos nos vales da Escócia. Sebastian não reclamou, mas pude ver que ele estava com frio. Quando chegamos ao rio, a água passou por nossos joelhos e não tínhamos escolha a não ser tirar as botas e atravessar de sandálias de caminhada. A água, com neve derretida, entorpeceu nossos pés; quando chegamos à margem oposta, Sebastian estava tremendo. Ajoelhei-me, coloquei suas meias de volta e amarrei as botas - como fazia quando ele era criança. “Pai”, ele disse em voz baixa. “Eu te amo.”

“Eu também te amo”, eu disse.

Carregamos nossas mochilas e, o mais rápido que pudemos, completamos a última etapa da jornada, através do vale, até Alftavatn. Aqui encontramos nossa cabana e o lendário bar da trilha em uma cabana adjacente. Fomos os primeiros caminhantes a chegar e tivemos o bar para nós. Era um espaço apertado e aconchegante, com o cheiro de ensopado de frango no ar e um violão na parede para os clientes tocarem.

Mais ou menos uma hora depois, o tempo melhorou. Inteiramente. O vento sumiu. A chuva parou. Nuvens se afastaram. E então o sol dourado e rico emergiu do céu, enquanto todos os últimos alpinistas sitiados postavam a mesma imagem no Instagram: #IcelandicGodbeam (‘Raio de Sol de Deus’) e #PraisedBeJesus (‘Louvado seja Jesus’). Nosso entorno, que só agora pudemos observar pela primeira vez, era de cair o queixo: colinas verdes, picos nevados e o próprio lago - completamente imóvel - uma pérola negra taitiana, imersa na terra. Naquela noite, na cabana, os caminhantes da Coreia do Sul nos convidaram a se juntar a eles para um farto jantar de peixe, kimchi e vodca. Todo mundo brindou a Sebastian por sua resistência e ele se encantou com a atenção.

A chance de conversar

Na manhã seguinte, Sebastian e eu partimos por um deserto de areia preta, cercado por montanhas e geleiras. O tempo estava perfeito - ensolarado com um leve frio no ar - e conversamos enquanto caminhávamos. “Pai, me conte sua história de vida”, ele disse. Ele não estava brincando, então fiz o possível para não enfeitar - como se, pelas suas palavras, fôssemos apenas “extremamente bons amigos”.

Passamos a noite no posto avançado de Emstrur e, no dia seguinte, terminamos a trilha em Thorsmork. O tempo permaneceu perfeito e conversamos muito mais, mesmo quando o ônibus nos levou de volta à civilização - às ruas arrumadas de Reykjavik.

Em nossa última noite na Islândia, nos regalamos com sushi e depois voltamos ao hotel. Tínhamos duas camas de solteiro adjacentes. Sebastian cochilou imediatamente e depois rolou, dormindo, então ele se aconchegou mais perto, com os braços desengonçados sobre mim. Já era tarde, quase 10 horas, mas o céu ainda estava iluminado pelo sol - a lenta chegada do crepúsculo no Norte. Logo nossas vidas ocupadas seriam retomadas. A escola começaria. Os dias passariam. Meu filho cresceria. Mas, por enquanto, enganei o tempo e o crepúsculo permaneceu. 

Tradução de Claudia Bozzo

Seria uma aventura fantástica, com uma pequena chance de morte. Foto: Bara Kristinsdottir/The New York Times

Foi a promessa de perigo que atraiu meu filho de 11 anos. Sebastian, meu filho mais velho, que cresceu lendo romances de fantasia e assistindo O Senhor dos Anéis, para que ele conheça cada centímetro da jornada de Frodo e Sam, dos Dead Marshes ao Mount Doom. Então foi assim que eu o convenci: estávamos indo para Mordor. Iríamos atravessar desfiladeiros em montanhas nevadas, desertos de areia preta, rios furiosos e poços de lama ácidos e quentes. Seria uma aventura fantástica, com uma pequena chance de morte.

Naturalmente, minha esposa se irritou com a menção da mortalidade. “Isso não aconteceria”, garanti a ela (repetidamente), mas a possibilidade, mesmo tão débil, era crucial para a mágica da tentativa. Não estávamos jogando no Xbox. Era real. Estávamos nos dirigindo para as remotas montanhas vulcânicas da Islândia - e juntos viveríamos para contar a história. A arte do convencimento. É uma faceta amplamente subestimada da paternidade.

Era, é claro, uma espécie de presunção. Eu gosto de caminhadas e poços de lama ácida tanto quanto qualquer outro homem, mas o que eu realmente queria era tempo com meu filho. Há alguns meses, percebi que ele estava em uma idade precária - não era mais criança, mas não exatamente um adolescente - e eu podia sentir a tensão premente da adolescência, como a gravidade, puxando-o para longe de mim.

Tudo isso era bastante apropriado para a idade. (Como foi o seu dia? “Bom”. Sobre o que você conversa com seus amigos? “Sei lá”.) Eu queria mais, mas sempre parecia haver trabalhos de casa, jogos de futebol, atletismo, festa do pijama, ensaio de banda, e o muito mais - é realmente insano o número de obrigações que depositamos na vida de nossos filhos, até que todos fiquemos coletivamente exaustos.

Então, uma noite, enquanto eu estava deitado na cama, olhando para o teto, com o coração batendo forte, consciente de eu o tempo passava, peguei meu iPhone e reservei duas passagens para a Islândia.

Estávamos nos dirigindo para Landmannalaugar, um posto avançado remoto no sul da Islândia. Este era o início da Trilha Laugavegur, uma caminhada de 54 quilômetros por uma impressionante diversidade de terrenos - toda a Terra-média (menos com os orcs) - e, de acordo com o nosso guia, havia um barraco, em algum lugar por ali, se serviria cerveja. O plano era percorrê-lo em quatro dias e permanecer em cabanas ao longo do caminho.

Início da Trilha Laugavegur, uma caminhada de 54 quilômetros por uma impressionante diversidade de terrenos Foto: Bara Kristinsdottir/The New York Times

O início

Logo nos encontramos no equivalente islandês de um galgo, navegando pela estrada, quando o motorista do ônibus fez uma curva acentuada à direita, em uma vasta extensão de areia negra, cercada por montanhas distantes. E nós apenas continuamos. Sebastian olhou para mim intrigado: “Papai, isso conta como uma estrada?” Nosso ônibus se aproximou de um rio estreito e entrou na correnteza. Pareceu brevemente como se estivéssemos em um barco, cercado por água. E continuamos, durante quase duas horas, até chegarmos a Landmannalaugar sob uma chuva torrencial.

Corrigindo: uma chuva gelada.

Nuvens pesadas pairavam no alto, fundindo-se com as onipresentes rochas cinzentas do vale. Era um lugar melancólico. Mais tarde, conheci uma administradora que passara parte do inverno aqui, em grande parte sozinha. Ela morou em uma cabana, que compartilhava com ratos. “Eu matei os ratos”, ela me disse. “E comecei a lamentar isso, porque então fiquei realmente sozinha.” Essa administradora, Heidrun Olafsdottir, também era poeta e pretendia escrever enquanto estava aqui, mas achou impossível. O trabalho exigia que ela mantivesse um diário, o que ela fez com extremo minimalismo – “Verifiquei o óleo” ou “Consertei o gerador”. Esse era o estado de espírito que este vale evocava.

A caminhada começa

A trtilhapassa por desfiladeiros, cenários lunares e rios congelantes. Foto: Bara Kristinsdottir/The New York Times

Sebastian e eu saímos do ônibus e fizemos uma rápida verificação do equipamento - botas, calças impermeáveis, jaquetas, chapéus, luvas, pacotes, cartas de baralho, refeições liofilizadas e barras Snickers suficientes para ressuscitar seis diabéticos em hipoglicemia. Na cabana do administrador, onde os caminhantes em potencial fazem check-in, o diretor me olhou avaliando. “O tempo no desfiladeiro não está ótimo”, alertou. “A visibilidade está ruim.” Ele então perguntou sobre o nosso equipamento. O momento teve a sensação sombria de uma passagem de fronteira, como se estivéssemos à beira de entrar em uma terra estrangeira, e de fato estávamos. A propósito, tudo isso é típico no início da trilha Laugavegur; e os guardas muitas vezes fazem as pessoas voltarem.

A trilha era bem marcada, explicou o administrador, com postes a cada cem metros. E havia muitos outros caminhantes. A única área arriscada foi a primeira passagem na montanha, pouco antes da cabana em Hrafntinnusker, onde passaríamos nossa primeira noite. A neve e o nevoeiro às vezes obscurecem a visibilidade aqui. “Você sempre pode ligar ou discar 112 no seu celular em uma emergência”, disse ele. Hesitei. Anos atrás, um jovem israelense morreu nessa exata passagem, numa nevasca de verão; e ele não era o único a perecer. “Normalmente, temos uma morte a cada dois anos”, disse outro administrador.

“Vamos percorrer um quilômetro por vez, eu disse a mim mesmo.

Trilha Laugavegur no sul da Islândia em julho. Foto: Bara Kristinsdottir/The New York Times

Na trilha, tentei aliviar um pouco de peso da mochila de Sebastian. Ele venceu o campeonato estadual nos 1.500 metros para sua faixa etária, mas correr em uma pista e carregar uma mochila nas montanhas são tarefas totalmente diferentes. Sebastian gentilmente me afastou. “Não pense em nós como pai e filho, apenas como bons amigos e iguais”, disse ele. A expressão em seu rosto era tão orgulhosa e sincera que não tive escolha a não ser concordar. E assim começamos nossa subida a Hrafntinnusker.

Cenário lunar

Escalamos uma série de ladeiras suaves através de uma paisagem vagamente lunar. (Ficou evidente por que, na década de 1960, os astronautas treinaram na Islândia para sua visita à Lua.) Logo olhamos para Vondugil, o chamado Vale Maligno - um lugar que os pastores historicamente evitavam por causa dos espíritos malignos - e que parecia apropriadamente chamado, pois estava envolto em uma sombria névoa. Sebastian estava eletrificado com tudo isso. Quando vimos sopros de vapor, à distância, ele subiu a montanha até descobrir um buraco de onde o vapor exalava. Momentos depois, ele gritou: “Olha, pai, olha!” Fiquei em dúvida sobre o que poderia justificar tal exuberância, até me virar e ver um lago fervilhando com borbulhas.

Quando nos aproximamos da passagem da montanha, o terreno rochoso desapareceu, dando lugar à neve e ao gelo. Nós poderíamos estar na Antártica. A trilha era marcada por altos montes de pedras, que cintilavam dentro e fora da vista, enquanto nuvens baixas varriam sobre nós. Instintivamente, estendemos a mão e demos as mãos. Senti Sebastian apertar meus dedos. Eu olhei para ele - para ter certeza de que ele estava bem. Seus olhos brilhavam com determinação.

Condições difíceis à frente

Cabana Hrafntinnusker.Não era chique, mas era quente, seguro e seco. Foto: Bara Kristinsdottir/The New York Times

Foi Sebastian quem localizou o memorial do jovem israelense - Ido Keinan -, uma modesta pilha de pedras com uma placa de metal. A parte assustadora era o quão perto Keinan estava da segurança quando morreu. Apenas algumas centenas de metros depois chegamos à cabana Hrafntinnusker. Os dois guardas que a mantinham - um jovem casal britânico, Katie Featherstone e Daniel de Maine - nos receberam. Não era chique - alguns quartos com móveis espartanos e uma cozinha -, mas era quente, seguro e seco.

Quando a tarde se transformou em noite, o clima foi piorando constantemente. O vento se intensificou, a visibilidade caiu e o ar ficou mais frio. Outros caminhantes chegaram, incluindo um grande contingente da Coreia do Sul, lotando a pequena casa: 52 pessoas abriram seus sacos de dormir em cada cantinho. (É difícil encontrar espaços nessas cabanas; normalmente, as reservas precisam ser feitas com meses de antecedência.) Do lado de fora, um punhado de almas corajosas montou tendas.

Por volta das 20h30, chegaram três jovens da Califórnia. Estavam com frio, molhados e assustados. Eles não tinham reservas e não haviam entrado em contato com o administrador em Landmannalaugar. Katie disse a eles, gentilmente, mas com firmeza, que não havia espaço; eles teriam que armar sua barraca e atravessar a noite. Se a situação piorasse, Katie disse que abriria as portas. Era uma situação desafiadora, mas que ela e Daniel estavam enfrentando. Antes de vir para a Islândia, eles foram voluntários em um campo de refugiados em Calais, na França. “Havia muita gente dizendo 'não' para as pessoas na França, pessoas em situações consideravelmente piores”, lembrou Daniel com pesar.

Chuva, sol e 'eu te amo'

Na manhã seguinte, pouco depois das sete da manhã, Sebastian e eu partimos de Hrafntinnusker, por um vento uivante. Nossa rota nos levaria por várias cordilheiras, descendo em um vale, atravessando um rio e finalmente até a cabana à beira do lago em Alftavatn. Éramos os primeiros na trilha e logo nos sentimos as duas únicas pessoas no mundo. A chuva fria atingiu nossos rostos. Conversamos pouco. Nosso único objetivo era chegar a Alftavatn o mais rápido possível.

Quando começamos nossa descida ao vale, cujas encostas estavam cobertas de musgo num tom verde elétrico, parecia que havíamos emergido da lua e depois do Ártico, apenas para nos encontrarmos nos vales da Escócia. Sebastian não reclamou, mas pude ver que ele estava com frio. Quando chegamos ao rio, a água passou por nossos joelhos e não tínhamos escolha a não ser tirar as botas e atravessar de sandálias de caminhada. A água, com neve derretida, entorpeceu nossos pés; quando chegamos à margem oposta, Sebastian estava tremendo. Ajoelhei-me, coloquei suas meias de volta e amarrei as botas - como fazia quando ele era criança. “Pai”, ele disse em voz baixa. “Eu te amo.”

“Eu também te amo”, eu disse.

Carregamos nossas mochilas e, o mais rápido que pudemos, completamos a última etapa da jornada, através do vale, até Alftavatn. Aqui encontramos nossa cabana e o lendário bar da trilha em uma cabana adjacente. Fomos os primeiros caminhantes a chegar e tivemos o bar para nós. Era um espaço apertado e aconchegante, com o cheiro de ensopado de frango no ar e um violão na parede para os clientes tocarem.

Mais ou menos uma hora depois, o tempo melhorou. Inteiramente. O vento sumiu. A chuva parou. Nuvens se afastaram. E então o sol dourado e rico emergiu do céu, enquanto todos os últimos alpinistas sitiados postavam a mesma imagem no Instagram: #IcelandicGodbeam (‘Raio de Sol de Deus’) e #PraisedBeJesus (‘Louvado seja Jesus’). Nosso entorno, que só agora pudemos observar pela primeira vez, era de cair o queixo: colinas verdes, picos nevados e o próprio lago - completamente imóvel - uma pérola negra taitiana, imersa na terra. Naquela noite, na cabana, os caminhantes da Coreia do Sul nos convidaram a se juntar a eles para um farto jantar de peixe, kimchi e vodca. Todo mundo brindou a Sebastian por sua resistência e ele se encantou com a atenção.

A chance de conversar

Na manhã seguinte, Sebastian e eu partimos por um deserto de areia preta, cercado por montanhas e geleiras. O tempo estava perfeito - ensolarado com um leve frio no ar - e conversamos enquanto caminhávamos. “Pai, me conte sua história de vida”, ele disse. Ele não estava brincando, então fiz o possível para não enfeitar - como se, pelas suas palavras, fôssemos apenas “extremamente bons amigos”.

Passamos a noite no posto avançado de Emstrur e, no dia seguinte, terminamos a trilha em Thorsmork. O tempo permaneceu perfeito e conversamos muito mais, mesmo quando o ônibus nos levou de volta à civilização - às ruas arrumadas de Reykjavik.

Em nossa última noite na Islândia, nos regalamos com sushi e depois voltamos ao hotel. Tínhamos duas camas de solteiro adjacentes. Sebastian cochilou imediatamente e depois rolou, dormindo, então ele se aconchegou mais perto, com os braços desengonçados sobre mim. Já era tarde, quase 10 horas, mas o céu ainda estava iluminado pelo sol - a lenta chegada do crepúsculo no Norte. Logo nossas vidas ocupadas seriam retomadas. A escola começaria. Os dias passariam. Meu filho cresceria. Mas, por enquanto, enganei o tempo e o crepúsculo permaneceu. 

Tradução de Claudia Bozzo

Seria uma aventura fantástica, com uma pequena chance de morte. Foto: Bara Kristinsdottir/The New York Times

Foi a promessa de perigo que atraiu meu filho de 11 anos. Sebastian, meu filho mais velho, que cresceu lendo romances de fantasia e assistindo O Senhor dos Anéis, para que ele conheça cada centímetro da jornada de Frodo e Sam, dos Dead Marshes ao Mount Doom. Então foi assim que eu o convenci: estávamos indo para Mordor. Iríamos atravessar desfiladeiros em montanhas nevadas, desertos de areia preta, rios furiosos e poços de lama ácidos e quentes. Seria uma aventura fantástica, com uma pequena chance de morte.

Naturalmente, minha esposa se irritou com a menção da mortalidade. “Isso não aconteceria”, garanti a ela (repetidamente), mas a possibilidade, mesmo tão débil, era crucial para a mágica da tentativa. Não estávamos jogando no Xbox. Era real. Estávamos nos dirigindo para as remotas montanhas vulcânicas da Islândia - e juntos viveríamos para contar a história. A arte do convencimento. É uma faceta amplamente subestimada da paternidade.

Era, é claro, uma espécie de presunção. Eu gosto de caminhadas e poços de lama ácida tanto quanto qualquer outro homem, mas o que eu realmente queria era tempo com meu filho. Há alguns meses, percebi que ele estava em uma idade precária - não era mais criança, mas não exatamente um adolescente - e eu podia sentir a tensão premente da adolescência, como a gravidade, puxando-o para longe de mim.

Tudo isso era bastante apropriado para a idade. (Como foi o seu dia? “Bom”. Sobre o que você conversa com seus amigos? “Sei lá”.) Eu queria mais, mas sempre parecia haver trabalhos de casa, jogos de futebol, atletismo, festa do pijama, ensaio de banda, e o muito mais - é realmente insano o número de obrigações que depositamos na vida de nossos filhos, até que todos fiquemos coletivamente exaustos.

Então, uma noite, enquanto eu estava deitado na cama, olhando para o teto, com o coração batendo forte, consciente de eu o tempo passava, peguei meu iPhone e reservei duas passagens para a Islândia.

Estávamos nos dirigindo para Landmannalaugar, um posto avançado remoto no sul da Islândia. Este era o início da Trilha Laugavegur, uma caminhada de 54 quilômetros por uma impressionante diversidade de terrenos - toda a Terra-média (menos com os orcs) - e, de acordo com o nosso guia, havia um barraco, em algum lugar por ali, se serviria cerveja. O plano era percorrê-lo em quatro dias e permanecer em cabanas ao longo do caminho.

Início da Trilha Laugavegur, uma caminhada de 54 quilômetros por uma impressionante diversidade de terrenos Foto: Bara Kristinsdottir/The New York Times

O início

Logo nos encontramos no equivalente islandês de um galgo, navegando pela estrada, quando o motorista do ônibus fez uma curva acentuada à direita, em uma vasta extensão de areia negra, cercada por montanhas distantes. E nós apenas continuamos. Sebastian olhou para mim intrigado: “Papai, isso conta como uma estrada?” Nosso ônibus se aproximou de um rio estreito e entrou na correnteza. Pareceu brevemente como se estivéssemos em um barco, cercado por água. E continuamos, durante quase duas horas, até chegarmos a Landmannalaugar sob uma chuva torrencial.

Corrigindo: uma chuva gelada.

Nuvens pesadas pairavam no alto, fundindo-se com as onipresentes rochas cinzentas do vale. Era um lugar melancólico. Mais tarde, conheci uma administradora que passara parte do inverno aqui, em grande parte sozinha. Ela morou em uma cabana, que compartilhava com ratos. “Eu matei os ratos”, ela me disse. “E comecei a lamentar isso, porque então fiquei realmente sozinha.” Essa administradora, Heidrun Olafsdottir, também era poeta e pretendia escrever enquanto estava aqui, mas achou impossível. O trabalho exigia que ela mantivesse um diário, o que ela fez com extremo minimalismo – “Verifiquei o óleo” ou “Consertei o gerador”. Esse era o estado de espírito que este vale evocava.

A caminhada começa

A trtilhapassa por desfiladeiros, cenários lunares e rios congelantes. Foto: Bara Kristinsdottir/The New York Times

Sebastian e eu saímos do ônibus e fizemos uma rápida verificação do equipamento - botas, calças impermeáveis, jaquetas, chapéus, luvas, pacotes, cartas de baralho, refeições liofilizadas e barras Snickers suficientes para ressuscitar seis diabéticos em hipoglicemia. Na cabana do administrador, onde os caminhantes em potencial fazem check-in, o diretor me olhou avaliando. “O tempo no desfiladeiro não está ótimo”, alertou. “A visibilidade está ruim.” Ele então perguntou sobre o nosso equipamento. O momento teve a sensação sombria de uma passagem de fronteira, como se estivéssemos à beira de entrar em uma terra estrangeira, e de fato estávamos. A propósito, tudo isso é típico no início da trilha Laugavegur; e os guardas muitas vezes fazem as pessoas voltarem.

A trilha era bem marcada, explicou o administrador, com postes a cada cem metros. E havia muitos outros caminhantes. A única área arriscada foi a primeira passagem na montanha, pouco antes da cabana em Hrafntinnusker, onde passaríamos nossa primeira noite. A neve e o nevoeiro às vezes obscurecem a visibilidade aqui. “Você sempre pode ligar ou discar 112 no seu celular em uma emergência”, disse ele. Hesitei. Anos atrás, um jovem israelense morreu nessa exata passagem, numa nevasca de verão; e ele não era o único a perecer. “Normalmente, temos uma morte a cada dois anos”, disse outro administrador.

“Vamos percorrer um quilômetro por vez, eu disse a mim mesmo.

Trilha Laugavegur no sul da Islândia em julho. Foto: Bara Kristinsdottir/The New York Times

Na trilha, tentei aliviar um pouco de peso da mochila de Sebastian. Ele venceu o campeonato estadual nos 1.500 metros para sua faixa etária, mas correr em uma pista e carregar uma mochila nas montanhas são tarefas totalmente diferentes. Sebastian gentilmente me afastou. “Não pense em nós como pai e filho, apenas como bons amigos e iguais”, disse ele. A expressão em seu rosto era tão orgulhosa e sincera que não tive escolha a não ser concordar. E assim começamos nossa subida a Hrafntinnusker.

Cenário lunar

Escalamos uma série de ladeiras suaves através de uma paisagem vagamente lunar. (Ficou evidente por que, na década de 1960, os astronautas treinaram na Islândia para sua visita à Lua.) Logo olhamos para Vondugil, o chamado Vale Maligno - um lugar que os pastores historicamente evitavam por causa dos espíritos malignos - e que parecia apropriadamente chamado, pois estava envolto em uma sombria névoa. Sebastian estava eletrificado com tudo isso. Quando vimos sopros de vapor, à distância, ele subiu a montanha até descobrir um buraco de onde o vapor exalava. Momentos depois, ele gritou: “Olha, pai, olha!” Fiquei em dúvida sobre o que poderia justificar tal exuberância, até me virar e ver um lago fervilhando com borbulhas.

Quando nos aproximamos da passagem da montanha, o terreno rochoso desapareceu, dando lugar à neve e ao gelo. Nós poderíamos estar na Antártica. A trilha era marcada por altos montes de pedras, que cintilavam dentro e fora da vista, enquanto nuvens baixas varriam sobre nós. Instintivamente, estendemos a mão e demos as mãos. Senti Sebastian apertar meus dedos. Eu olhei para ele - para ter certeza de que ele estava bem. Seus olhos brilhavam com determinação.

Condições difíceis à frente

Cabana Hrafntinnusker.Não era chique, mas era quente, seguro e seco. Foto: Bara Kristinsdottir/The New York Times

Foi Sebastian quem localizou o memorial do jovem israelense - Ido Keinan -, uma modesta pilha de pedras com uma placa de metal. A parte assustadora era o quão perto Keinan estava da segurança quando morreu. Apenas algumas centenas de metros depois chegamos à cabana Hrafntinnusker. Os dois guardas que a mantinham - um jovem casal britânico, Katie Featherstone e Daniel de Maine - nos receberam. Não era chique - alguns quartos com móveis espartanos e uma cozinha -, mas era quente, seguro e seco.

Quando a tarde se transformou em noite, o clima foi piorando constantemente. O vento se intensificou, a visibilidade caiu e o ar ficou mais frio. Outros caminhantes chegaram, incluindo um grande contingente da Coreia do Sul, lotando a pequena casa: 52 pessoas abriram seus sacos de dormir em cada cantinho. (É difícil encontrar espaços nessas cabanas; normalmente, as reservas precisam ser feitas com meses de antecedência.) Do lado de fora, um punhado de almas corajosas montou tendas.

Por volta das 20h30, chegaram três jovens da Califórnia. Estavam com frio, molhados e assustados. Eles não tinham reservas e não haviam entrado em contato com o administrador em Landmannalaugar. Katie disse a eles, gentilmente, mas com firmeza, que não havia espaço; eles teriam que armar sua barraca e atravessar a noite. Se a situação piorasse, Katie disse que abriria as portas. Era uma situação desafiadora, mas que ela e Daniel estavam enfrentando. Antes de vir para a Islândia, eles foram voluntários em um campo de refugiados em Calais, na França. “Havia muita gente dizendo 'não' para as pessoas na França, pessoas em situações consideravelmente piores”, lembrou Daniel com pesar.

Chuva, sol e 'eu te amo'

Na manhã seguinte, pouco depois das sete da manhã, Sebastian e eu partimos de Hrafntinnusker, por um vento uivante. Nossa rota nos levaria por várias cordilheiras, descendo em um vale, atravessando um rio e finalmente até a cabana à beira do lago em Alftavatn. Éramos os primeiros na trilha e logo nos sentimos as duas únicas pessoas no mundo. A chuva fria atingiu nossos rostos. Conversamos pouco. Nosso único objetivo era chegar a Alftavatn o mais rápido possível.

Quando começamos nossa descida ao vale, cujas encostas estavam cobertas de musgo num tom verde elétrico, parecia que havíamos emergido da lua e depois do Ártico, apenas para nos encontrarmos nos vales da Escócia. Sebastian não reclamou, mas pude ver que ele estava com frio. Quando chegamos ao rio, a água passou por nossos joelhos e não tínhamos escolha a não ser tirar as botas e atravessar de sandálias de caminhada. A água, com neve derretida, entorpeceu nossos pés; quando chegamos à margem oposta, Sebastian estava tremendo. Ajoelhei-me, coloquei suas meias de volta e amarrei as botas - como fazia quando ele era criança. “Pai”, ele disse em voz baixa. “Eu te amo.”

“Eu também te amo”, eu disse.

Carregamos nossas mochilas e, o mais rápido que pudemos, completamos a última etapa da jornada, através do vale, até Alftavatn. Aqui encontramos nossa cabana e o lendário bar da trilha em uma cabana adjacente. Fomos os primeiros caminhantes a chegar e tivemos o bar para nós. Era um espaço apertado e aconchegante, com o cheiro de ensopado de frango no ar e um violão na parede para os clientes tocarem.

Mais ou menos uma hora depois, o tempo melhorou. Inteiramente. O vento sumiu. A chuva parou. Nuvens se afastaram. E então o sol dourado e rico emergiu do céu, enquanto todos os últimos alpinistas sitiados postavam a mesma imagem no Instagram: #IcelandicGodbeam (‘Raio de Sol de Deus’) e #PraisedBeJesus (‘Louvado seja Jesus’). Nosso entorno, que só agora pudemos observar pela primeira vez, era de cair o queixo: colinas verdes, picos nevados e o próprio lago - completamente imóvel - uma pérola negra taitiana, imersa na terra. Naquela noite, na cabana, os caminhantes da Coreia do Sul nos convidaram a se juntar a eles para um farto jantar de peixe, kimchi e vodca. Todo mundo brindou a Sebastian por sua resistência e ele se encantou com a atenção.

A chance de conversar

Na manhã seguinte, Sebastian e eu partimos por um deserto de areia preta, cercado por montanhas e geleiras. O tempo estava perfeito - ensolarado com um leve frio no ar - e conversamos enquanto caminhávamos. “Pai, me conte sua história de vida”, ele disse. Ele não estava brincando, então fiz o possível para não enfeitar - como se, pelas suas palavras, fôssemos apenas “extremamente bons amigos”.

Passamos a noite no posto avançado de Emstrur e, no dia seguinte, terminamos a trilha em Thorsmork. O tempo permaneceu perfeito e conversamos muito mais, mesmo quando o ônibus nos levou de volta à civilização - às ruas arrumadas de Reykjavik.

Em nossa última noite na Islândia, nos regalamos com sushi e depois voltamos ao hotel. Tínhamos duas camas de solteiro adjacentes. Sebastian cochilou imediatamente e depois rolou, dormindo, então ele se aconchegou mais perto, com os braços desengonçados sobre mim. Já era tarde, quase 10 horas, mas o céu ainda estava iluminado pelo sol - a lenta chegada do crepúsculo no Norte. Logo nossas vidas ocupadas seriam retomadas. A escola começaria. Os dias passariam. Meu filho cresceria. Mas, por enquanto, enganei o tempo e o crepúsculo permaneceu. 

Tradução de Claudia Bozzo

Seria uma aventura fantástica, com uma pequena chance de morte. Foto: Bara Kristinsdottir/The New York Times

Foi a promessa de perigo que atraiu meu filho de 11 anos. Sebastian, meu filho mais velho, que cresceu lendo romances de fantasia e assistindo O Senhor dos Anéis, para que ele conheça cada centímetro da jornada de Frodo e Sam, dos Dead Marshes ao Mount Doom. Então foi assim que eu o convenci: estávamos indo para Mordor. Iríamos atravessar desfiladeiros em montanhas nevadas, desertos de areia preta, rios furiosos e poços de lama ácidos e quentes. Seria uma aventura fantástica, com uma pequena chance de morte.

Naturalmente, minha esposa se irritou com a menção da mortalidade. “Isso não aconteceria”, garanti a ela (repetidamente), mas a possibilidade, mesmo tão débil, era crucial para a mágica da tentativa. Não estávamos jogando no Xbox. Era real. Estávamos nos dirigindo para as remotas montanhas vulcânicas da Islândia - e juntos viveríamos para contar a história. A arte do convencimento. É uma faceta amplamente subestimada da paternidade.

Era, é claro, uma espécie de presunção. Eu gosto de caminhadas e poços de lama ácida tanto quanto qualquer outro homem, mas o que eu realmente queria era tempo com meu filho. Há alguns meses, percebi que ele estava em uma idade precária - não era mais criança, mas não exatamente um adolescente - e eu podia sentir a tensão premente da adolescência, como a gravidade, puxando-o para longe de mim.

Tudo isso era bastante apropriado para a idade. (Como foi o seu dia? “Bom”. Sobre o que você conversa com seus amigos? “Sei lá”.) Eu queria mais, mas sempre parecia haver trabalhos de casa, jogos de futebol, atletismo, festa do pijama, ensaio de banda, e o muito mais - é realmente insano o número de obrigações que depositamos na vida de nossos filhos, até que todos fiquemos coletivamente exaustos.

Então, uma noite, enquanto eu estava deitado na cama, olhando para o teto, com o coração batendo forte, consciente de eu o tempo passava, peguei meu iPhone e reservei duas passagens para a Islândia.

Estávamos nos dirigindo para Landmannalaugar, um posto avançado remoto no sul da Islândia. Este era o início da Trilha Laugavegur, uma caminhada de 54 quilômetros por uma impressionante diversidade de terrenos - toda a Terra-média (menos com os orcs) - e, de acordo com o nosso guia, havia um barraco, em algum lugar por ali, se serviria cerveja. O plano era percorrê-lo em quatro dias e permanecer em cabanas ao longo do caminho.

Início da Trilha Laugavegur, uma caminhada de 54 quilômetros por uma impressionante diversidade de terrenos Foto: Bara Kristinsdottir/The New York Times

O início

Logo nos encontramos no equivalente islandês de um galgo, navegando pela estrada, quando o motorista do ônibus fez uma curva acentuada à direita, em uma vasta extensão de areia negra, cercada por montanhas distantes. E nós apenas continuamos. Sebastian olhou para mim intrigado: “Papai, isso conta como uma estrada?” Nosso ônibus se aproximou de um rio estreito e entrou na correnteza. Pareceu brevemente como se estivéssemos em um barco, cercado por água. E continuamos, durante quase duas horas, até chegarmos a Landmannalaugar sob uma chuva torrencial.

Corrigindo: uma chuva gelada.

Nuvens pesadas pairavam no alto, fundindo-se com as onipresentes rochas cinzentas do vale. Era um lugar melancólico. Mais tarde, conheci uma administradora que passara parte do inverno aqui, em grande parte sozinha. Ela morou em uma cabana, que compartilhava com ratos. “Eu matei os ratos”, ela me disse. “E comecei a lamentar isso, porque então fiquei realmente sozinha.” Essa administradora, Heidrun Olafsdottir, também era poeta e pretendia escrever enquanto estava aqui, mas achou impossível. O trabalho exigia que ela mantivesse um diário, o que ela fez com extremo minimalismo – “Verifiquei o óleo” ou “Consertei o gerador”. Esse era o estado de espírito que este vale evocava.

A caminhada começa

A trtilhapassa por desfiladeiros, cenários lunares e rios congelantes. Foto: Bara Kristinsdottir/The New York Times

Sebastian e eu saímos do ônibus e fizemos uma rápida verificação do equipamento - botas, calças impermeáveis, jaquetas, chapéus, luvas, pacotes, cartas de baralho, refeições liofilizadas e barras Snickers suficientes para ressuscitar seis diabéticos em hipoglicemia. Na cabana do administrador, onde os caminhantes em potencial fazem check-in, o diretor me olhou avaliando. “O tempo no desfiladeiro não está ótimo”, alertou. “A visibilidade está ruim.” Ele então perguntou sobre o nosso equipamento. O momento teve a sensação sombria de uma passagem de fronteira, como se estivéssemos à beira de entrar em uma terra estrangeira, e de fato estávamos. A propósito, tudo isso é típico no início da trilha Laugavegur; e os guardas muitas vezes fazem as pessoas voltarem.

A trilha era bem marcada, explicou o administrador, com postes a cada cem metros. E havia muitos outros caminhantes. A única área arriscada foi a primeira passagem na montanha, pouco antes da cabana em Hrafntinnusker, onde passaríamos nossa primeira noite. A neve e o nevoeiro às vezes obscurecem a visibilidade aqui. “Você sempre pode ligar ou discar 112 no seu celular em uma emergência”, disse ele. Hesitei. Anos atrás, um jovem israelense morreu nessa exata passagem, numa nevasca de verão; e ele não era o único a perecer. “Normalmente, temos uma morte a cada dois anos”, disse outro administrador.

“Vamos percorrer um quilômetro por vez, eu disse a mim mesmo.

Trilha Laugavegur no sul da Islândia em julho. Foto: Bara Kristinsdottir/The New York Times

Na trilha, tentei aliviar um pouco de peso da mochila de Sebastian. Ele venceu o campeonato estadual nos 1.500 metros para sua faixa etária, mas correr em uma pista e carregar uma mochila nas montanhas são tarefas totalmente diferentes. Sebastian gentilmente me afastou. “Não pense em nós como pai e filho, apenas como bons amigos e iguais”, disse ele. A expressão em seu rosto era tão orgulhosa e sincera que não tive escolha a não ser concordar. E assim começamos nossa subida a Hrafntinnusker.

Cenário lunar

Escalamos uma série de ladeiras suaves através de uma paisagem vagamente lunar. (Ficou evidente por que, na década de 1960, os astronautas treinaram na Islândia para sua visita à Lua.) Logo olhamos para Vondugil, o chamado Vale Maligno - um lugar que os pastores historicamente evitavam por causa dos espíritos malignos - e que parecia apropriadamente chamado, pois estava envolto em uma sombria névoa. Sebastian estava eletrificado com tudo isso. Quando vimos sopros de vapor, à distância, ele subiu a montanha até descobrir um buraco de onde o vapor exalava. Momentos depois, ele gritou: “Olha, pai, olha!” Fiquei em dúvida sobre o que poderia justificar tal exuberância, até me virar e ver um lago fervilhando com borbulhas.

Quando nos aproximamos da passagem da montanha, o terreno rochoso desapareceu, dando lugar à neve e ao gelo. Nós poderíamos estar na Antártica. A trilha era marcada por altos montes de pedras, que cintilavam dentro e fora da vista, enquanto nuvens baixas varriam sobre nós. Instintivamente, estendemos a mão e demos as mãos. Senti Sebastian apertar meus dedos. Eu olhei para ele - para ter certeza de que ele estava bem. Seus olhos brilhavam com determinação.

Condições difíceis à frente

Cabana Hrafntinnusker.Não era chique, mas era quente, seguro e seco. Foto: Bara Kristinsdottir/The New York Times

Foi Sebastian quem localizou o memorial do jovem israelense - Ido Keinan -, uma modesta pilha de pedras com uma placa de metal. A parte assustadora era o quão perto Keinan estava da segurança quando morreu. Apenas algumas centenas de metros depois chegamos à cabana Hrafntinnusker. Os dois guardas que a mantinham - um jovem casal britânico, Katie Featherstone e Daniel de Maine - nos receberam. Não era chique - alguns quartos com móveis espartanos e uma cozinha -, mas era quente, seguro e seco.

Quando a tarde se transformou em noite, o clima foi piorando constantemente. O vento se intensificou, a visibilidade caiu e o ar ficou mais frio. Outros caminhantes chegaram, incluindo um grande contingente da Coreia do Sul, lotando a pequena casa: 52 pessoas abriram seus sacos de dormir em cada cantinho. (É difícil encontrar espaços nessas cabanas; normalmente, as reservas precisam ser feitas com meses de antecedência.) Do lado de fora, um punhado de almas corajosas montou tendas.

Por volta das 20h30, chegaram três jovens da Califórnia. Estavam com frio, molhados e assustados. Eles não tinham reservas e não haviam entrado em contato com o administrador em Landmannalaugar. Katie disse a eles, gentilmente, mas com firmeza, que não havia espaço; eles teriam que armar sua barraca e atravessar a noite. Se a situação piorasse, Katie disse que abriria as portas. Era uma situação desafiadora, mas que ela e Daniel estavam enfrentando. Antes de vir para a Islândia, eles foram voluntários em um campo de refugiados em Calais, na França. “Havia muita gente dizendo 'não' para as pessoas na França, pessoas em situações consideravelmente piores”, lembrou Daniel com pesar.

Chuva, sol e 'eu te amo'

Na manhã seguinte, pouco depois das sete da manhã, Sebastian e eu partimos de Hrafntinnusker, por um vento uivante. Nossa rota nos levaria por várias cordilheiras, descendo em um vale, atravessando um rio e finalmente até a cabana à beira do lago em Alftavatn. Éramos os primeiros na trilha e logo nos sentimos as duas únicas pessoas no mundo. A chuva fria atingiu nossos rostos. Conversamos pouco. Nosso único objetivo era chegar a Alftavatn o mais rápido possível.

Quando começamos nossa descida ao vale, cujas encostas estavam cobertas de musgo num tom verde elétrico, parecia que havíamos emergido da lua e depois do Ártico, apenas para nos encontrarmos nos vales da Escócia. Sebastian não reclamou, mas pude ver que ele estava com frio. Quando chegamos ao rio, a água passou por nossos joelhos e não tínhamos escolha a não ser tirar as botas e atravessar de sandálias de caminhada. A água, com neve derretida, entorpeceu nossos pés; quando chegamos à margem oposta, Sebastian estava tremendo. Ajoelhei-me, coloquei suas meias de volta e amarrei as botas - como fazia quando ele era criança. “Pai”, ele disse em voz baixa. “Eu te amo.”

“Eu também te amo”, eu disse.

Carregamos nossas mochilas e, o mais rápido que pudemos, completamos a última etapa da jornada, através do vale, até Alftavatn. Aqui encontramos nossa cabana e o lendário bar da trilha em uma cabana adjacente. Fomos os primeiros caminhantes a chegar e tivemos o bar para nós. Era um espaço apertado e aconchegante, com o cheiro de ensopado de frango no ar e um violão na parede para os clientes tocarem.

Mais ou menos uma hora depois, o tempo melhorou. Inteiramente. O vento sumiu. A chuva parou. Nuvens se afastaram. E então o sol dourado e rico emergiu do céu, enquanto todos os últimos alpinistas sitiados postavam a mesma imagem no Instagram: #IcelandicGodbeam (‘Raio de Sol de Deus’) e #PraisedBeJesus (‘Louvado seja Jesus’). Nosso entorno, que só agora pudemos observar pela primeira vez, era de cair o queixo: colinas verdes, picos nevados e o próprio lago - completamente imóvel - uma pérola negra taitiana, imersa na terra. Naquela noite, na cabana, os caminhantes da Coreia do Sul nos convidaram a se juntar a eles para um farto jantar de peixe, kimchi e vodca. Todo mundo brindou a Sebastian por sua resistência e ele se encantou com a atenção.

A chance de conversar

Na manhã seguinte, Sebastian e eu partimos por um deserto de areia preta, cercado por montanhas e geleiras. O tempo estava perfeito - ensolarado com um leve frio no ar - e conversamos enquanto caminhávamos. “Pai, me conte sua história de vida”, ele disse. Ele não estava brincando, então fiz o possível para não enfeitar - como se, pelas suas palavras, fôssemos apenas “extremamente bons amigos”.

Passamos a noite no posto avançado de Emstrur e, no dia seguinte, terminamos a trilha em Thorsmork. O tempo permaneceu perfeito e conversamos muito mais, mesmo quando o ônibus nos levou de volta à civilização - às ruas arrumadas de Reykjavik.

Em nossa última noite na Islândia, nos regalamos com sushi e depois voltamos ao hotel. Tínhamos duas camas de solteiro adjacentes. Sebastian cochilou imediatamente e depois rolou, dormindo, então ele se aconchegou mais perto, com os braços desengonçados sobre mim. Já era tarde, quase 10 horas, mas o céu ainda estava iluminado pelo sol - a lenta chegada do crepúsculo no Norte. Logo nossas vidas ocupadas seriam retomadas. A escola começaria. Os dias passariam. Meu filho cresceria. Mas, por enquanto, enganei o tempo e o crepúsculo permaneceu. 

Tradução de Claudia Bozzo

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