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Opinião | A cobra que engole a própria cauda

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convidado
Por João Henrique Ballstaedt Gasparino
Atualização:

A Ouroboros, como é conhecida a cobra que engole a própria cauda, é um antigo símbolo que representa a ideia de algo que se destrói e se recria a si mesmo, representando também a morte e o renascimento. Na prática, contudo, o destino da cobra é um só, a sua extinção.

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Um paralelo pode ser traçado, no direito brasileito, com a modulação de efeitos, que é um mecanismo utilizado pelos tribunais superiores para manutenção dos efeitos de uma norma jurídica considerada inconstitucional ou ilegal. Humberto Ávila chancela a comparação: “ao manter o que lhe é contrário, o Direito como que devora a si próprio, tal como uma cobra que engole sua própria cauda.”

Segundo o Ministro Ayres Britto, ao julgar o ED na ADI 2.797, a modulação deve ser usada quando sua falta causaria um dano ainda maior à ordem constitucional, resultando em grave desequilíbrio entre aquilo que se ganha e aquilo que se perde com a declaração de inconstitucionalidade.

O afastamento da regra geral (engolimento da cauda) tem como fundamento a renovação ou até mesmo o renascimento do estado de constitucionalidade que, de outro modo, seria prejudicado. A prática, contudo, se afasta da teoria, restando sacrificadas a segurança jurídica e a proteção da confiança.

O instituto está prevista no artigo 927, § 3º do CPC, e no art. 27 da Lei 9.868/98, onde nota-se o reforço legislativo quanto a necessidade de se respeitar o interesse social e a segurança jurídica, como dois importantes pilares de sustentação que permitem a manutenção dos efeitos produzidos pela (anti)norma, o que, de certa forma, incentiva o comportamento indevido.

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Cada vez que o “não” vira um “sim”, aquilo que precisa ser obedecido, mas pode ser descumprido, não precisa mais ser obedecido. Assim, torna-se evidente a crise de confiabilidade e certeza que supostamente deveria emanar das normas jurídicas.

Quando é mantida a cobrança de um tributo flagrantemente inconstitucional em razão da utilização do mecanismo de modulação de efeitos, a relação fisco-contribuinte passa a ser vista, cada vez mais, como uma relação de conflito. A insegurança jurídica aumenta, o litígio é incentivado (como forma de proteção contra a modulação) e quem confiou na lisura das normas sai prejudicado. O corpo da cobra padece.

A situação é agravada uma vez que o instituto vem sendo usado como forma de preservação do Erário. Filiamo-nos à corrente de que o Estado não pode invocar os princípios da segurança jurídica e a proteção da confiança para manter cobranças indevidas em detrimento de direitos fundamentais de liberdade, por exemplo. Não há surpresa para o Estado na declaração de inconstitucionalidade de uma Lei, já que é ele quem deu causa a sua criação.

Alguns casos, porém, chamam a atenção pois as modulações decorrem de viradas jurisprudenciais em favor dos contribuintes sobre temas que, antes, eram julgados de forma diferente. No Tema 201 da Repercussão Geral (restituição da diferença do ICMS-ST), a modulação ocorreu sob este fundamento, por exemplo.

Da mesma forma, no caso do Tema 69 (exclusão do ICMS da base do PIS e da Cofins), a modulação foi aprovada a partir de 15/03/2017 (data do julgamento) para que restasse preservada a segurança jurídica dos órgãos fazendários tendo em vista a mudança no entendimento da corte.

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No recente julgamento da exclusão do ICMS-ST da base do PIS e da Cofins, para garantir que a decisão não tivesse reflexos negativos ao Erário em relação às teses filhotes, os ministros foram categóricos: tratava-se do mesmo assunto julgado no Tema 69. Não havia diferença.

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Após a decisão, os contribuintes foram surpreendidos em fevereiro de 2024, quando os Ministros, ao considerarem “a inexistência de julgados” no sentido então proposto, modularam os efeitos para os períodos posteriores à data de publicação da ata daquele julgamento no veículo oficial de imprensa. Aparentemente não se tratava mais do Tema 69 e a corda novamente mordeu a própria cauda.

Para que seja possível a modulação de efeitos nesses casos, é necessário o preenchimento de dois requisitos para preservação da segurança jurídica da proteção da confiança: i) excepcionalidade da situação enfrentada; e ii) inexistência de inconstitucionalidade manifesta. No caso em apreço, primeiramente, não há excepcionalidade justamente porque caso idêntico fora julgado anos antes. Segundamente, pelo mesmíssimo motivo, é flagrante a inconstitucionalidade.

A mudança de entendimento também pode beneficiar o fisco, como o caso da limitação dos 20 salários mínimos para as contribuições de terceiros, o Tema 1.079 no STJ. Segundo a modulação, somente contribuintes com decisões prévias favoráveis antes de 25 de outubro de 2023 puderam se aproveitar da tese.

Ocorre que muitos demandaram o tema judicialmente e tiveram seus processos sobrestados por força do art. 1.037, II, do CPC, não havendo isonomia no tratamento dado. Novamente vislumbra-se prejuízo em relação à segurança jurídica e à proteção da confiança.

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O direito necessita de certeza e previsibilidade para que as empresas possam se organizar e entender como agir. Isso não acontece perante um cenário legal e jurisprudencial confuso. Há uma necessidade de maior atenção por parte das cortes superiores para evitar que direitos fundamentais sejam comprometidos sob a justificativa de proteger as finanças do Estado.

Caso continuemos nesse caminho, sem perceber que o Estado e os contribuintes formam um só corpo, assim como a cobra, seguiremos engolindo a própria cauda.

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João Henrique Ballstaedt Gasparino
Advogado e pesquisador sobre o impacto da tecnologia nas relações jurídicas, sociais e econômicas na FGV/SP (GITEC)
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