75% de mineração é ilegal na Bacia do Rio Tapajós, aponta levantamento

Garimpo nos Estados de Mato Grosso, Pará e Amazonas concentra quase metade das áreas mineradas do País

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Um retrato do que é o garimpo no Brasil: na região que concentra 44% das áreas mineradas do País, menos de 25% das lavras têm permissão para operar. Os dados se referem à Bacia do Rio Tapajós - nos Estados do Mato Grosso, Pará e Amazonas - e foram compilados pela ONG WWF-Brasil a partir do cruzamento de informações públicas e georreferenciamentos levantados pelo projeto MapBiomas, uma plataforma que reúne universidades, organizações ambientais e empresas de tecnologia.

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Desde o início do ano, as consequências do garimpo ilegal em outro ponto da Amazônia, em Roraima, no território Yanomami, chocam o País Em janeiro, o governo federal declarou emergência em saúde pública no território, após identificar uma alta de casos de malária, desnutrição infantil e problemas de abastecimento - reflexo de problemas de assistência e avanço do garimpo ilegal na região.

Os dados compilados agora pela WWF-Brasil constam da ação em que a ONG ingressou como amicus curiae, ao lado da Defensoria Pública da União (DPU), Instituto Socioambiental e o Instituto Alana. A ação questiona a “presunção de boa fé” no comércio de ouro em trâmite no Supremo Tribunal Federal (STF) e foi ajuizada originalmente pelo PSB e Rede Sustentabilidade (Rede). Há ainda outra ação, essa movida pelo Partido Verde.

Esses dados apontam que do total de área minerada no Vale do Tapajós, 113.650,4 hectares,27.160 hectares contam com permissões de lavra garimpeira ou concessões de lavra, conforme dados da Agência Nacional de Mineração (ANM). A área garimpada ilegalmente, 86.490,4 hectares, tem quase o dobro do tamanho do Plano Piloto, em Brasília.

A região ocupada pelo garimpo, por vezes, avança sobre a Terra Indígena Munduruku, no Parque Nacional do Rio Novo e no Parque Nacional do Jamanxim, locais onde a atividade é proibida.

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Nessa região, dois locais chamam a atenção negativamente. Itaituba e Jacareacanga, ambos no Pará. Eles respondem, sozinhos, por 36,8% da área garimpada no País (72.480 hectares). São os dois municípios com maior área de garimpo no Brasil. No entanto, são também áreas onde a ilegalidade atinge patamares próximos de 100%.

Só 27.160 hectares contam com permissões de lavra garimpeira Foto: Amanda Perobelli/REUTERS

Em Itaituba, por exemplo, onde o garimpo ocupa 52.418,9 hectares, mais de 90% da atividade é desenvolvida de forma ilícita. Apesar da grande produção de ouro local -maciçamente ilegal- os índices de desenvolvimento não acompanham proporcionalmente a quantidade de riqueza que sai de suas terras.

A cidade ocupa a posição 3291 no ranking do IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) entre os 5570 municípios brasileiros. A taxa de mortalidade infantil de Itaituba entre 2011 e 2019, por exemplo, é de 17,38 óbitos por mil nascidos vivos, índice superior ao do Estado do Pará (15,14) e a média nacional para o período (12,39).

Em Jacareacanga, de onde se extraem cerca de 100 quilos de ouro por semana, o garimpo ocupa 14.957,6 hectares, dos quais apenas 286 contam com permissão de lavra garimpeira. Ou seja, mais de 98% da área é ocupada com atividades ilícitas. O município, que tem o 51º pior IDH no Brasil, tem uma taxa de mortalidade infantil ainda maior do que Itaituba, 20,41 mil óbitos por mil nascidos vivos na comparação com o mesmo período.

Essa situação revela uma série de fragilidades na cadeia de produção do ouro. Garimpos fantasma, áreas legalizadas de onde não se extraem nada, usados para esquentar o ouro ilegal, falta de um sistema de rastreabilidade, como por exemplo a nota fiscal eletrônica e a presunção de legalidade para os compradores de ouro -as chamadas DTVMs (entidades financeiras que são as únicas que podem comprar o ouro das lavras e negociar na bolsa).

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De acordo com o advogado do WWF Rafael Giovanelli, o STF tem a chance de dar uma resposta inédita à sociedade. Ele afirma que as DTVMs precisam ser monitoradas de forma mais sistemática pelo Banco Central, assim como as concessões de permissões de lavra garimpeira. “Ingressamos (na ação) como um coletivo que representa a luta da sociedade civil contra o garimpo ilegal, que talvez seja hoje o principal problema socioambiental da Amazônia”, afirma.

Segundo ele, a presunção de legalidade, ou de boa-fé, das DTVMs inviabiliza que elas sejam responsabilizadas em caso de compra de ouro proveniente de garimpos ilegais. “Esse ouro é o ouro que vem sujo de sangue”, diz Giovanelli.

O ouro extraído dos garimpos ilegais passam a fazer parte do sistema formal da economia nacional após serem comprados pelas DTVMs e se transformam em três categorias: mercadoria, ativo financeiro e instrumento cambial.

Para Deborah Goldemberg, especialista em conservação do WWF-Brasil, o principal responsável por aumentar o grau de fiscalização deve ser o Banco Central, que poderia fiscalizar essas entidades. “Pode ser que não tenham pessoal para fiscalizar ou que seja perigoso ir a um garimpo clandestino, mas há formas de fazer essa fiscalização e de obrigar as DTVMs a fazerem o mínimo para impedir que isso continue acontecendo”, diz.

Em parceria com a USP, a ONG desenvolveu um sistema de rastreabilidade e fiscalização. Ela afirma que o sistema chegou a ser oferecido ao governo passado, mas não receberam resposta. Toda mina legal tem um número de PLG, a plataforma checa essa informação e a cruza com imagens de satélite. “Basta o comprador lançar esse número no sistema e verificar na imagem se alguma atividade está sendo feita no local. Se não estiver é só não comprar”, diz.

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Ela se refere aos garimpos fantasmas, esquema usado para “esquentar” o ouro. Funciona como um mercado paralelo em que detentores da autorização vendem suas licenças a garimpeiros ilegais para que eles vendam o ouro de forma legal às DTVMs.

As ilegalidades, no entanto, vão além. Traficantes de drogas, armas ou animais silvestres também se utilizam desse mercado, afirma a especialista, para a lavagem de dinheiro. “Nós tratamos isso como uma cadeia de mais de uma ilegalidade e transnacional. Quando aperta de um lado da fronteira, eles correm para o outro”, afirma Deborah.

A situação de descontrole assumiu tamanha gravidade que neste ano, a CVM abriu investigação contra cinco grandes DTVMs suspeitas da compra de ouro ilegal. E nesta semana, a Polícia Federal (PF) deflagrou a Operação Sisaque contra um esquema de contrabando de ouro oriundo de garimpos ilegais na região Amazônica. Entre as cidades que tiveram ações de busca e apreensão está Itaituba.

Os policiais cumprem três mandados de prisão e 27 de busca e apreensão em Belém (PA), Santarém (PA), Itaituba (PA), Rio de Janeiro (RJ), Brasília (DF), Goiânia (GO), Manaus (AM), São Paulo (SP), Tatuí (SP), Campinas (SP), Sinop (MT) e Boa Vista (RR).

A Justiça Federal também autorizou o bloqueio de mais de R$ 2 bilhões dos investigados. A PF vê indícios de quaro crimes: organização criminosa, lavagem de dinheiro, extração de recursos minerais sem licença e comércio de ouro obtido a partir de usurpação de bens da União.

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O inquérito foi aberto em 2021 com base em relatórios da Receita Federal que apontaram o ‘esquentamento’ do ouro extraído ilegalmente. O esquema seria operado por meio de empresas de fachada usadas na emissão de notas fiscais para introduzir o ouro no mercado como se fosse regular.

A CVM afirma que a investigação foi analisada pela Superintendência de Relações com o Mercado e Intermediários (SMI) no âmbito do processo aberto a partir de denúncia. “Após as devidas análises, as áreas técnicas da CVM encaminharam resposta ao denunciante por meio da qual informaram que a competência em casos de natureza do assunto denunciado é do Banco Central do Brasil.”

A autarquia também afirma que “acompanha e analisa as informações e movimentações do mercado de valores mobiliários e toma as medidas cabíveis quando necessário”.

Intimado a se manifestar na ação do PV, no STF, o Banco Central informou que “diante das características desse mercado, bem como a natureza das atribuições específicas da autoridade monetária, a fiscalização que compete ao Banco Central é tão somente a da regularidade da contabilização do ouro nos registros contábeis das entidades sujeitas à sua supervisão.”

A ANM afirma que recentemente, foram implementadas medidas para aprimorar a fiscalização e a transparência do setor. “Entre elas, estão a criação de um painel de inteligência fiscalizatória, que permite a identificação de irregularidades e fraudes; o painel de fiscalização do ouro, que fornece informações sobre a produção e o comércio de ouro; e, o sistema de primeiro adquirente, que garante maior transparência na alocação de recursos oriundos da Compensação Financeira pela Exploração Mineral”, diz em nota.

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Representante das empresas do setor, o Instituto Brasileiro de Mineração (Ibram) diz que tem ações contra a ilegalidade, como os pedidos à Receita Federal para que institua notas fiscais eletrônicas nas transações com ouro do garimpo. A legislação admite o uso de notas fiscais em papel, manuscritas e, por vezes, “até mesmo produzidas em papel comum.”

O Instituto Brasileiro de Gemas e Metais Preciosos (IBGM) afirma que o setor não pode ser responsabilizado uma vez que 90% é exportado ou adquirido pelo Banco Central para as reservas cambiais. Algumas das reivindicações da entidade para maior controle na procedência do ouro é a instituição da Nota Fiscal Eletrônica e a obrigatoriedade das aquisições pelo sistema bancário.

A Secretaria de Meio Ambiente de Mato Grosso, Estado ao qual a Bacia do Tapajós pertence parcialmente, diz que em 2022 foram realizadas 16 operações de fiscalização da Sema e Polícia Militar, que resultaram em mais de R$ 6,8 milhões em multas. “Também no período, foram apreendidos 22 tratores, 7 caminhões e um trator esteira, como medida imediata para frear a degradação e descapitalizar infratores.”

Procurados, os Estados do Amazonas e do Pará não se manifestaram.

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