O evento tem implicações políticas e militares alarmantes. No campo político, pode representar o fracasso das tentativas francesas de criar uma coalizão unindo a Rússia, o Irã, a Europa e os Estados Unidos contra o Estado Islâmico. Esse resultado não se daria apenas em função do aumento da animosidade entre Rússia e OTAN - consequência bastante previsível em função de a Turquia ser membro da Aliança do Norte. O fracasso viria também pelo efeito da ação turca sobre a relação entre Europa e Estados Unidos. Enquanto o presidente Obama apressou-se em manifestar seu apoio à Turquia na defesa de sua soberania, os europeus pediram moderação entre as partes e, em alguns países, surgiram críticas explícitas à imprevisibilidade do aliado turco. Aliás, a própria conivência da Turquia com grupos rebeldes da Síria que lutam contra os curdos - um dos principais aliados ocidentais contra o regime de Assad - e a falta de vontade do governo de Erdogan em combater a exportação de petróleo do Estado Islâmico via seu território já representavam um problema à unidade dos ocidentais, que tende agora a se agravar. Na ausência de uma coalizão, a França fica à deriva e volta à condição de parceiro menor da estratégia americana para a região. Essa situação beneficia o Estado Islâmico, e prolonga a ameaça que esse representa à ordem internacional. No campo militar, a situação é ainda pior. Pela primeira vez em mais de 50 anos um avião de combate da Rússia é derrubado por um membro da OTAN. As circunstâncias que ensejaram o ataque são bastante controversas. Do lado russo, são apresentadas uma série de evidências para se afirmar que o caça russo não invadiu o espaço aéreo turco. Do lado turco, sustenta-se que os russos violaram o espaço aéreo e foram avisados sobre isso dez vezes, em um intervalo de cinco minutos. Ao que tudo indica, houve uma invasão do espaço aéreo turco por segundos, e a retaliação teria ocorrido já quando a aeronave russa se encontrava em espaço aéreo sírio. Em um processo claro de início de escalada nas tensões, a Rússia anunciou que as missões militares de ataques com caças, a partir deste evento, contarão com o apoio de embarcações de guerra localizadas no Mediterrâneo, as quais serão responsáveis por monitorar as operações e atacar qualquer ameaça percebida aos aviões russos. A possibilidade de uma ataque russo a aviões de caça turcos que patrulham a fronteira do país torna-se, assim, muito mais presente. Caso essa realidade se concretize, a Turquia pode considerar o ataque um ato de guerra, e invocar o tratado de constituição da OTAN para exigir que os aliados ocidentais retaliem as ações russas. A paz no mundo dependeria da resposta ocidental. Como atestam os historiadores da I Guerra Mundial, grandes guerras podem começar a partir de problemas regionais não resolvidos em razão da incapacidade das grandes potências em flexibilizar seus interesses. Desde o fim da Guerra Fria, as potências mundiais exerceram certo grau de transigência - seja por limitação em suas capacidades ou por vontade própria. Assim, os conflitos na antiga Iugoslávia, a invasão do Iraque, a Guerra Russo-Georgiana e os ataques à Líbia foram administrados de modo que não houvesse a possibilidade de que as crises regionais se tornassem um conflito maior. Infelizmente, as guerras civis na Ucrânia e na Síria mudaram essa realidade. As grandes potências passaram a ser inflexíveis. No caso da Síria, a situação é ainda mais grave, por aproximar forças militares que atuam com objetivos diferentes em um mesmo cenário de guerra. A chance de algo dar errado é bastante grande e a consequência seria catastrófica para a humanidade. Vamos torcer para que isso não aconteça.
* Fabiano Mielniczuk é Diretor da Audiplo e Professor da ESPM-Sul