A verdade inconveniente da 'derrubada'

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Por Rafael Alcadipani
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Artigo publicado originalmente no Estadão Noite Ocupou espaço na mídia no fim da semana passada as imagens de um suposto “criminoso” que foi jogado de um telhado após ter sido rendido por um policial militar fardado e com capacete. Na mesma ocorrência, câmeras de segurança flagraram a atuação de um grupo de policiais que renderam e algemaram outro suposto criminoso para depois retirar suas algemas, colocá-lo próximo a um veículo e executá-lo friamente forjando uma cena de “resistência seguida de morte”. A armação é tão nítida que aparece um policial pegando uma arma dentro da sua própria viatura. O caso, como de costume, chamou menos atenção do que deveria de uma sociedade cansada de tantos crimes e que não vê na Justiça uma solução para os graves problemas de Segurança Pública. Na mesma semana, foi lançado um relatório da Anistia Internacional apontando a PM do Brasil como a polícia que mais mata no mundo. O promotor que está denunciando o caso dos PMs de São Paulo logo chamou os policiais de “bandidos”. Trata-se de um movimento típico e comum neste tipo de ocorrência: a PM e os governos dizem que se trata de algumas “maçãs pobres” que desonram a corporação, que já foram presos, como se isso extirpasse o mal. Todavia, a presença de um número expressivo de policiais nesta ocorrência deixa claro que não se trata de “alguns indivíduos”, mas sim de uma lógica de atuação da corporação apoiada pelo governo e pela sociedade, como nos mostra a primorosa pesquisa de Samira Bueno intitulada “Bandido bom é bandido morto: a opção ideológico-institucional da política de segurança pública na manutenção de padrões de atuação violentos da Polícia Militar paulista”.  A prática da “derrubada”, nome dado no jargão policial à execução de supostos criminosos, existe devido a uma série de fatores. Em primeiro lugar, a PM é informalmente conivente com essa prática - basta vermos as falas do Coronel Telhada durante a campanha eleitoral. Trata-se de um ex-comandante da corporação que mostra muito bem a ideologia que transpassa parte da tropa. Em segundo lugar, em inúmeros casos de “derrubadas”, os envolvidos nas práticas e seus colegas ameaçam famílias e pessoas que viram os fatos, forjam provas e usam o terror como arma para jogar a execução embaixo do tapete.  O Governo do Estado, por sua vez, não toma nenhuma atitude concreta contra este tipo de ação. Punir os envolvidos não é o suficiente. Há duas ações fáceis de serem implementadas que evitariam execuções sumárias. O primeiro é instalar câmeras nas viaturas. A outra é colocar em um programa especial os policiais que se envolvem em ocorrências com mortes. O policial deveria ser obrigado a ir por 6 meses diariamente ao programa, tirando dele a possibilidade do bico durante o período. Isso foi feito pelo então governador Mário Covas com muito sucesso.  Além disso, as PMs no Brasil são muito grandes e, com isso, muito difíceis de serem controladas. Dentro desse contexto, o tal “ciclo completo de polícia”, quando uma força policial pega a ocorrência do começo ao final, que está em voga como uma das soluções para o problema das polícias no Brasil, é inconcebível para a realidade brasileira. É o oposto do que o País precisa: a urgente redução do poder das PMs. Porém, na maioria dos casos em que policiais que praticam “derrubadas” são presos, eles tendem a ser absolvidos no Tribunal do Júri. Isso porque parte expressiva da sociedade acredita e defende, clara ou sutilmente, que “bandido tem que morrer”. O problema é que nunca se matou tantos “bandidos” no Brasil e nunca tivemos tantos problemas em Segurança Pública. A verdade inconveniente da “derrubada” é que o policial executa fora da lei, a corporação aceita e em alguns casos informalmente incentiva, o governo não faz nada para mudar o quadro e parte da sociedade bate palma. Para mudar a situação da Segurança Pública, precisamos ter ações inteligente, valorizando os policiais, investido em inteligência policial e em investigação policial e desburocratizando o sistema de Justiça Criminal. Soluções medievais nunca resolveram e nunca irão resolver o problema.* Rafael Alcadipani é professor de Estudos Organizacionais da FGV-EAESP e Visiting Scholar no Boston College, EUA

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