ENVIADA ESPECIAL A PORTO ALEGRE (RS) - Com milhares de pessoas de diferentes locais de Porto Alegre, os abrigos para acolher afetados pelas chuvas na capital se converteram em uma espécie de cidades em miniatura. O microcosmo dos abrigos reúne questões complexas da vida em sociedade, como brigas, suspeitas de assédio, e moradores com as mais variadas realidades, desde imigrantes a pessoas em restrição de liberdade usando tornozeleira eletrônica.
Assim como em um município, manter o funcionamento dos abrigos de resgatados da chuva tem sido uma tarefa que requer habilidade. Neste domingo, 12, no Grêmio Náutico União, a Polícia Civil distribuiu apitos para as mulheres soprarem em caso de assédio. A medida ocorre em um momento no qual muitas desabrigadas têm sentido medo após relatos de tentativas de abuso em outros abrigos e a prisão de seis pessoas suspeitas de cometerem crimes sexuais nesses locais.
A simples visita a um abrigo misto com cerca de 250 pessoas acolhidas dá a dimensão da complexidade da operação. Convivem no mesmo espaço, em colchões lado a lado, de crianças de colo a senhores de 90 anos.
No meio da diversidade, caminham pelos corredores de camas improvisadas pessoas usando tornozeleira eletrônica ao lado de bombeiros que ainda atuam no resgate de vítimas, uma amostra de que o desastre foi tão grande a ponto de infligir a mesma dor a pessoas com realidades muito diferentes.
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“Tinha audiência de custódia para acontecer, mas a pessoa estava aqui e não podia ir a Viamão, porque estava alagado. Fui até a escrivã, falei com ela e ela ligou para vara dizendo que ele não compareceria por força maior”, contou ao Estadão o coordenador do abrigo do Grêmio União e secretário de Transparência e Controladoria da prefeitura de Porto Alegre, Carlos Fett.
Para manter o funcionamento com o mínimo de intercorrências, voluntários se organizam em funções de coordenação, logística e apoio. São servidas três refeições diárias, as luzes são apagadas a partir das 22h. Entre os voluntários do abrigo, há desde servidores municipais até atletas do clube União, que se dividem em escalas ao longo do dia. Fett tem orgulho em dizer que o espaço é um dos mais organizados entre os abrigos da capital.
Apesar da ordem, a exemplo do que ocorre nas cidades, há casos de brigas, como um jovem que deu um soco em outro homem após uma suposta situação de assédio a uma mulher. Nesse caso, o acusado foi transferido para outro abrigo da cidade a fim de evitar novos conflitos.
Fett garante, no entanto, que nenhuma pessoa é barrada ao chegar ao abrigo e que os moradores, em geral, têm convivido bem. “A gente procura acolher todo mundo. O sentido é humanitário. O pressuposto é resgatar as pessoas e salvar vidas”, ponderando, no entanto, que é preciso manter a integridade do abrigo.
“Um dia teve um homem que chegou alcoolizado. É a reprodução da sociedade”, definiu o coordenador.
Mesmo com problemas eventuais, no momento em que a reportagem esteve no local, as pessoas se reservavam aos seus núcleos familiares em atividades variadas, desde jogar cartas até pentear os cabelos dos filhos, tocar violão ou dormir. Em homenagem ao Dia das Mães, um grupo de voluntários maquiava e penteava as mulheres em um espaço improvisado de salão de beleza.
No “mercadinho”, como foi apelidado o local de distribuição de comida, voluntárias entregavam bolos e outros itens aos moradores temporários do abrigo. A alguns metros dali, os animais de estimação eram tratados por uma equipe de veterinários e voluntários. Mesmo com tanta gente e tantas atividades, o local tinha uma sonoridade tranquila, ofuscada apenas pelo barulho da chuva no telhado de lata do ginásio do União.
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