Como o Aeroporto de Guarulhos entrou na rota clandestina de migração para os EUA

Alta de pedidos de refúgio por indianos, nepaleses e vietnamitas alertou autoridades; suspeita é de que Brasil era usado como entreposto para cruzar o continente. Ministério endureceu regras

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Foto do author José Maria Tomazela
Atualização:

Uma explosão no número de pedidos de refúgio no Brasil levou o Ministério da Justiça e Segurança Pública a identificar uma rota clandestina de migrantes no Aeroporto Internacional de Guarulhos, na Grande São Paulo. A média mensal de solicitações saltou de 230 em 2022 para 775 este ano.

Suspeita das autoridades é de que muitos estrangeiros vindos da Ásia já vinham sob a orientação de coiotes ou eram assediados na chegada no Aeroporto de Guarulhos Foto: Werther Santana/Estadão

Uma força-tarefa do governo detectou que a maioria dos migrantes não tinha o Brasil como destino final. Eles usavam o País como escala para tentar chegar aos Estados Unidos e ao Canadá.

  • Na última década, venezuelanos, cubanos e angolanos têm estado entre as nacionalidades mais frequentes para pedidos de refúgio. A alta exponencial de solicitações de outras origens chamou a atenção das autoridades.
  • Mas pedidos de outras nacionalidades começaram a crescer, entre elas: Vietnã (1.142), Nepal (966), Índia (961), Bangladesh (340) e Afeganistão (248), no balanço de 2023.

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“Cidadãos de várias nacionalidades, sobretudo da Ásia, compram passagens para outros países sul-americanos com conexão no Brasil. Chegando, entram com pedido de refúgio para ficar. Entendemos que nesses casos o refúgio não deve ser concedido”, disse ao Estadão a diretora de Migrações do ministério, Luana Medeiros.

“Com auxílio da Polícia Federal, vimos que eles entravam no País e, poucos dias depois, deixavam o território nacional. Não estavam de fato interessados em permanecer, o que coloca essas pessoas fora do contexto da migração legal”, acrescenta ela.

Levantamento da PF mostra que só 1,41% dos refugiados aceitos entre janeiro de 2023 e o mês passado continuavam ativos no sistema federal, o que indica situação irregular ou saída rápida do País.

Investigações apontam que muitos saem de São Paulo e seguem para o Norte do País, de onde buscam meios de chegar aos Estados Unidos ou ao Canadá.

  • É considerado refugiado quem deixa seu país após perseguição por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opinião política. Outra possibilidade é a grave e generalizada violação de direitos humanos.
  • Quem chega em voo do exterior e pede refúgio é entrevistado e passa por triagem pela PF. Se for averiguado que não pretende ficar no Brasil, ele pode seguir para o país para o qual tem visto ou voltar para a nação de origem de seu voo.
  • A recusa é prevista pela lei (inadmissão), quando há suspeita de contrabando ou tráfico de pessoas. Ela ficou mais frequente desde 26 de agosto, quando o ministério passou a analisar com mais rigor os pedidos de refúgio.
  • Desde que o maior controle passou a ser aplicado, a média diária de estrangeiros retidos no Aeroporto de Guarulhos caiu de 400 para cerca de 100, segundo a PF.

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“Quando se fala de rotas de migração irregular e de possível contrabando de migrantes, a sinalização de que a rota foi identificada leva os coiotes (guias clandestinos) e pessoas que estão nessas rotas a buscar alternativas ou percorrer os caminhos regulares”, diz Luana.

Operações miram rede de coiotes

As operações Brás e Bengal Tigre, realizadas pela PF em outubro de 2019, revelam como funciona esse modelo de contrabando de migrantes no Brasil. Segundo a investigação, o grupo recrutava estrangeiros em seus países e os trazia para Guarulhos.

A quadrilha usava advogados brasileiros para solicitações de refúgio e fornecia aos estrangeiros documentos de viagem falsos, incluindo passaportes, vistos e cartas de tripulantes marítimos.

Os migrantes ficavam escondidos no Brás, região central de São Paulo, até pagarem R$ 72 mil à organização – R$ 25 mil na chegada e R$ 47 para a viagem até os EUA. Nesse período, as vítimas ficavam em quartos alugados pela quadrilha, em condições insalubres, sofrendo maus-tratos, agressões e cárcere privado, já que não podiam sair livremente.

Depois, seguiam para o Acre, atravessavam de táxi a fronteira com o Peru e encaravam uma maratona de risco, humilhações e privações, passando por Equador, Colômbia, Panamá, Costa Rica, Honduras, Nicarágua, Guatemala e México até a fronteira americana. A investigação mostrou que na travessia da Selva de Darién, na fronteira de Colômbia e Panamá, eram obrigados a caminhar dez dias a pé.

Com montanhas íngremes e rios, a selva é uma rota estratégica pela falta de fiscalização da polícia, mas é controlada por cartéis de drogas. Muitos imigrantes foram feridos e até mortos nesse trajeto, além de relatos de estupros. E quem cruza a fronteira corria o risco de ser preso pela polícia americana.

A PF prendeu o suposto líder da organização, o bengalês Saifullah Al Mamun. A defesa nega elo com o tráfico de pessoas e diz que as acusações contra ele, tanto aqui como nos Estados Unidos, são relacionadas apenas ao favorecimento da imigração ilegal.

No mês passado, outras redes de coiotes entraram na mira da PD. A Operação Vuelta identificou uma quadrilha internacional que recrutava vítimas na República Dominicana e fazia de Cumbica escala para fazê-las chegar à Europa. Os migrantes usavam documentação falsa obtida na Colômbia e na Espanha.

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Na casa onde foi cumprido um dos mandados de busca, foram achadas 13 pessoas que estariam utilizando o Brasil como rota de contrabando de migrantes.

Em agosto, a PF também deflagrou a Operação Sáfaro contra um grupo investigado por promover a emigração ilegal de brasileiros para os Estados Unidos. Foram cumpridos oito mandados de busca e apreensão e seis de prisão em Governador Valadares e outras cidades de Minas Gerais.

A Justiça autorizou o bloqueio de R$ 35 milhões dos suspeitos. As investigações revelaram que ao menos 327 brasileiros, inclusive 101 adolescente, emigraram ilegalmente com ajuda da quadrilha, atravessando a fronteira mexicana.

Morte de ganês e acampamentos afegãos

Nos últimos meses, episódios de problemas e condições precárias de grupos de estrangeiros em Cumbica se repetiram.

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No último dia 6, um imigrante de Gana, Evans Osei Wusu, de 39 anos, morreu após passar mal no aeroporto. Segundo seus familiares, seu destino era o México, mas ele teve a entrada negada naquele país e retornou para São Paulo, onde pediu refúgio.

Wusu aguardava ser reconhecido seu status de refugiado. Ele recebeu atendimento no posto médico do aeroporto e depois foi levado ao Hospital Geral de Guarulhos, mas morreu de infecção generalizada. A Polícia Civil abriu inquérito para apurar o óbito.

Em junho, cerca de 200 imigrantes, a maior parte de indianos, ficaram retidos em Cumbica. Isso ocorreu, segundo autoridades de migração e judiciárias, por causa de um fluxo incomum de chegada de estrangeiros sem permissão de entrada e problemas no sistema de cadastro.

Desde 2022, vários grupos de afegãos, que fugiram do domínio do grupo armado Taleban, têm chegado e acampado no Aeroporto de Guarulhos à espera de ajuda. Parte dos estrangeiros foi acolhida em Mongaba, no interior de São Paulo, e outros ficaram em abrigos da capital.

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O Estadão tentou contato com as embaixadas de Estados Unidos, Canadá e dos países asiáticos citados, mas não obteve retorno até a publicação desta reportagem.

Acampamentos de afegãos se tornaram frequentes no Aeroporto de Guarulhos (foto de 29/6/2024) Foto: Tiago Queiroz/Estadão

Defensoria recorre à Justiça

A Defensoria diz que impetrou este mês solicitações de habeas corpus para 74 pessoas que manifestaram interesse em refúgio no País. “Todos os pedidos tiveram a liminar deferida, o que garante a essas pessoas a permanência no Brasil até a análise final da demanda pela Justiça Federal”, diz, em nota. Em outro dos pedidos houve sentença negativa contra nove migrantes, mas a DPU vai recorrer.

A diretora de Migrações do ministério diz que as medidas que restringem a admissão de estrangeiros como refugiados são pontuais e específicas para passageiros em trânsito pelo País. “Nossa lei não exige visto para quem fica em área de trânsito internacional, ou seja, está só de passagem em uma escala de voo em aeroporto brasileiro”, afirma Luana.

O Brasil exige o visto para pouco mais de 90 nações, de um conjunto de 195. “Somos um dos países mais abertos do mundo para a entrada de estrangeiros, assim como brasileiros têm acesso a muitos países sem precisar de visto”, afirma.

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A GRU, concessionária responsável pelo aeroporto, informa que a responsabilidade pelos passageiros que aguardam o processo de admissão pela PF até a sua conclusão é das companhias aéreas. Nesse período, continua, presta suporte às empresas áreas e às autoridades.