Em um posto de Niterói (RJ), o etanol vendido nas bombas não estava só “batizado”, como composto por 92,1% de metanol, uma substância tóxica – o limite permitido pela lei é de 0,5%. Flagrantes de uso irregular e adulteração com o produto, como esse feito pela Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP) em julho de 2023, ficaram mais comuns no último ano.
“Era tão alta a porcentagem que o metanol era praticamente o combustível vendido”, diz o promotor Pedro Simão, responsável por oferecer a denúncia pelo Ministério Público do Rio (MP-RJ). As investigações indicaram que o esquema se estendeu pelo menos de março até o fim do ano passado.
Os autos de infração relacionados a metanol emitidos pela ANP atingiram, no ano passado, o recorde desde que começaram a ser contabilizados, em 2017. Foram 187 registros, alta de 73,5% ante os números de um ano antes (108). Quando se compara com períodos anteriores, a diferença é ainda maior. Em 2020, por exemplo, foram somente 37 casos desse tipo contabilizados pela agência.
- O metanol é uma substância tóxica nociva à saúde, além de poder causar explosões e danos a veículos, sobretudo se usado em grandes quantidades.
Para driblar a polícia, quadrilhas diversificam as estratégias pelo País, em esquemas chegam a envolver grandes facções criminosas, como até o Primeiro Comando da Capital (PCC). De um ano para cá, além do Rio, houve operações que miram adulterações em combustíveis em vários Estados, entre eles São Paulo, Bahia, Maranhão e Paraná.
Conforme a ANP, diante da “incidência incomum de contaminação por metanol” entre abril e setembro do ano passado, foram adotadas medidas. A agência, por exemplo, indeferiu 67 pedidos de importação de metanol em 2023, o que evitou a entrada de cerca de 63 mil m³ do produto para possível uso irregular no País — muitas vezes, o esquema só se revela fraudulento na distribuição.
O posto de gasolina citado no começo da reportagem foi um dos três interditados na Operação Fake Fuel, deflagrada no ano passado pelo Grupo de Atuação Especializada no Combate ao Crime Organizado (Gaeco) do MP-RJ em parceria com a Polícia Civil e a ANP. As investigações indicam que o grupo vendia combustível adulterado não só em Niterói, como em outros dois postos em São Gonçalo.
Cinco suspeitos foram denunciados ao Tribunal de Justiça do Estado do Rio e tornaram-se réus no fim do ano passado. Entre eles, o empresário Carlos Eduardo Fagundes Cordeiro, de 49 anos, foragido desde então. Segundo a denúncia, a qual o Estadão teve acesso, ele é descrito como “mentor intelectual e responsável por todas as fases da empreitada delituosa”.
Procurada pela reportagem, a defesa de Cordeiro afirmou que o empresário provará inocência ao final do processo. “Ele segue ausente da prisão, mas, desde o primeiro momento, se fez presente por advogado nos autos e terá o seu direito de exercer sua autodefesa”, disse o advogado Jairo Magalhães.
As investigações apontaram que, além do etanol, a gasolina nos postos investigados também tinha indícios de adulteração: amostra coletada no posto de Niterói indicou que a substância vendida por lá continha 66% de etanol anidro, mais do que o dobro do que permite a lei (27%).
Na prática, muitas vezes a adulteração só é percebida quando causa danos reais aos consumidores. O Ministério Público do Paraná, por exemplo, ajuizou no mês passado ação civil pública contra dois postos de combustíveis de Cornélio Procópio, no interior do Estado.
As apurações tiveram início após a 3ª Promotoria de Justiça da cidade receber representação de consumidor que teve problemas mecânicos em sua roçadeira. Após análise técnica, ficou comprovado que a causa das falhas foi a adulteração do combustível usado no equipamento.
Estimativa do Instituto Combustível Legal (ICL) aponta que cerca de R$ 30 bilhões são desviados por ano no setor, sendo metade em sonegação e outra metade em fraudes operacionais, como adulteração de etanol e chips na bomba (usados para ludibriar o cliente quanto ao valor a ser pago). Alguns dos prejuízos a consumidores, porém, são difíceis de mensurar, uma vez que muitos sequer associam problemas no carro ao abastecimento do tanque.
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Caminhão-tanque sem documento leva a ‘laranjas’ de facção
Deflagrada em fevereiro pelo Gaeco do Ministério Público de São Paulo (MP-SP) em parceria com outros órgãos, uma investigação identificou um possível elo de um esquema de adulteração de combustíveis com bandidos ligados ao PCC, maior facção criminosa do país.
As investigações da Operação Boyle tiveram início depois que, em maio do ano passado, a Polícia Rodoviária Federal (PRF) apreendeu um caminhão-tanque com 30 mil litros de metanol durante patrulhamento em uma rodovia em São Paulo. O motorista não tinha nenhuma documentação para transportar o produto.
Com isso, a Delegacia de Repressão a Crimes Ambientais da Superintendência de PF de São Paulo instaurou procedimento para investigar o caso e, com ajuda da Receita Federal, descobriu um esquema muito maior, com possível envolvimento de ao menos 16 suspeitos de integrar o esquema, e 16 empresas, como postos de combustíveis e transportadoras.
“Entre maio, junho e julho de 2023, identificamos que as empresas envolvidas na fraude movimentaram aproximadamente R$ 31 milhões, ou cerca de 10 toneladas de metanol”, diz o auditor fiscal Rodrigo Poli, chefe do Escritório de Pesquisa e Investigação (Espei) da Receita. A principal hipótese é de que a substância seria usada para adulterar combustíveis em postos espalhados pelo Estado.
- Em geral, especialistas dizem que o metanol, embora também seja produzido por aqui, é importado de países como Chile e Venezuela por empresas autorizadas a realizar esse procedimento e chega ao Brasil por vias marítimas.
- Depois, é distribuído de forma irregular aos posto. “Em 2023, tivemos muita importação de metanol com suspeita de irregularidade”, afirma Poli.
As investigações, ainda em curso, mapearam que alguns dos donos das empresas investigadas têm vínculo com o PCC. Para esconder esses elos, o esquema teria usado “laranjas” (pessoas sem histórico no crime) para tentar manter distância das investigações.
Na deflagração da operação, em fevereiro, foram cumpridos 15 mandados de busca e apreensão nas cidades de São Paulo, Santo André, Poá, Arujá e Bertioga.
Dados do Procon-SP indicam que, somente no primeiro semestre deste ano, o Estado já teve mais autuações de postos relacionadas à qualidade dos combustíveis do que em todo o ano passado. Foram 13 autuações deste tipo realizadas pelo órgão de fiscalização em 2024 (em um universo de 98 fiscalizações), ante 8 no ano passado (em meio a 394 ações).
São Paulo está na mira dos criminosos
São Paulo é considerado o principal epicentro da adulteração de combustíveis no País, segundo autoridades ouvidas pela reportagem. Não à toa, é o Estado que costuma receber o maior número de fiscalizações pela ANP, mas investigadores relatam que os esquemas têm avançado por outras regiões.
“Temos ficado muito preocupados com isso. Infelizmente, o crime organizado vem crescendo a atuação dentro do setor”, diz Emerson Kapaz, presidente do Instituto Combustível Legal (ICL). “Eles saíram mais da Região Sudeste e também começaram a atacar fortemente o Nordeste, por exemplo.”
- São cerca de 43 mil postos de gasolina no País, segundo levantamento do setor.
- O ICL estima que há indícios de atuação do PCC junto a mais de 900 postos de combustíveis, por vezes usados pela facção também para lavar dinheiro obtido com o tráfico de drogas.
Eles saíram mais da Região Sudeste e também começaram a atacar fortemente o Nordeste, por exemplo
Emerson Kapaz, presidente do Instituto Combustível Legal (ICL)
Na Bahia, policiais do Departamento de Repressão e Combate ao Crime Organizado (Draco) localizaram no começo deste ano um depósito suspeito de ser usado para adulteração de combustível em Feira de Santana. Foram apreendidos por lá 27,3 mil litros de etanol, 231,8 mil de nafta e 228,01 mil de óleo diesel. Uma empresa foi autuada.
A Operação Carbono, que contou com a participação da Secretaria da Fazenda do Estado e da ANP, resultou na desativação de um laboratório focado na adulteração de combustíveis. O espaço seria usado para a fabricar combustível adulterado para abastecer não só postos da Bahia, mas de Estados vizinhos, como Piauí e Pernambuco.
O governo baiano apontou ainda que, embora inscrita no Simples Nacional, a instituição movimentou valores acima do limite estabelecido para este segmento de contribuintes, já que só a carga encontrada no depósito somava quase R$ 2 milhões. As investigações da Operação Carbono prosseguem para identificar mais envolvidos na cadeia.
Já o Ministério Público do Maranhão deflagrou em agosto do ano passado a Operação Hades, em que um grupo é investigado por suspeita de crimes de fraude fiscal e lavagem de dinheiro. Foram apreendidos 11 veículos, R$ 418,2 mil em espécie, R$ 195,4 mil em cheques e 12 aparelhos celulares. A operação foi em parceria com a Secretaria Estadual da Fazenda e a ANP.
Na prática, segundo autoridades envolvidas na investigação, o esquema teria sido formado porque o álcool etílico hidratado, conhecido como carburante (usados nos veículos), é basicamente o mesmo álcool para fins de indústria, só que com alíquota maior de Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Prestação de Serviços (ICMS).
Diante disso, quadrilhas criaram empresas fantasmas para importar esse segundo tipo de álcool, supostamente para usar na indústria. Quando as cargas chegavam, porém, usavam para abastecer uma rede de ao menos cinco postos.
As investigações do Gaeco apontam que, de janeiro de 2015 a outubro de 2020, a fraude representou prejuízo de R$ 68,8 milhões ao Estado do Maranhão. Isso sem considerar possíveis multas e juros. Mais de 109 milhões de litros de etanol foram movimentados no período.
Conforme autoridades, fraudes desse tipo ganharam força há cerca de duas décadas em Minas Gerais. Com a intensificação de fiscalizações pela Receita por lá, o crime migrou para Goiás e, mais recentemente, para Estados do Nordeste, como o Maranhão.
Agora, a operação ainda deve se desdobrar em outra fase. O objetivo, de acordo com autoridades ouvidas pela reportagem, é aprofundar se há mistura com outros compostos e envolvimento de organizações criminosas no esquema, como o PCC.
ANP intensifica fiscalizações para combater irregularidades
Entre janeiro e fevereiro deste ano, a ANP já realizou 3,7 mil ações de fiscalização (parte delas em parceria com os Estados), alta de 47% ante o mesmo período do ano passado (2,5 mil).
Quando se leva em conta todo o ano de 2023, já havia subido o número averiguações, com 21,3 mil ações no ano passado, ante 19,1 mil em 2022.
Em 2023, o índice médio de conformidade dos combustíveis no País foi de 97,4%, conforme dados do Programa de Monitoramento da Qualidade dos Combustíveis (PMQC) da ANP. O número ficou próximo ao indicador de 2022, de 97,5%, o que coloca a qualidade dos combustíveis no Brasil em patamares internacionais de qualidade, segundo a agência.
Mas nem sempre foi assim, o que resultou em medidas adotadas pelos próprios Estados. No Rio Grande do Sul, o Ministério Público mantém, há cerca de 20 anos, um engenheiro químico dentro da promotoria do consumidor para facilitar as fiscalizações.
“Na época, tínhamos 27,5% no Rio Grande do Sul de inconformidades, englobando a adulterações e erros operacionais”, diz o promotor de Justiça Alcindo Bastos, da Promotoria de Defesa do Consumidor de Porto Alegre.
Diante disso, a promotoria passou a contar com um engenheiro químico para auxiliar as fiscalizações, medida considerada pioneira. O profissional passou a atuar em ações em diferentes regiões do Estado para avaliar os combustíveis vendidos nos postos. “Em questão de seis a sete meses, reduzimos as inconformidades para 0,6%, 0,8%”, afirma Bastos.
Os estabelecimentos autuados pela ANP estão sujeitos a multas, que podem variar de R$ 5 mil a R$ 5 milhões, bem como outras penalidades previstas em lei. A agência afirma que as sanções são aplicadas somente após processo administrativo, durante o qual “o agente econômico tem direito à ampla defesa e ao contraditório, conforme definido em lei”.
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